quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Essa Mulher, Vera Drake


"Vera Drake (magnificamente interpretada por Imelda Staunton, premiada com a Copa Volpi de melhor atriz em Veneza) pratica o bem sem olhar a quem ou receber qualquer tipo de recompensa financeira.É a imagem da ingenuidade e da bondade vestida em um avental sujo de ovo, fadada a sucumbir sob o peso da truculência das instituições."
Carlos Heli de Almeida –J.B.- Revista Programa, de 3 a 9 de junho de 2005

Essa mulher "de celulóide", que fora do seu trabalho como faxineira, dos cuidados com a mãe já bem velha e a lida com os afazeres domésticos, cuidando do marido e dois filhos, dedica seu tempo restante, sem que a família saiba, durante anos, a fazer abortos clandestinos em mulheres sem a menor condição de arcarem com a responsabilidade de terem filhos (longe dos ricos que compram a cumplicidade de médicos para fazerem esse ato); essa mulher que depois de presa, se entrega totalmente assumindo todas "as culpas" que lhe imputam, deixando um vazio incomensurável na família; essa mulher que era enganada por uma falsa amiga que lhe apresentava mulheres necessitadas de aborto, cobrando sorrateiramente umas libras esterlinas, as quais Vera jamais almejou;....enfim essa mulher (construída esplendidamente pelo diretor Mike Leigh e por Imelda, um personagem já antológico como Cabíria de Giulieta Masina/Fellini, Dora de Fernanda Montenegro/Walter Salles, Adele H. de Isabelle Adjani/Truffaut ,dentre várias) tem uma dignidade que é cada vez mais escassa no mundo de hoje, principalmente, para ficarmos só na Inglaterra, onde Mike concentra a ação de seu filme, quando se compara sua integridade com um poderoso da época em que o filme foi feito como Tony "Atire Primeiro, Pergunte Depois" Blair....

Ainda que em "O Segredo de Vera Drake"(Inglaterra/2004) haja aqui e ali, certo esquematismo ( tornando o filme um tanto previsível e simplificando um pouco uma questão delicada como o aborto, uma decisão de foro íntimo em que ninguém pode legislar negativamente sobre esse direito da mulher, dado que não se impõe fé religiosa a ninguém), ainda que o filme não seja extraordinário, é uma obra obrigatória pois a personagem Vera Drake é uma das criaturas mais comoventes que as telas de cinema já nos mostraram.

A estupefação inicial do marido de Vera e depois sua solidariedade; a rejeição do filho e depois sua aceitação da mãe "delituosa"; o futuro genro que mesmo num Natal tristíssimo, o último antes de Vera ser presa, declara que "este é o melhor Natal que já passei na minha vida" e não está mentindo; o carinho da relação de Vera e seu marido; o semblante atônito de Vera, que está à mesa com familiares comemorando o futuro casamento da filha, ao receber a visita da polícia; a filha tímida que curva ainda mais o corpo depois que se depara com o aflitivo destino da mãe; a revolta da cunhada por não conseguir passar um Natal só, com o marido abastado e que não perdoa Vera por sua "nefasta" atividade; etc., tudo compõe um mosaico de sentimentos que Mike Leigh, generoso, paciente, meticuloso diretor de atores orquestra, algo que faz a grandeza do filme, ainda que este não atinja o status de obra-prima de seu "Segredos e Mentiras".

Pasolini, este artista mais do que libertário (quem duvidar que veja, dentre tantos, o sublime “Teorema”) comprou uma briga feia com as feministas italianas por se mostrar contra o aborto. Para ele que era um homem do sagrado&profano, longe de qualquer ranço democrata cristão, o que odiava, o aborto é conseqüência do fato do ser humano e suas sociedades não discutirem a sexualidade humana em todas as suas manifestações, com toda clareza, sem nenhum pudor e hipocrisia, o que, por exemplo, a Igreja Católica até hoje, ainda impede com todas as suas forças e meios. Para Pasolini em sociedades onde tais discussões se travassem a gravidez indesejada não ocorreria.

A posição de Pasolini é respeitável, mas tem se mostrado utópica. A Igreja Católica com a eleição de Bento XVI, na melhor das hipóteses andou ainda mais para trás, os fundamentalismos religiosos grassam por toda parte e Mike Leigh está coberto de razões em trazer o tema à tona. Seu filme ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 2004, mas tinha sido rejeitado no Festival de Cannes do mesmo ano, o que mostra o quanto o tema incomoda e há uma crise de critérios de avaliação.

Com relação à eutanásia, Alejandro Amenábar junto com o estupendo Javier Barden interpretando Ramon Sampedro ( tetraplégico que lutou durante anos para ter o seu direito a uma morte com dignidade, dado que não considerava mais sua vida digna), num nível superior ao de Leigh, com transbordante poesia verbal e visual e uma galeria de personagens fascinantes, também toca num tema espinhoso, que o autoritarismo das sociedades faz com que seres humanos sejam jogados numa encruzilhada, justamente por quererem exercer seu livre-arbítrio. E nunca é demais repetir: ninguém pode impor religiosidade de qualquer seita a ninguém.

Em “Um Assunto de Mulheres”, Claude Chabrol também trata do tema do aborto, mas com um foco bastante diverso de Mike: Isabelle Huppert (mais uma vez com desempenho irretocável ) interpreta uma mulher que tendo seu marido lutando na guerra, se vê obrigada, para sobreviver, a fazer abortos. Isto ela faz com naturalidade, mas sem deixar de carregar certa raiva interna, ao contrário de Vera Drake que sente prazer em ajudar o próximo. A aborteira de Chabrol é presa, condenada à morte e antes do fim, numa das mais impactantes seqüências do Cinema, reza uma Ave Maria negra, trocando bendito fruto por maldito fruto, dentre outras heresias. Chabrol é extremamente fiel à persona da criatura que criou, assim com Leigh ao nos mostrar uma Vera assustada com o que acaba lhe acontecendo mas estóica, firme, uma figura heróica, ao seu modo uma santa profana.

Com iluminação sombria, “O Segredo de Vera Drake”, apesar da solidão, do vazio da família já sem Vera na última cena, é um filme que paradoxalmente ao impasse construído, nos traz luz, muita luz: aquela que irradia dos olhos de Vera ao sentir que está ajudando as pessoas em situações aflitivas. Pode-se contra-argumentar que de boas intenções o inferno está cheio, mas aqui nesse nosso inferno terrestre, de más intenções já estamos muito mais atolados até o pescoço e Deus parece, está esgotado, se cansando do drama de todos nós, como o personagem de “Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues, vivido com maestria por Antônio Fagundes, perfeito ao conjugar enfado, sabedoria, tolerância, impaciência, preguiça e outros sentimentos humanos e divinos contraditórios. Enfim, se de Deus temos especulações, sentimos sua fumaça e deduzimos que há seu fogo, com relação a Vera há uma certeza: é realmente divina.

2 comentários:

  1. Muito pertinente sua análise sobre Vera Drake.Um filme que eu gostei muito. À respeito do assunto central do filme devemos desmaracar os conceitos morais e religiosos, pois só a mulher que gesta uma gravidez indesejada tem o direito de optar ou não pelo o aborto.

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  2. Quis dizer: desmascarar.

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