No curso de criação literária que fiz com Victor Giudice (vide post anterior) fomos desafiados a construir um conto de terror. Nunca fui especialmente fascinado pelo gênero. Havia lido pouca coisa neste quesito e até mesmo no Cinema, sempre preferi, o fantástico, o suspense, ao puro terror. Do terror psicológico como “O Bebê de Rosemary” e “O Inquilino” de Roman Polanski, grandes filmes da minha vida, gosto bastante. Mas confesso, sem vergonha, que nunca tive coragem, por enquanto, de encarar os zumbis aclamados de um George Romero por mais que me digam que há fascinantes metáforas políticas ali.
Lembrei-me então que a fome era para quem padece dela, uma grande forma de terror. Assim nasceu o conto adiante, bastante oportuno agora quando se discute o mérito do programa bolsa-família do governo Lula e José Padilha vai exibir o documentário “Garapa” sobre a fome extrema numa mostra paralela do Festival de Berlim este ano. Espero que seja da qualidade do seu extraordinário e fundamental “Ônibus 174”.
Victor leu este conto para todos, visivelmente estarrecido, mas gostou. Cheguei a enviá-lo para a revista Caros Amigos e ele foi recusado, por não suportarem o excesso de ironias. Vamos ver o que acontece com vocês. O conto foi retrabalhado e difere do que foi mostrado a Victor.
O fato central da história é verdadeiro: tirei de uma notícia de jornal. Quando Gabriel Garcia Marquez nos mostra crianças comendo reboco das paredes das casas em “Cem Anos de Solidão”, não é realismo mágico. Isto acontece na América Latina.
Lembrei-me então que a fome era para quem padece dela, uma grande forma de terror. Assim nasceu o conto adiante, bastante oportuno agora quando se discute o mérito do programa bolsa-família do governo Lula e José Padilha vai exibir o documentário “Garapa” sobre a fome extrema numa mostra paralela do Festival de Berlim este ano. Espero que seja da qualidade do seu extraordinário e fundamental “Ônibus 174”.
Victor leu este conto para todos, visivelmente estarrecido, mas gostou. Cheguei a enviá-lo para a revista Caros Amigos e ele foi recusado, por não suportarem o excesso de ironias. Vamos ver o que acontece com vocês. O conto foi retrabalhado e difere do que foi mostrado a Victor.
O fato central da história é verdadeiro: tirei de uma notícia de jornal. Quando Gabriel Garcia Marquez nos mostra crianças comendo reboco das paredes das casas em “Cem Anos de Solidão”, não é realismo mágico. Isto acontece na América Latina.
Nelson
De seios e anseios
A visita da morte foi marcada para o fim da tarde. Ao meio dia a mãe voltou para o barraco com as mãos vazias de alimentos que trouxessem algum alívio. A competição pelas iguarias do lixão da vizinhança tinha sido acirrada. Voltou para casa apenas com pneus e sapatos velhos, sem valor de troca e de nenhuma ajuda: não conhecia a técnica de cozinhar calçados e comê-los, saboreando inclusive os pregos, ensinada pelo Carlitos de Em Busca do Ouro. A mãe resistiria, provavelmente, até o outro dia; os dois filhos pequenos não: só agüentariam talvez mais seis horas de inanição. Adoentada, não saiu na última quinzena e os mantimentos da cozinha se reduziram a uma caixa de fósforos. Havia encontrado forças para uma odisséia naquela manhã, mas os deuses malditos com que travou contendas foram mais astutos.
A mãe colhia o que plantou, ou melhor, não plantou. Senão, vejamos: nunca se impôs diante do ex-marido que a ameaçava de morte caso exigisse pensão para os filhos; nunca se aventurou a descer do Nordeste para as terras prometidas do Sudeste; nunca se atreveu a juntar-se a manifestantes sem-terra e figurar entre foices e machados de companheiros e as metralhadoras de guardiões da ordem; nunca tomou conhecimento da terceira revolução industrial em curso, não se alistando em aulas de informática; nunca poliu seu analfabetismo hereditário, de forma que fosse bem aceita como empregada em casa de gente-bem; nunca entendeu de que forma o marido poderia ter lhe dado prazeres sem que filhos irrompessem como punição; nunca deu ouvidos aos que lhe sugeriram vencer supostos pruridos judaico-cristãos e vender o que trazia entre as pernas como se vende as mãos e o intelecto ao patrão nosso de cada dia.
Com esse anti-curriculum-vitae aconteceu o inevitável: as crianças não tinham mais forças nem para chorar. A mãe prostrou-se diante delas e resolveu esperar que o destino tecesse delicados anjos de uma inefável sinfonia cósmica. Uma centelha vinda de obscuras regiões a fez envergonhar-se de suas omissões e a moveu a sair em busca de alternativas. Sim, não tinha sido bem sucedida pela manhã, mas afinal aquele campo de batalha não era o único na cidade.
Ao chegar nas proximidades do hospital, reconheceu uma paisagem familiar e regozijou-se: era um território de exploração todo seu. Vasculhou os diversos montes de terra e encontrou apenas seringas, tubos, plásticos e vidros. Já estava quase desistindo quando seus olhos brilharam: um seio estava como que escondido por pequenas folhagens. Agarrou o ouro descoberto com sofreguidão, ergueu-o no ar como se ela fosse um padre com o cálice sagrado na missa e voltou para casa afoita, numa desesperada alegria.
Duas horas antes da morte marcada fez uma boa sopa com o seio, serviu aos rebentos duas porções maiores e ficou com o restinho. Lembrou-se de seus próprios seios a alimentarem os filhos recém-nascidos. Agora era outro seio, anônimo, decepado, que insuflava vida a eles. Emocionou-se ao ver cores surgirem nas faces pálidas das crianças. A epifania, entretanto, foi breve. Logo imaginou o dia seguinte, o que seria? Outra centelha acudiu-lhe. Sim, se havia encontrado um seio por entre os destroços do lixão cirúrgico, por que ali não encontraria outro, o par correspondente, quem sabe? Ou então surpresas de maior vulto...
E assim, tendo ainda uma hora e meia de claridade pela frente, saiu de casa, esbaforida, em direção à sua pessoal maravilha do mundo. Estava tão satisfeita por vislumbrar que tapearia a morte por mais um dia que não quis de forma alguma pensar nos dias seguintes. Seu pensamento se concentrava nos achados que ainda faria naquela tarde. Mas e se outros já tivessem descoberto seu inusitado jardim das delícias? Uma terceira centelha assomou-lhe o espírito, como que advinda de um anjo torto que lhe lembrava como estava sendo gauche na vida, tranqüilizando-a um pouco em sua ansiedade: Mãe sossegue, a vida é isso que você está vendo; hoje come, amanhã não come, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será...
Mas encontrasse o que fosse, não adiantaria: a morte acabou seus trabalhos mais cedo naquela tarde e visitou sua casa no mesmo momento em que ela, ainda que sozinha, quase que surtando, não encontrava nada que se aproveitasse naquele terreno que acabou amaldiçoando com toda a força de suas entranhas.Mas ninguém ouviu seu grito. Ao voltar para casa lembrou-se tarde demais que tinha uma cadelinha. Olhou de início o animal com muita raiva, mas depois se alegrou um pouco: um ser vivo ainda lhe faria companhia. Até quando não sabia. Mas isto não lhe trazia mais nenhuma angústia. Já não estava nem preocupada em dar um enterro digno para os filhos. Simplesmente abraçava o animal sentindo-se quase que vitoriosa. A morte vencera, claro. Mas ela passou a ter a lucidez louca de que tinha feito o que podia. Até riu, nervosamente.
De seios e anseios
A visita da morte foi marcada para o fim da tarde. Ao meio dia a mãe voltou para o barraco com as mãos vazias de alimentos que trouxessem algum alívio. A competição pelas iguarias do lixão da vizinhança tinha sido acirrada. Voltou para casa apenas com pneus e sapatos velhos, sem valor de troca e de nenhuma ajuda: não conhecia a técnica de cozinhar calçados e comê-los, saboreando inclusive os pregos, ensinada pelo Carlitos de Em Busca do Ouro. A mãe resistiria, provavelmente, até o outro dia; os dois filhos pequenos não: só agüentariam talvez mais seis horas de inanição. Adoentada, não saiu na última quinzena e os mantimentos da cozinha se reduziram a uma caixa de fósforos. Havia encontrado forças para uma odisséia naquela manhã, mas os deuses malditos com que travou contendas foram mais astutos.
A mãe colhia o que plantou, ou melhor, não plantou. Senão, vejamos: nunca se impôs diante do ex-marido que a ameaçava de morte caso exigisse pensão para os filhos; nunca se aventurou a descer do Nordeste para as terras prometidas do Sudeste; nunca se atreveu a juntar-se a manifestantes sem-terra e figurar entre foices e machados de companheiros e as metralhadoras de guardiões da ordem; nunca tomou conhecimento da terceira revolução industrial em curso, não se alistando em aulas de informática; nunca poliu seu analfabetismo hereditário, de forma que fosse bem aceita como empregada em casa de gente-bem; nunca entendeu de que forma o marido poderia ter lhe dado prazeres sem que filhos irrompessem como punição; nunca deu ouvidos aos que lhe sugeriram vencer supostos pruridos judaico-cristãos e vender o que trazia entre as pernas como se vende as mãos e o intelecto ao patrão nosso de cada dia.
Com esse anti-curriculum-vitae aconteceu o inevitável: as crianças não tinham mais forças nem para chorar. A mãe prostrou-se diante delas e resolveu esperar que o destino tecesse delicados anjos de uma inefável sinfonia cósmica. Uma centelha vinda de obscuras regiões a fez envergonhar-se de suas omissões e a moveu a sair em busca de alternativas. Sim, não tinha sido bem sucedida pela manhã, mas afinal aquele campo de batalha não era o único na cidade.
Ao chegar nas proximidades do hospital, reconheceu uma paisagem familiar e regozijou-se: era um território de exploração todo seu. Vasculhou os diversos montes de terra e encontrou apenas seringas, tubos, plásticos e vidros. Já estava quase desistindo quando seus olhos brilharam: um seio estava como que escondido por pequenas folhagens. Agarrou o ouro descoberto com sofreguidão, ergueu-o no ar como se ela fosse um padre com o cálice sagrado na missa e voltou para casa afoita, numa desesperada alegria.
Duas horas antes da morte marcada fez uma boa sopa com o seio, serviu aos rebentos duas porções maiores e ficou com o restinho. Lembrou-se de seus próprios seios a alimentarem os filhos recém-nascidos. Agora era outro seio, anônimo, decepado, que insuflava vida a eles. Emocionou-se ao ver cores surgirem nas faces pálidas das crianças. A epifania, entretanto, foi breve. Logo imaginou o dia seguinte, o que seria? Outra centelha acudiu-lhe. Sim, se havia encontrado um seio por entre os destroços do lixão cirúrgico, por que ali não encontraria outro, o par correspondente, quem sabe? Ou então surpresas de maior vulto...
E assim, tendo ainda uma hora e meia de claridade pela frente, saiu de casa, esbaforida, em direção à sua pessoal maravilha do mundo. Estava tão satisfeita por vislumbrar que tapearia a morte por mais um dia que não quis de forma alguma pensar nos dias seguintes. Seu pensamento se concentrava nos achados que ainda faria naquela tarde. Mas e se outros já tivessem descoberto seu inusitado jardim das delícias? Uma terceira centelha assomou-lhe o espírito, como que advinda de um anjo torto que lhe lembrava como estava sendo gauche na vida, tranqüilizando-a um pouco em sua ansiedade: Mãe sossegue, a vida é isso que você está vendo; hoje come, amanhã não come, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será...
Mas encontrasse o que fosse, não adiantaria: a morte acabou seus trabalhos mais cedo naquela tarde e visitou sua casa no mesmo momento em que ela, ainda que sozinha, quase que surtando, não encontrava nada que se aproveitasse naquele terreno que acabou amaldiçoando com toda a força de suas entranhas.Mas ninguém ouviu seu grito. Ao voltar para casa lembrou-se tarde demais que tinha uma cadelinha. Olhou de início o animal com muita raiva, mas depois se alegrou um pouco: um ser vivo ainda lhe faria companhia. Até quando não sabia. Mas isto não lhe trazia mais nenhuma angústia. Já não estava nem preocupada em dar um enterro digno para os filhos. Simplesmente abraçava o animal sentindo-se quase que vitoriosa. A morte vencera, claro. Mas ela passou a ter a lucidez louca de que tinha feito o que podia. Até riu, nervosamente.
Nelson Rodrigues de Souza
Como você costuma dizer:FORTÍSSIMO!!!Não é exagero,eu sei...apenas, as pessoas não tem coragem de escrever a dura realidade.Não é fixão...infelizmente, verdadeiro.Até o próximo comentário.Ana
ResponderExcluirAna ,corrigindo fiquei tão perplexa com o texto que errei a palavra ficção colocando, errôneamente, "fixão",que horrorrrrr!!!!seios e fixão!!!!!!!
ResponderExcluirVolto e tento entender o que move essa mulher desesperada.
ResponderExcluirApanha orgulhosa do lixo hospitalar um seio sem vida, aparentemente saudável, para transformá-lo em alimento para os filhos.
Sublima a própria fome num gesto de amor.
Penso que o Inconsciente move ,sem dúvida, as pessoas e, comovida concluo:
Nesse gesto ela buscava nutrir ou quem sabe, apagar de vez, o sofrimento que estavam vivendo.
Ver os filhos de barriguinha cheia e faces rosadas, alimentados por um seio...tão sem vitalidade quanto o dela, no aspecto físico mas, no da Alma, pulsava o Amor que só as mães sentem...
Fazer com que eles durmam...descansem... e sonhem...sem o vazio da fome que deforma a Alma e os sentimentos...sábio Inconsciente!!!!!De crianças famintas a anjos de faces coloridas ....
Cara,
ResponderExcluirMuito bacana...eu creio até que daria um bom curta - o qual, a exemplo de "Pixote", "Irreversível" e "Cavalo de Duas Pernas", 3 diferentes longas dos quais gostei muito, não assistiria pela 2ª vez.
Vale a pena ler estas matérias do JB, sobre a questão da fome que vão adiante.
ResponderExcluirNelson
JB- 13 de fevereiro de 2009
Depois dos tiros, a fome
Carlos Helí de Almeida
BERLIM
Um ano depois de sair vitorioso do Festival de Berlim com Tropa de elite, filme em que o protagonista, um oficial do Bope, apontava o dedo para os responsáveis pela violência no Rio, o diretor José Padilha retornou à maratona alemã com um documentário que evita indicar culpados pela fome no Brasil. Garapa, longa que retrata a batalha de três famílias cearenses contra a miséria extrema, fez sua estreia mundial anteontem à noite na mostra (não competitiva) Panorama para um público atônito, que recebeu as quase duas horas de duração com um silêncio profundo. O título refere-se à mistura de água com açúcar servida a crianças como principal alimento em regiões do Nordeste por famílias que vivem abaixo da linha da miséria.
- Este silêncio talvez seja o maior aplauso que seu filme talvez virá a receber - comentou um espectador com Padilha, após a sessão.
Rodado com "recursos básicos, como o assunto que queríamos abordar" - como filme super-16mm e som direto - Garapa acompanha a rotina na casa de Robertina (que cria 11 filhos) Rosa (com três crianças) e Lúcia (e suas três meninas). As duas primeiras vivem, respectivamente, na periferia de Choró, e em Vila Olho d'Água, na zona rural. Lúcia mora nas cercanias da capital, Fortaleza. Além da falta do que comer, algumas crianças desenvolvem alergias e feridas no corpo, resultado da infestação de moscas e ausência de saneamento apropriado.
- Já começo a ouvir comparações entre Tropa e Garapa, mas é preciso lembrar duas diferenças básicas entre os dois: Tropa fala sobre um problema local, específico do Rio; Garapa mostra uma tragédia universal, que pode ser encontrada na África, na Índia, na China ou mesmo nos EUA. A segunda grande diferença é que as pessoas que sofrem com a fome não são retratados no cinema, ao contrário de Tropa, que é protagonizado pela polícia e pela classe média - distinguiu Padilha, em entrevista ao Jornal do Brasil. - O objetivo é mostrar a desnutrição severa do ponto de vista daqueles que lidam com o problema.
O filme abre com números impressionantes: 920 milhões de pessoas no mundo (dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação - FAO), vivem com o mínimo básico de proteínas. Deste total, 11 milhões estão no Brasil, na avaliação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). A ideia para o filme surgiu de uma conversa entre Padilha e um amigo que trabalha no instituto, que centraliza pesquisas sobre os usuários do programa Fome Zero. O diretor, que volta ao gênero que o lançou, com Ônibus 174 , em 2002, critica aqueles que veem o programa federal apenas como um instrumento assistencialista.
- Os R$ 50 distribuídos pelo governo não resolvem o problema da fome no país, mas é um progresso nesse caminho. Ele não faz muita diferença para aqueles que vivem abaixo da linha de pobreza, mas trouxe grandes vantagens para aquelas famílias que estão no limite - diz o diretor.
Apenas uma das famílias mostradas em Garapa, a de Rosa, recebe recursos do Fome Zero. Outras, como a de Lúcia, que sequer tem o registro dos filhos, essenciais para o cadastramento no projeto, não entram nas contas do governo.
- É difícil que pessoas como Lúcia consigam sair sozinhos desse buraco. Elas fazem parte de um ciclo de vicioso de privações, transmitida de geração para geração - alerta Padilha, que se comprometeu a doar toda a arrecadação do filme às três famílias que protagonizam a produção.
Garapa tem estreia prevista para abril no circuito brasileiro, inicialmente com quatro cópias. O diretor, que reconhece as dificuldades de vender "um filme duro e pesado como este", pretende mostrá-lo no maior número de festivais nacionais e internacionais possível. Já está, inclusive, confirmado para participar do Cine-PE, em Pernambuco, e o de Guardalajara, no México.
- Queremos que ele seja usado por ONgs que lidam com o tema. Estamos costurando um acordo com a FAO. A fome é um problema mundial, que pode ser resolvido se houve um comprometimento da sociedade. Segundo a ONU, seriam necessários US$ 30 milhões por ano para aplacá-lo.
É uma espécie de depoimento aberto
Francisco Menezes,
DIRETOR DO INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS (IBASE)
Quando José Padilha nos procurou, há cinco anos, ele apresentou um tema que, além de ser uma preocupação nacional e mundial, gerava um incômodo interno muito grande. Pudemos passar muito da nossa experiência sobre o assunto, e, particularmente, pude perceber que ele tem uma sensibilidade apurada para as causas sociais. Agora, o cinema de José Padilha nos dá uma grande oportunidade de fazer com que essa preocupação e consciência se ampliem.
Posso dizer que, desde que o filme foi rodado, durante um mês entre a zona rural do Ceará e uma favela urbana de Fortaleza, em 2005, o Brasil deu bons passos para melhorar sua realidade dentro do tema que o filme trata: a pobreza extrema de não conseguir satisfazer necessidades fundamentais, e não a pobreza de se viver com dificuldades. Políticas públicas de transferência de renda, como o Bolsa Família, obtiveram resultados positivos. O repasse de recurso para alimentação escolar também aumentou nos últimos quatro anos, mas sabemos que ainda não é o suficiente. É claro que esses programas devem ser complementados por outros que criem condições para que as famílias possam dispensar esse sistema. Mas vale lembrar que a assistência deve ocorrer sempre que for necessário, porque é uma garantia de direito.
Para se ter uma idéia, o filme cita uma pesquisa realizada pelo Ibase, em 2007, que aponta que 11 milhões de pessoas ainda vivem num quadro de insegurança alimentar. Vivemos num país extremamente desigual, com bolsões de pobreza extrema que se equiparam aos países mais pobres da África. E foi para facilitar o acesso do diretor a esses lugares que o Ibase também ajudou, já que já havíamos realizado trabalhos com essas famílias. Todo o processo durou cerca de um mês. Tempo necessário para a aproximação com os moradores e para a filmagem. A versão final é um recorte do que o diretor pôde observar. São três famílias escolhidas por ele, que filmou o dia a dia de muitas outras.
Acredito que Garapa seja um depoimento aberto, muito mais amplo que a questão física e objetiva de sentir fome e de não ter o que comer. A fome de Garapa não é só a carência de energia alimentar, mas sim o medo e a necessidade de busca permanente de saídas.
As famílias que servem de exemplo ao filme, hoje já recebem auxílio. Tenho certeza que o Brasil está melhorando, mas deve estabelecer passos mais largos. A situação grave da fome no país não está perto de ser resolvida e devemos somar esforços para que esses grupos mais vulneráveis deixem de ser invisíveis aos olhos da sociedade. Muitos não têm documentos e não podem assumir a condição de cidadãos. A fome no Brasil é mais ampla do que parece.