quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O "Rosebud" de Cada Um


Quando vi “Cidadão Kane” (EUA/ 1941) com atenção pela primeira vez já tinha visto muitos filmes. Assim o que era revolucionário em termos de inovações formais (a profundidade de campo, os movimentos de câmera ousados, a condensação de vários tempos em uma única seqüência onde se testemunha a deterioração das relações humanas, o documental que se infiltra na ficção, etc...), enfim muitos aspectos inovadores desta obra-prima de Orson Welles eu já tinha visto em outras obras. Claro que sem a mesma potência. Só “O Ano Passado em Marienbad” e “Hiroshima Mon Amour” de Alain Resnais superariam pra mim a grandeza de “Cidadão Kane” com relação à ousadia formal, mas isto não é o que mais me arrebata no filme, obra que revolucionou o cinema e já apareceu em todas as listas mais empenhadas como o melhor filme da História do Cinema. Algo que hoje é questionado. Mas o que não se questiona hoje?

Por que ressalto estas questões? Porque o que mais me impressionou e me tocou em “Cidadão Kane” é o tema da vocação do ser humano, que perpassa o filme o tempo todo e fica mais claro quando descobrimos que o trenó da infância chamado Rosebud, que é queimado, era aquilo de que mais o protagonista Charles Foster Kane tinha nostalgia e saudades. O magnata da imprensa, político fracassado, homem de relações conflituosas com suas mulheres (sendo que com uma delas tentou impor ao mundo uma carreira fake como cantora de ópera), este homem que exerceu muitos poderes, a rigor, era uma pessoa não vocacionada para o poder. Ele foi impelido a buscá-lo. Foram circunstâncias alheias à sua vontade que acabaram mudando e moldando seu destino, ao receber uma herança e o que chamam de boa educação, mas tendo de ficar longe de sua família e de seu trenó....

Este tema da vocação sempre me perseguiu também. Daí minha, nem tão modesta assim, identificação com o drama vivido por Charles Foster Kane. Atualmente este tema é cada vez mais importante e o filme afirma sua grandeza, mesmo que a estética trabalhada não impressione tanto depois de milhares de filmes sonoros que vieram depois.

Por que este tema é atualíssimo? Porque vivemos num mundo e num país em que não há mais escuta para o que deveria ser a vocação de cada ser humano. Poucos acabam fazendo realmente aquilo pelo qual tem paixão. Como ganhar dinheiro se transformou num fim, não num meio, há muita gente por aí que nem questiona mais se a atividade em que está trabalhando, formal ou informal, realmente é aquela que lhe daria mais prazer e felicidade. Por exemplo: o número de pessoas que procuram estudar ciência da computação, num nível menor ou mais elevado, é impressionante. O pior é que muitos estudarão o que não gostam profundamente e o mercado cruel é capaz de não lhes absorver, pois até mesmo esta área está tendendo à saturação.

O Brasil num aspecto (façamos justiça...), depois da eras FHC/Luis Inácio está cada vez mais moderno com certeza....O que encontramos por aí de motoristas de táxi que são advogados, engenheiros, administradores de empresa, arquitetos, etc....é impressionante!....Não é um luxo??? Outro dia olhei para um taxista e nos reconhecemos mutuamente. Ele, bastante sem graça, lembrou que era um dos subgerentes da agência do Itaú com a qual lido e que por questões de salário deficiente tem de fazer uns bicos semanalmente no trânsito para sobreviver, pagando pensão à ex-mulher e ajudando uma mãe com rala aposentadoria. Detalhe: o Itaú que agora comprou o Unibanco faz parte de um dos setores que mais teve ganhos nos últimos anos com a elevada taxa de juros...

Quantos de nós estamos também sofrendo pelo Rosebud perdido? O pior são aqueles que quando se derem conta disto será tarde demais e só lhes restará derrubar o globo de vidro no chão e balbuciar “Rosebud”, como último suspiro, conforme faz o Cidadão Kane.

O “idiota da objetividade”, criação de Nelson Rodrigues, aquela criatura que só acredita piamente nos dogmas da ciência tem sérios motivos para não gostar em parte de “Cidadão Kane” e considerar que a obra tem um sério erro de lógica no roteiro.

Senão vejamos: o filme é todo estruturado nas buscas que um jornalista faz para entender porque Charles teria dito “Rosebud”. Afinal qual o sentido desta palavra? Que força simbólica ela teria? A questão é que vemos numa das seqüencias iniciais Charles na cama derrubando o globo no chão ritualisticamente, espatifando-o e dizendo “Rosebud” sem que haja uma testemunha sequer! Quando a empregada entra no quarto, isto já foi dito...Se ninguém testemunhou o que o protagonista disse no leito de morte, como isto é um motivo de pesquisa para o jornalista?

O crítico Luiz Nazário que levantou esta questão nos dá a chave estética e emocional para compreendermos este “erro de lógica” que escandaliza o personagem rodrigueano: nós espectadores ouvimos o que o Cidadão Kane disse como última palavra e isto é feito de uma forma sensorial tão forte, com o globo contendo a casa de infância, que basta. Somos imediatamente tomados pela magia/energia desta palavra! Assim acreditamos cinematograficamente na busca do jornalista na sua decifração. Que ninguém saberá a resposta sobre o que é Rosebud, só nos espectadores, é mais um dos grandes sortilégios da História do Cinema que o filme traz. Que este mistério resolvido pra nós esteja associado com este tema crucial da condição humana que é a realização de nossas vocações, sem que sejamos levados pela roda-viva “que carrega o destino pra lá”, desprezando nossa “voz ativa que quer no destino mandar” é muito comovente. Assim mais do que todas as inovações estéticas de “Cidadão Kane”, o que mais me desnorteia na obra é esta aflição, esta angústia da vocação perdida, que consumiu a vida de Charles Foster Kane e se bobearmos pode consumir a nossa.

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. oi nelson, estou visitando seu blog, vou ler suas considerações e nos falamos mais tarde, beijos carinhosos,
    jorge caê

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  2. Muito bom ler os bem humorados, sensíveis e inteligentes comentários do Nelson sobre o cinema... e a vida... Ecoam as considerações recentes de Todorov de que muitos outros andam esquecendo de que a arte serve para iluminar, colorir, enriquecer a experiência humana, nosso cotidiano atulhado de bobagens e rotina...Obrigado, Nelson!

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