domingo, 18 de janeiro de 2009

Alquimia da Memória Cinematográfica


Festivais Internacionais de Cinema, como o do Rio de Janeiro e a Mostra de São Paulo têm o inegável grande mérito de nos atualizar com o que de melhor é feito no Cinema Contemporâneo e na maior parte não chega ao acanhado circuito exibidor brasileiro, ainda que haja esforços empresariais pontuais mais ousados do chamado “circuitinho de arte”. Mas mergulhar num mar de filmes em quinze dias tem o efeito de banalizar nossa apreensão e memória do que foi visto, por mais que sejamos pródigos nesta área (“meus olhos ficam cegos de tanto ver”). Eu, por exemplo, que tenho memória emocional de elefante, modéstia à parte, empaco (dentre diversos casos) em várias tentativas de recuperar um filme visto, mas perdido. É o caso de uma obra espanhola que vi num festival do Rio há anos atrás, numa época em que não havia um alentado catálogo, da qual só me lembro do contexto que era o da guerra civil e de uma seqüencia antológica, intensa e de uma poesia trágica inesquecível. Tento descobrir o nome do diretor e do filme, lembrar a trama, mas nada! Só me vem certa situação: um casal se ama deitado numa cama; as paredes e o teto começam a desabar devido a um bombardeio feroz; os amantes não têm saída; só lhes resta então transar, transar, se beijarem com sofreguidão, se acariciarem até que não mais possam sentir a vida correndo nas veias, cobertos que ficam pelos escombros. Se alguém souber que filme é este me dê as coordenadas!

Ao contrário de muita gente considero extraordinário de ponta a ponta a versão do roteiro de “AI: Inteligência Artificial” do falecido Stanley Kubrick que Steven Spielberg levou às telas. Tenho especial carinho pelas seqüências em que o menino robô é descoberto nas águas profundas por seres de outro planeta, o que vai possibilitar depois uma das mais tristes cenas já filmadas: o menino vai realizar enfim seu sonho de estar com a mãe, mas esta vai morrer, pois tem a duração efêmera de algumas horas. Assim aquele lento travelling en arrière final é bastante tocante e doloroso.

Por que contei estas duas experiências cinematográficas? Leiam o poema de cunho homoerótico adiante que escrevi e não será difícil entender.


Vestígios

Meu amor,
Se o Apocalipse chegar realmente,
Definitivamente,
Sem esses falsos alarmes que ecoam nos séculos,
Eu quero estar bem junto a ti,
Quero abraçar-te todo,
Nossos corpos nus entrelaçados,
Nossas mãos agarradinhas,
Nossos falos eriçados,
Com beijos sucessivos,
Carícias por todo o corpo
(Ah....que delícia seus pelos!...)
E nossos orgasmos,
Se possível, simultâneos,
Nós numa posição que ainda nem sei,
(são tantas!...).

O teto do nosso quarto pode então desabar,
Nossa cama quebrar,
Nossos corpos banharem-se de entulhos,
Nossas vidas escorrerem
Com nossos últimos suspiros juntos,
Tomara que rapidamente,
Para que essa nossa derradeira humana dor...
(Essa imperfeição que Deus e seus deuses,
cautelosos, preocupados com o sentido
que daríamos a este mundo,
nos impingiram )
Seja a mais breve vivida.

Assim, morreríamos até que felizes,
Pois aproveitaríamos,
Sorveríamos,
Gozaríamos a vida,
Até seus últimos instantes....
E depois, muito depois,
Muito depois mesmo,
Quem sabe?
Extraterrestres arqueólogos viriam
E não encontrariam
Só os nossos ossos já tornados pó,
Num amálgama definitivo,
Mas também as manchas
Que deixaríamos na nossa colcha
(que espero resista bem
ao trabalho sádico do tempo,
como aconteceu com o chamado Santo Sudário),
Colcha esta onde nos deitaríamos
E nos amaríamos
Pela última vez
Mas para sempre...

Nelson Rodrigues de Souza

3 comentários:

  1. Nelson, qual é a diferença entre poesia e prosa? Este texto me parece prosa em versos. O que você acha? Fred

    ResponderExcluir
  2. Fred,

    Não sou teórico de Literatura mas para mim há textos que são prosa ou poesia e outros em que há hibridismo. Este último não é meu caso aqui. Encaro o texto como duas partes que se complementam no tema mas uma é nitidademente prosa e a outra poesia. Já no texto de um Guimarães Rosa, como "Grande Sertão:Veredas" os limites entre prosa e poesia são tênues, é uma prosa poética sem dúvida.
    Nelson

    ResponderExcluir
  3. Nelson, juro que tentei descobrir o nome do filme, mas nem mesmo Grande Google foi capaz de me ajudar dessa vez (e olha que já descobri outros tantos). Quem sabe num futuro próximo, os alienígenas de A.I. possam nos ajudar a desvendar esse mistério! Inteligência Artificial é um grande filme. Tenho sempre o defendido, mas parece que poucos acreditam nisso. Quem sabe um dia, quem sabe...Wagner(Confraria)

    ResponderExcluir