segunda-feira, 11 de julho de 2011

Diversas Faltas Que Movem Seres Humanos











































































Diversas Faltas Que Movem Seres Humanos

Os textos contém spoilers, ou seja, detalhes importantes das narrativas/imagens são revelados para as análises pretendidas.

1- “Poesia” de Lee Chang-dong (Coréia do Sul/2010)

Em “Chantal Akerman, de Cá” de Leonardo Luiz Ferreira e Gustavo Beck ( já comentado no Blog) , Chantal diz que num filme devemos sentir o tempo passar, pois caso contrário será um passatempo, uma perda de tempo (isto de forma simplificada). Em “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”, conto de Jorge Luiz Borges tem-se a noção de que não somos obrigados a escolher um caminho só numa bifurcação, mas podemos escolher os dois ( noção que, dizem, antecipou teorias da física quântica). Assim num filme devemos e não devemos sentir o tempo passar. É o caso do fascinante, maravilhoso e dramático “Poesia” de Lee Chang-dong com seus 139 minutos que são muito bem vividos pelo expectador, sem se arrastar, sem que ele saia do cinema com a ideia de perda de tempo: muito pelo contrário.

Assim como “Incêndios” de Denis Villeneuve, há meses em cartaz no Rio de Janeiro, muito merecidamente, pode ser resumido sinteticamente como a “história” de duas cartas entregues e lidas (“Carta ao Pai” e “Carta ao Filho”, dadas à mesma pessoa, mas de estados de espírito antagônicos), “Poesia” pode ser tido como a “história” de um poema e as imagens que suscita, “A Carta de Agnes”, criando nos dois filmes momentos de antologia na História do Cinema, pelo impacto emocional, dramático e poético que geram. Vejamos como e por que isto se dá em “Poesia” ( “Incêndios” já foi comentado no Blog).

Mija (Yoon Jeong-hee, num trabalho extraordinário, num personagem perene para o Cinema, como Gelsomina e Cabíria de Giulietta Masina e para não esquecer o Brasil, Dora de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” etc.) é uma avó que passa a cuidar do neto depois que a mãe se separou do marido e foi morar longe de Seul. Ela está com mal de Alzheimer, começando a esquecer palavras cotidianas. Instintiva ou conscientemente justamente por isso, passa a realizar algo que sempre quis: um curso de criação literária no que diz respeito à poesia, em que lidará com a força das palavras em sua maior concentração.

O professor lembra aos “alunos” (“samba e poesia não se aprende na escola”- complementaria Noel Rosa...) que é preciso buscar por novos olhares diante do que vemos cotidianamente muitas vezes, sem prestar maior atenção, como por exemplo uma maçã. Quer que todos ao final do curso apresentem um poema. Mija passa a buscar outros olhares para uma maçã, para as árvores etc.

“Poesia” transcorre em dois mundos paralelos que se imbricam: a busca de Mija pela expressão poética, a ânsia por ter e reconhecer um momento de inspiração e a barra pesada que vai se criando em torno dela e que a move a tomar dificílimas decisões. Seu neto durante meses, junto com colegas de escola, participou do estupro de uma garota. Esta se suicida e deixa uma carta contando tudo. Os diretores da escola e os pais destas crianças, para abafar o caso, têm a ideia de pagarem uma polpuda quantia à mãe da garota, para que ela não leve adiante o caso. O dinheiro deve vir da divisão da quantia entre os pais e Mija como a avó, que é informada e convidada a contribuir. Caso contrário o futuro dos filhos e do neto estará comprometido gravemente.

Impressiona a sem-cerimônia como entre almoços/jantares os pais discutem este tema espinhoso, sem pensar em nenhuma vez em suas responsabilidades enquanto educadores dos filhos monstrinhos, quem são/serão estes que estão criando, os quais são mostrados também sem nenhum vestígio de culpa. Tudo isto ainda contando com o colaboracionismo de autoridades da escola. Neste particular a tão decantada prosperidade econômica da Coréia do Sul, seu fabuloso sistema de ensino (que seriam exemplos para o Brasil, segundo uma visão simplesmente vesga e economicista), mostra seus nebulosos e sinistros pés de barro.

Mija ganha uma modesta aposentaria e faz bicos cuidando de um velho já com problemas motores e de paralisia facial, dando banho nele, dentre outros cuidados. Num dos banhos, o velho que tinha tomado viagra fica excitado, diz que não quer morrer sem sentir prazer sexual novamente, a assusta e a faz ir embora. Quando os pais a apertam para conseguir a alta quantia que seria sua parte, ela retorna aos cuidados do velho, planeja e “executa” uma relação sexual com ele. Volta outro dia, com ele em família, manda-lhe um bilhete dando ciência que precisa da quantia desejada. O velho reage: “Isto é uma chantagem?”. “Entenda como você quiser”- responde ela. Ele acaba então cedendo. Ela cumpre então seu papel no “ritual de suborno”.

O grande turning point ocorre a partir daí. É desta avó ( que está paulatinamente perdendo a identidade com a perda de memória, mas nada estúpida, que apesar de tudo não renunciou a andar com roupas coloridas e a tentar captar uma visão poética do mundo para expressá-la, frequentando também saraus de poesia), que surge o maior momento de dignidade do filme, em meio a tantas hipocrisias, perversões sociais e de caráter apresentadas, que só são quebradas pelos contatos nas “aulas” de poesia, encontros com aspirantes a poetas e no profissionalismo sincero dos médicos , além de jogos com raquetes e uma bola, bastante significativos e os momentos de busca por inspiração.

Mija corta as unhas do neto, pede-lhe que tome mais cuidados higiênicos com o corpo, tomando um bom banho. Liga para a mãe do rapaz e pede que ela venha urgentemente. Os dois vão à rua e passam a jogar um tênis simples com raquetes. Policiais chegam. Um deles pede que o neto dela venha com ele e a viatura vai embora. O outro passa a jogar com ela, com os dois aparentemente imperturbáveis.

Sobre a mesa do professor de poesia está um vaso de flores e um poema deixado por Mija, que ele passa a ler, sem que ela esteja presente, sendo o último dia do curso e nenhum dos outros alunos conseguiu escrever alguma coisa que fosse um poema. O poema de Mija chama-se “A Carta de Agnes”.

Por mais que seja em parte descrita, a força emocional e poética que se tem a partir daí (num filme de vários grandes momentos) é inesquecível, uma culminação com pouquíssimas precedentes no Cinema Contemporâneo, atestando a grandeza desta obra-prima, que ganhou prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2010, num ano bastante forte, bem como um de melhor filme asiático de 2010.

Com imagens acompanhadas da leitura do poema de Mija, temos alguns flashbacks de situações vividas, como um cachorro que late quando de uma tentativa de contacto com a mãe da garota morta, em que o que mais nos assusta é ver esta jovem, diante das águas que se descortinam do alto da ponte. O poema de Mija é uma projeção que ela fez do estado de espírito da jovem quando se despede da vida em direção ao outro lado desconhecido. Já a tínhamos visto numa fotografia. Agora a reconhecemos como Agnes.

A filha de Mija, agora preso e com consequências que pode-se imaginar, chega e encontra a casa vazia. A conclusão dolorosa, apesar do diretor não querer explicitá-la, é que Mija ao narrar com muita beleza em seu poema a despedida da vida pela jovem, também estava se despedindo e também se jogou nas águas. Há até quem tenha outra visão deste final. Mas pra mim e outros, esta tragédia de alguém que não vê mais sentido na vida, mas logrou atingir um grande momento de poesia, com simplicidade, como um adeus ritualístico e pungente da vida, é algo que “comove como o diabo” ( como diria Drummond) e é algo que não se esquece mais.

“Poesia” tem um ritmo lento, mas justificável em todos os seus segundos, acompanhando a sensibilidade de Mija. E faz do que poderia soar sórdido ( e em alguns momentos é mesmo), algo que se vê com o peso e o tempo necessário (ao contrário de um erro seriíssimo que Abdellatif Kechiche comete em “Vênus Negra”, uma obra que poderia ter sido brilhante, mesmo sendo dolorosa, mas que resultou over- Vide item 3).

Enfim “Poesia” é pura poesia. O que, a rigor, é ou deveria ser, a essência de toda grande arte, não só do cinema, em suas vertentes lírica, épica ou dramática, ou misturando estes elementos.

Ps1 A mosca ( ou melhor moscas) no banquete que é assistir “Poesia” é estarmos diante de uma projeção digital no Arteplex-RJ 3, num tom de fotografia tendendo a algo mais escuro e menos nítido do que vi no Festival do Rio em 2010 , numa primeira incursão ao filme, no que deve ter sido uma cópia em 35 mm. Só não saí aborrecido do cinema agora, porque mesmo assim continua uma experiência arrebatadora, em que pese sua pungência.

Até quando seremos alvos desta chantagem emocional dos exibidores com estas lamentáveis e redutoras projeções digitais daninhas sem o apuro do que lemos que acontece no Festival de Cannes, por exemplo, com projeções de maior potência e transposições muito mais bem acabadas. Ou satisfazemos nossa vontade de assistir uma grande obra a este preço artístico e monetário ou não vemos o filme na tela grande, pois neste caso (como tem acontecido) a única cópia disponível é esta mesmo. Por isso é que é cada vez maior o número de amantes do cinema que preferem ver filmes baixados no computador. Digital por digital preferem muito mais a melhor definição de suas televisões ou da própria tela do computador mesmo.

Será que cinéfilos, críticos, ensaístas, professores, jornalistas, cineastas etc. são realmente impotentes para reivindicar e exigir com força soluções para este problema que se arrasta e nos amofina há anos? Se existe esta despolitização e desorganização ( reinando o “salve-se quem puder”) até para aquilo que tanto amam, imaginem para outras questões....

Ps2 Consultando O Globo de sexta-feira, 8 de julho, constato que “Poesia” que na segunda semana só estava em uma única sessão no Estação Sesc Botafogo 1, simplesmente desapareceu do circuito. Não é exibido nem nas demais salas do Estação Sesc Botafogo, nem em salas do Estação Laura Alvim (onde filmes ganham sobrevida).Um absurdo. Um crime de lesa-cultura. O filme demorou demais para ser lançado no Rio. A janela que criou desde seu lançamento em São Paulo há meses, permitiu que até mesmo em DVD já fosse lançado. Se não voltar ao circuito, o que pode acontecer com os trabalhos alternativos do Cine Glória e do Jóia de Copacabana, vale muito a pena o conhecer em DVD mesmo. O trailer e cartaz do filme são totalmente enganadores: passavam a ideia de um filme lírico, o que ele é em parte, mas não se resume a isso.

2. “Meia Noite em Paris” (EUA/2011) de Woody Allen

Um roteirista de cinema americano, já cansado deste trabalho, com a meta maior de ser um romancista, vai a Paris com a noiva e família dela. Desencantado com o presente, vê à meia noite, um carro chegar que o leva até a uma reunião de artistas nos anos 20, como Ernest Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Picasso, Buñuel, Dali, Gertrude Stein, dentre outros. Hemingway lhe dá conselhos para ser um bom escritor (o principal é não ter medo de nada), mas é Gertrude quem lê seu romance em andamento e lhe dá sugestões, como fazia na época com outros escritores.

Estes encontros ocorrem em outras noites, sua relação com a noiva e familiares vai se desvanecendo, até que conhece Adriana ( Marion Cottilard, uma diva como sempre), que foi amante de Picasso, dentre outros, tendo fixação na Belle Époque e mais metamorfoses interiores ocorrem. Os dois empreendem mais uma viagem no tempo e Gil e Adriana passam a ter contacto com artistas como Toulouse-Lautrec, dentre outros. Mas mesmo nesta era, também sentem que as pessoas têm nostalgia de tempos passados que não viveram. Estas experiências todas vão mudar de vez a visão de mundo de Gil e impulsioná-lo para novos caminhos, com romance escrito com base nestes fatos e experimentado coisas simples, mas deliciosas para ele, como andar na chuva acompanhado, na Paris contemporânea.

Um Woody Allen é um Woody Allen é um Woddy Allen é um Woody Allen, diria Gertrude Stein.

"Meia Noite em Paris" (por mais desgastada que esteja esta palavra) é uma obra-prima. O melhor de Woody Allen desde "Desconstruindo Harry"( 1997). E gosto muito de todos os filmes intermediários que vi entre estes dois, até mesmo de um mais despretensioso como "O Escorpião de Jade", engraçadíssimo. Perdi desta fase "Dirigindo no Escuro", assim como mais no passado não vi (por bobeira) "Memórias". Fora estes dois, assisti todos os filmes de sua genial carreira. Não tem nenhum que eu não tenha gostado. Todos de bom para cima.

"Meia Noite em Paris" tem sabor mais especial para quem conhece um pouco da história e da obra dos artistas que aparecem. Sensacional Owen Wilson (o escritor Gil) como mais um alter-ego do diretor (um dos melhores que ele já teve, senão o melhor). Impagável a cena em que Gil sugere a um Buñuel confuso, nos anos 20, a ideia de um fazer um filme que seria no futuro "O Anjo Exterminador", dentre várias outras sequências brilhantes.

A beleza suprema de Paris é captada com o mesmo carinho que dedicou ao coração da big apple em "Manhatan". Há fortes toques de "A Rosa Púrpura do Cairo", outra obra-prima, com entradas e saídas em espaços de sonho, “irreais”. O lirismo deste também está bastante presente em "Meia Noite em Paris".

Abrindo mão de suas fixações bergmanianas como " vivemos debaixo de um céu escuro e cruel, tendo a morte como única certeza, com um Deus silencioso", Woody nos conduz à visão de que o temos mesmo de mais palpável e feliz é fruir o presente. O medo e a ansiedade em relação ao futuro e a nostalgia do passado (até do que não vivemos), que fiquem em segundo plano.

Ótimos Adrien Brody como Dali, Kathy Bates como Gertrude Stein, Corey Stoll encarnando Hemingway com seu doce machismo, especialmente.

Quem bom que Owen Wilson superou muito bem sua tentativa de suicídio, depois da filmagem de "Viagem a Darjeeling" de Wes Anderson, um belo filme.

Acredito que mesmo quem não conheça um pouco de obra/vida dos artistas que aparecem, curta bem o filme, pois o essencial não está nestas associações mais "eruditas". E a rigor, nem tão “eruditas” são. Woody, muito acertadamente, trabalha com a mitologia mais conhecida destes artistas todos. Se fosse mais amplo e minucioso em suas caracterizações seria um filme para iniciados, um tanto pedante e não para todas as plateias como ele é. É da vida, de realizações pessoais, do trato com o tempo, do descompasso em relações amorosas, da condição do artista etc. de que o filme mais trata.

Parte da plateia do Arteplex 6 da sessão das 21:50 na sexta-feira da estreia aplaudiu bastante o filme ao final, inclusive eu e Everaldo. Coisa rara de se ver fora de festivais.

Tenho controlado meu impulso/compulsão de rever na tela grande todo filme de que gosto muito, para ter mais tempo para leituras. Mas "Meia Noite em Paris" vou rever certamente.

Se "Paris é uma festa" nos anos 20, "Meia Noite em Paris" é uma festa para a alma neste novo milênio..

Ps1 Que ator lindo e sensual o que compõe muito bem Ernest Hemingway (Corey Stoll), sua personalidade forte e as ideias viris, de coragem, de destemor da morte etc. Vou procurar saber mais quem é ele.....

Ps2 Um dos sonhos na vida já realizei que era conhecer Paris. Outros sonhos também realizarei: como rever e rever Paris... O Louvre é uma joia tanto arquitetonicamente, paisagisticamente como também precisamos de um mês com visitas diárias para ter melhor contacto e fruição do seu fabuloso acervo. Passei lá umas cinco horas, pois tinha muitas coisas para conhecer. É muito pouco. Algo que não fiz, propositalmente, foi visitar o cemitério Pere Lachaise, para ver túmulos de famosos, depositar flores para François Truffaut, essas coisas. Meu orixá, que é Oxalufan ( “o velho”), junto com Oxaguian ( “o novo”), formas de Oxalá, orixá da vida, não combina com isto. Há outros que lidam bem com estes lugares.

Ps3 O Rio de Janeiro de maravilhoso tem a combinação de mares, montanhas, prédios e algo muito especial que é a Lagoa e as visões que proporciona. Mas arquitetonicamente, fora os descuidados Centro da cidade e parte da Lapa, com seus casarios, a Penha com sua igreja e escadarias), o resto, com poucas exceções, é pobre. A Barra da Tijuca que cresce cada vez mais é uma Miami fake, Brasília sem o toque de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, bairro do Rio onde impera o horror do reinado compulsório do automóvel. Cidade Maravilhosa mesmo é Paris. De qualquer forma Woody Allen fica nos devendo fazer um filme aqui, no Rio. É genial como ele faz concessões como escalar Carla Bruni que está bem, focar pontos turísticos e mesmo assim fazer um filme extraordinário. Antes que alguém queira me lembrar da periferia de Paris, adianto que por mais racismo, desemprego, tráfico de droga, hostilização de imigrantes etc. que ali vigora, as habitações estão longe de representar a indigência de muitas favelas e periferias do Rio de Janeiro. E mesmo que isto ocorra, pelo menos há uma parte da cidade onde se pode passear com mais tranquilidade e sem cheiro de urina nas ruas. Um detalhe significativo: vi pessoas tirando dinheiro de caixa eletrônica bem tarde à noite, que ficava exposta na rua, sem vidros e estavam tranquilas sem olhar a todo o momento para os lados. Aqui se faz isto até certa hora, dentro de um ambiente fechado e ainda somos alertados para não pedir ajuda à pessoa do lado, em qualquer lugar da cidade.

3- “Vênus Negra” (França/2010) de Abdellatif Kechiche

Confiram a experiência bastante perturbadora que é assistir "Vênus Negra" de Abdellatif Kechiche. Ao contar com hiper-realismo a história real de uma negra da África do Sul, Saartjie (Yahima Torres), de formas exuberantes, no século XIX, explorada em Londres, Paris e pela Academia de Ciência de Paris, como objeto sexual, mercadoria e por curiosidade mórbida, sendo até comparada a um macaco por um médico-professor, o filme cai numa ambiguidade incômoda. Ao mesmo tempo em que nos coloca na pele de Saartjie, seu sofrimento, sua degradação, também nos faz vivenciar a posição dos diferentes algozes, explorando um tanto do lado sem luz que possamos ter. Não chega a ser um tiro pela culatra, mas a longa duração do filme, explorando demais as situações humilhantes, chega por exaustão a nos anestesiar diante do impacto que esta história tem e de suas ressonâncias sobre racismo no mundo contemporâneo.

Este filme é um passo atrás diante da beleza mais consistente de "O Segredo do Grão", filme anterior do diretor. Como defesa diante de tudo, fiquei sonado perante a projeção. Mas só o trabalho extraordinário da cubana radicada na França, Yahima Torres, já vale a incômoda experiência que é assistir a essa obra radical, que dividiu opiniões no Festival de Veneza de 2010, o que acredito que aconteça no Brasil também.

Gostei muito de "Anticristo" de Lars Von Trier (sobre o processo bastante depressivo e doloroso de uma mulher que se sente culpada pela morte do filho pequeno) e de "Garapa" de José Padilha ( sobre a questão da fome extrema no Brasil; garapa é uma mistura de água e açúcar que se dá às crianças pra tapear a fome). Há ótimo trabalho de montagem e imagens suficientemente contundentes, nestes filmes. Imaginem se para dar maior força a estes temas, fizessem filmes estendidos para mais de duas horas e meia? Eu não aguentaria... Imaginem ainda se um diretor para mostrar todo o horror dos anos de chumbo brasileiro, mostrasse num longa-metragem uma sessão de tortura “como ela é”. Alguém suportaria? Helvécio Ratton, sem nenhum oportunismo e sim para dar mais consistência a seu “Batismo de Sangue”, ampliou um tanto o time de cenas de tortura, diferente do que costumávamos a ver no Cinema Brasileiro. Foi criticadíssimo negativamente por parte da crítica, o que considero injusto. Mas deste longa imaginado, só por ler, eu já passaria longe.

Li uma história real no jornal, há anos, de uma nordestina tão desesperada com a fome que tirou de um lixão cirúrgico um seio para comer e/ou alimentar outros. Fiquei tão impressionado que escrevi um conto baseado nisto, mas é o mais curto que já fiz. Nem eu, nem ninguém, aguentaríamos um conto longo sobre isto. Criei um narrador um tanto inspirado no de “Ilha das Flores” de Jorge Furtado (onde seres humanos fazem fila para catar num lixão real, o que porcos rejeitam), com a voz de Paulo José, um comentarista frio, racionalista, pragmático e irônico, que alguns confundiram comigo no caso do meu conto. O escritor Flávio Moreira da Costa chegou a me dizer que eu estava escrevendo sobre o que não conheço. Ora, precisamos morrer para escrever sobre a morte? Cheguei a enviar o conto para a revista Caros Amigos e me devolveram alegando que era irônico demais. Num post antigo eu o apresentei: http://pelaluzdosmeusolhos.blogspot.com/2009/01/de-seios-e-anseios-um-conto-de-terror.html

"Vênus Negra" tem direção e criatividade cênica excelentes. Ótimos atores, principalmente a protagonista, coisa de exceção no Cinema, impressionando mais ainda por ser sua primeira experiência na tela. O problema do filme é de ordem da montagem. Uma coisa é ver durante 4 horas as relações entre um pintor e sua modelo (principalmente), a dele com sua mulher, a da mulher com a modelo, a dos três, num todo que forma um belíssimo processo criativo, mesmo que o quadro ao fim seja emparedado. Isto é "A Bela Intrigante" de Jacques Rivette. Obra-prima. Um clássico. Outra coisa é acompanhar a degradação de uma mulher (negra ou não) por quase três horas, como se estivéssemos vendo um reality show freak longo e mórbido em etapas: academia médica, Londres e seus circos, Paris e seus salões decadentes e depois na prostituição mais objetiva, até sua morte e retirada de órgãos, também quase que explícita, com sua vagina privilegiada. Uma das melhores coisas do filme é o corte para o plano final que é bastante expressivo e simbólico. Voltamos à academia de medicina do início, mas o molde escultural dela tirado está coberto, numa sala ainda vazia. Viva o corte!

As intenções básicas do diretor, os conceitos por trás disso tudo (em depoimento no Festival de Veneza 2010), eu compreendi intelectualmente: dar a dimensão do horror que foi o racismo de repercussão histórica, contra a negra e que a França e a Europa estão, em outros termos, repetindo. Exagerou na dose. O problema é que o espectador não vive de intenções. E sim do corpo a corpo com a obra. E neste há uma exploração do cineasta de sua paciência, numa atitude quase que sádica com ele e/ou puxando pelo lado sádico dele.

Um filme que eu não tenha vontade de rever nunca mais não é muito bom...Nunca mais quero ver "Vênus Negra". A primeira experiência já me exauriu. Já vi o melhor que foi o trabalho da atriz. Então.....( Será que vai ter alguém querendo ver os extras quando o DVD for lançado?)

Ps. A negra Saartjie durante o filme todo (de quase três horas) não tem nem um esboço de sorriso, tal é seu sofrimento. Vejam a atriz no Festival de Veneza de 2010, de sorriso aberto, irreconhecível em relação ao personagem que fez e vi primeiro, no link adiante. Uma grande interpretação e (como gosto de dizer/escrever) já vale a ida ao cinema.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100909/not_imp607027,0.php

4-Mostra “Claire Denis-Um Olhar em Deslocamento”- Caixa Cultural-RJ e Porto Alegre (Sala Gastão Feital)

Esta mostra, no Rio de Janeiro, já terminou. Mas pela grande importância da diretora no Cinema Contemporâneo, ficam aqui registrados comentários sobre alguns filmes dela, ficando a sugestão de que procurem nas locadoras “Desejo e Obsessão” e “Minha Terra, África”, os únicos lançados comercialmente no Brasil. Os demais merecem ( e muito) ser buscados pelos recursos da Internet.

4.1- “Chocolate” (França/ 1988)

Claire Denis nasceu na França e pequena foi levada junto à família para Camarões, África, um país então colonizado, com ocupação francesa. “Chocolate” deve ser seu filme com maiores elementos autobiográficos (claro que sempre acompanhado das “mentiras sinceras” da ficção).

Uma jovem francesa volta a Camarões para recordar sua infância passada ali e se possível reencontrar a casa onde viveu. Num longo flashback temos (num relato de uma forma mais concentrada) sua relação, enquanto menina, com o criado negro, forte, bonito, inteligente, silencioso, sempre atento e servil (Protée, Isaach de Bankolé, um ótimo ator fetiche da diretora), aos pedidos constantes da mãe e também a muitos caprichos da filha, a quem ele se afeiçoa e incita algumas vezes a que lide com costumes africanos como comer pão com formigas ou insetos puros.

A maior parte do tempo estão na casa, a menina, o criado e a mãe francesa, que se vale do negro para tudo, até mesmo para uma vigília à noite de uma hiena que ronda a residência. O marido é um militar bastante ativo que passa a maior parte de seu tempo em missões. Quando um avião cai na região e precisa esperar por peças, a tripulação é acolhida na casa. Alguns conflitos se instalam, mas nem tudo é compreensível, pois desde o começo o filme se preocupa muito mais em capturar sensações, climas, sensualidades, com narrativa que avança em fluxos, do que em contar uma história linear. Mesmo assim, relativamente ao último filme de Claire Denis aqui exibido, “Minha Terra, África” (“White Material”), há uma maior linearidade, ou melhor, uma menor anti-linearidade, pois este derradeiro trabalho, até então, é uma pura sucessão de sensações físicas, corpóreas e mentais, com um fio dramático forte condutor: uma francesa, produtora de café (Isabelle Hupert, como sempre sensacional) se recusa a abandonar sua propriedade, quando o país africano em que vive ( não identificado) entra em guerra civil, apesar dos apelos do marido, do enlouquecimento progressivo do filho e do abandono do trabalho por empregados negros.

Numa cena de banho fora de casa, Protée ao fim acaba chorando. Provocado por uma visita ambígua que ao mesmo tempo em que senta com os negros para comer com eles, provoca Protée, este acaba reagindo com energia à humilhação verbal e ataque físico, agarra e joga o jovem para longe.

A “dona da casa” acaba concretizando o que sempre se insinuava na atmosfera do filme: uma atração erótica por Protée. Ela o toca, ele a rejeita. Ela pede para o marido arrumar um trabalho fora da casa para o criado. Ele vai cuidar de uma máquina na garagem, como um operário. Aí temos a sequência mais emblemática do filme: a menina entra no espaço de trabalho de Protée. Ela pergunta se os canos estão quentes. Ele segura com força parte dos canos por algum tempo. Ela coloca uma das mãos num cano e tira rápido, queimando-a. Protée mostra sua mão com queimaduras bem mais sérias e o vemos se afastando da garagem com a máquina ligada.

Nesta pequena, mas contundente e marcante sequência, tudo se desnuda mais. Além do ódio que sentia pelas ordens constantes da “patroa francesa”, ele também nutria uma forte relação de amor e ódio pela menina, com seus caprichos. E se vinga à sua maneira, deixando aflorar toda a componente de ódio reprimida. Como é de hábito no filme, que, de modo geral, esvazia componentes dramáticos criados, não vemos o que acontece depois desta queimadura, suas consequências.

Retornamos ao início do filme (após uma ritual despedida do avião que enfim pode partir, com “multidões” de negros dando adeus, inclusive com alguns indo atrás dele...), onde a jovem que voltou a Camarões, estando como de início, de carona com um negro e seu filho, está um tanto perdida no seu “em busca do tempo e espaço perdidos da infância” neste país, onde o motorista que é americano, diz que ali não encontra lugar e que se morrer, não perceberão a sua falta.

“Chocolate” é um dos mais belos e melhores filmes que assisti sobre colonialismo, numa chave estética bastante diversa da obra-prima “Queimada” de Gillo Pontecorvo, com Marlon Brando. Claire Denis é mais esteta. Sugere muito, mas muito mais do que mostra/demonstra. Mas nem por isso é um filme sem força. Muito pelo contrário. Não tenho nada contra libelos “didáticos” muito bem realizados (muito pelo contrário também), como “Batalha de Argel”, “Queimada” (ambos de Pontecorvo), “A Última Ceia” (Tomás Gutierrez Alea), “Atas de Marusia”( Miguel Littin), “A Batalha do Chile” (Patrício Guzman) etc. , mas também é muito bom travar contato com um trabalho assim tão original, sutil, sobre colonialismo e seus efeitos, desenraizamentos, deslocamentos, num fluxo de belíssimas imagens, onde não deixamos de ver algumas com a exploração massiva de negros, como na construção de uma pista para o avião perdido voltar a decolar, dentre outras.

Em suma, como gosto de escrever: indispensável e imperdível. Instiga-nos muito a ver outros filmes da diretora, que compareceu dom. 3/07 às 18:30 horas na Caixa Cultural-RJ e que tem relação ancestral com o Brasil, pois seu avô nasceu no Pará. Os ingressos para ouvi-la esgotaram-se às 14:00 h. e não pude ter este prazer.Lamentável que não tenha saído, que eu tivesse notado, uma grande entrevista com ela. Se fosse mais um “cineasta atleta” de blockbusters americanos, aqui lançamento seu “........parte XX”, teria tido grande espaço....

PS. Depois de ter desistido de assistir às Mostras Hitchcock e Almodóvar pelo insuportável nível de concorrência por ingressos, é um alívio ter acompanhado uma Mostra com muito bom público, mas na qual não precisamos, com exceção da mencionada visita de Denis, “madrugar” às dez da manhã para conseguir ingressos. O catálogo já em distribuição desde o início é simples, mas com ótimos textos, o que é o ideal para podermos analisar e planejar logo que filmes e quando queremos assistir. Não houve aquela maratona de acumular ingressos e correr o risco de ao final não encontrá-lo mais.

4.2- “S’en Fout la Mort”/”No Fear, no Die”/ “Sem Medo da Morte” ( França/ 1990)

De Galos e Homens

Dois irmãos imigrantes africanos, Dah (Isaach de Bankolé, narrador) e Jocelyn (Alex Descas) trabalham no subsolo de um restaurante, na periferia de Paris, contratados por Pierre Ardennes (Jean-Claude Brialy , quase que irreconhecível quando lembramos de trabalhos dele como “O Joelho de Claire”, aqui como um homem de certa doçura mas truculento e grosseiro quando acredita ser necessário), como treinadores e cuidadores de galos para rinhas com enorme plateia, a mais variada, que faz apostas e vibra com a desgraça de pelo menos um dos galos.

Num dado momento da narrativa ouve-se que homens e galos são a mesma coisa e em essência é disso que o filme trata. As condições dos protagonistas negros, defendidos com grande força dramática por dois grandes atores que já trabalharam em outros filmes de Denis, em composições outras completamente diversas, são como a dos galos: lutar pela sobrevivência, mesmo que seja de forma sórdida.

Toni (Solveig Dommartin, a trapezista de “Asas do Desejo), barwoman, é objeto do desejo do silencioso e mais sensível Jocelyn, que não é correspondido. O descontentamento com a introdução de esporas afiadas de metal nos dedos dos pés dos galos, a visão de Toni no carro com o patrão Pierre e saber do assédio a ela por Michael (Christopher Buchholz) o filho legítimo de Pierre, o faz perder a paciência de vez, tentando fugir do emprego acabrunhante e ainda bastante mal remunerado. O imão Dah o procura bastante e encontrando-o, obriga-o a voltar na marra (como se fossem galos brigando). Jocelyn, bêbado, chega a soltar todos os galos de suas “gaiolas” que logo partem para brigas. Dah procura reparar os danos deste descontrole que revela desejos mais profundos.

Numa luta de um galo branco pelo qual Jocelyn se afeiçoa com outro que vem do desafio de um membro da plateia, ao ver seu bicho levar a pior, além das provocações iniciais que fez, este passa a se descontrolar completamente, no limite em que a maior lucidez se avizinha da maior loucura, num ambiente social em que reina a loucura do horror da brutalidade ritualizada, aplaudida, saboreada.

“Sem Medo da Morte" (como chamam alguns galos) tem uma estrutura dramática mais simples do que outros filmes já vistos de Claire Denis. Isto não implica que seja menos contundente e que a diretora não explore ao máximo o movimento dos corpos em meio ao ambiente degradado, fazendo também dos galos e seus movimentos, seja em lutas ou nos treinamentos, “personagens” também do filme. Para a força claustrofóbica da obra ela teria que ter certamente grandes atores em jogo nos jogos sociais de humanos espelhados na luta radical das aves. E isto o filme logra com grande sucesso. Descas, Bankolé e Brialy tem trabalhos de tom quase que documental, de tanta verdade que imprimem em suas atuações.

Pierre foi amante da mãe de Jocelyn e no desvario argentário de sua marginal condição de “cafetão de imigrantes negros e galos”, tem certo carinho por ele, como se fosse um filho, numa contradição que amplia o alcance dramático do filme.

O treinamento dos galos e suas lutas, com alguns bastante feridos, são mostrados com bastante realismo, mas letreiros finais alertam que nenhum animal foi maltratado. O universo das rinhas de galo só (pelo que eu saiba) foi tratado com tanta força no Cinema no sensacional “Ninguém Escreve ao Coronel” de Arturo Ripstein, uma grande, bastante feliz e “fiel” adaptação do universo de Garcia Marquez para o Cinema, de uma tristeza medonha em sua exposição crua da situação de um veterano de guerra que espera durante anos (como quem espera Godot), por uma correspondência que lhe traga a pensão desejada e não precise mais vender seu galo de briga, com o qual ganha a vida. O terceiro mundo europeu, incrustado e escamoteado em países como a França, pode estar um tanto próximo do terceiro mundo América Latina.

“Sem Medo da Morte" é um filme para ser visto com “o coração na mão”, sem medo de não gostar, dirigido por uma diretora que vivenciou bastante dois mundos (África e França) e desenvolveu olhar aguçado para os que vivem na corda bamba, na precária condição de imigrantes nas periferias de Paris, com um olhar sensual mesmo para condições bastante marginais de seus personagens.

4.3- “Noites sem Dormir” (França/Suíça/ 1994)

O crítico de cinema Sérgio Alpendre tem toda razão quando escreveu no seu Blog http://chiphazard.zip.net/ tempos atrás, que crítica tinha de ter prazo de validade. Vi o filme na época de sua estreia mundial, num festival e ele me irritou ao final, por uma visão politicamente correta que eu tinha. Hoje, como conheço bem mais o chamado (inapropriadamente) “mundo gay” (que a rigor não existe: existe o mundo) e acredito que há muitas falanges de pessoas GLBTs, não tenho mais esta visão limitada e idealizada. Assim o personagem do negro Camille que traz em si vários estigmas, como negritude, imigrante sem documentos, homossexual, transformista em bares gays à noite, traficante, michê, ser ainda, junto com um amante e/ou cliente, também um serial killer de velhinhas para poder roubá-las em tudo o que puder, é algo que pode muito bem existir na solidão de uma grande metrópole em que “não se pode dormir”. Isto não significa que Claire Denis tenha colocado sua visão do que é o gay, mas sua visão de um gay. Assim o que me incomodou há17 anos, agora vejo como um elemento a mais de dramaturgia, mesmo porque não há ênfase no suspense que a descoberta dos criminosos pode trazer, mas sim num contexto mais amplo da vida de imigrantes, deslocados em suas vidas, com poucas perspectivas na França.

Uma imigrante da Lituânia, Daiga (Katerina Golubeva) chega à Paris, a avô a acolhe e ela acaba indo morar no que era uma dispensa de um hotel e fazendo nele serviços de limpeza. Ela sonha com uma colocação num filme que prometem “só poderá ser no ano que vem”. Théo (Alex Descas, muito expressivo ator, como sempre) é músico, faz serviços como montar estantes nas horas vagas, tem uma filha pequena da qual cuida, sendo irmão de Camille e tem uma ex-companheira (Beátrice Dalle, do cult “Betty Blue” do polêmico Jean-Jacques Beineix), mãe de sua filha, com quem tem relações conflituosas, sonhando em voltar para a Martinica (mesmo que seja para levar uma vida completamente despojada,vivendo de escambos com o que produzir).

Há pontos de contactos entre essas histórias em paralelo que se cruzarão mais ao final do filme. Mas Claire Denis com sua grande sensibilidade artística e sendo testemunha de dois mundos (África/ Camarões e Paris/ França) desenvolveu grande senso de observação para os pequenos e grandes dramas de imigrantes na França, vale ser relembrado. Isto já em 1994, sendo que de lá para cá, as condições de vida destes e a xenofobia só pioraram (e muito). Assim temos observações/visões do cotidiano destas pessoas de forma muito apurada e autêntica e um roteiro que em linhas gerais se desenvolve muito bem, até o cruzamento final dos personagens em grandes impasses e uma resolução final que a rigor, não chega a ser tão surpreendente, pois representa mudança de caráter de quem chega para mudar de vida, encontra muitas barreiras, sente-se deslocada em seu deslocamento brutal e apela para as chances que aparecem, ainda que aéticas.

Em dois pontos acredito que o roteiro/encenação falhe:

1- O ator que compõe Camille é bastante expressivo em sua frieza (o que condiz com sua essência de serial killer), mas ao trabalhar como transformista dublador, num bar/boate cheia de gays atentos (algo que lembra muitas no mundo todo, do que conheci) é incrivelmente canastrão e inexpressivo nesta atividade. Já enjoei de frequentar lugares com estes shows (hoje não tenho mais paciência), mas só aqui no Rio de Janeiro, já vi transformistas que “dão de 10 a zero” em Camille, em termos de talento na arte do transformismo e dublagem. Há então um ar de inverossimilhança no filme nesta longa sequência. Alguém viveria nesta atividade com tanta artificialidade? Almodóvar jamais faria uma sequência assim, tão inconvincente. No palco ele deveria “se transformar em outras”. Já as fotos de Camille em poses homoeróticas são ótimas e mostram autenticidade.

2- Era importante para o roteiro que a jovem lituana Daiga que trabalha no mesmo hotel onde Camille e amante/cliente frequentam, fosse parar na delegacia, mas sem delito grave, para reconhecer os retratos falados dos criminosos, feito por uma velhinha atacada e roubada pelos dois que sobreviveu e os tinha na memória. Mas para isto uma situação bastante inverossímil foi criada. A jovem num acesso de fúria bate o carro que dirige várias vezes na traseira de um carro à frente, destruindo-a de tal forma que seu motorista só consegue entrar no carro de novo, pulando, de tão compactado/impactado que ficou o veículo. No entanto numa conversa com policiais, ele acaba assumindo culpas que não tem, tornando a situação de Daiga, policialmente mais leve. Algo realmente impensável em qualquer lugar, principalmente na França, tão ciosos são muitos franceses de seus direitos.

Mas estes apontamentos não derrubam o que o filme tem de melhor que é ser uma crônica sensível de diferentes formas de viver de imigrantes que apontam para sérios desenraizamentos, como em outros filmes dela ( e de outros autores, como o Laurent Cantet do fantástico “Entre os Muros da Escola”): nem se sentem franceses, nem devem se adaptar mais aos lugares de origem. Não é apenas no olhar de Claire Denis que há deslocamentos, mas na vida de seres que acabam pertencendo a um “não lugar”, um lugar que não lhes pertence. Neste sentido o contraste pungente entre a alegria da mãe de Théo e Camille que comemoram em família o aniversário dela e o encontro com o filho já desnudado como serial killer, na delegacia, chorando e se arrependendo de ter dado a luz a um monstro, por melhor que tenha sido a criança, é muito pungente e eloquente.

4.4- “35 Doses de Rum” (França/ Alemanha/2008)

É a mais bela homenagem a Ozu na ficção no Cinema que conheço, em particular a “Pai e Filha”. Não temos aqui os planos em câmera baixa de Ozu, mas os signos da vida que passa com os movimentos de trens e as preocupações de um pai com o futuro da filha (e vice-versa) que sacrifica sua vida pessoal em seus cuidados por ele, comparecem no filme com grande intensidade emocional e é isto o que mais importa na homenagem.

Lionel (Alex Descas, num trabalho excepcional, inclusive e principalmente com seus silêncios) é um condutor de trens, na periferia de Paris, que mora com a filha, estudante universitária, Josephine (Mati Diop), num lugar onde moram muitos negros e descendentes árabes. Viúvo, ele atrai a atenção de uma taxista (Nicole Dogue), que mora no mesmo prédio (sendo bem maior o interesse dela por ele, do que o dele por ela), enquanto a filha tem um namoro que mal evolui com um jovem que mora também no prédio e que numa falta de perspectivas total sonha em trabalhar no Gabão, para onde gostaria de levar Josephine. Ela mesmo vendo seus horizontes se estreitarem na periferia onde mora, apesar dos estudos, reluta na sua relação com o jovem, pois não quer deixar de cuidar do pai , o que aumenta a culpa deste. Enfim uma situação tipicamente “ozuniana”.

Um colega de trabalho de Lionel se aposenta. Na comemoração de sua despedida num bar, é convidado a tomar ritualisticamente 35 doses de rum. Lionel é instado a fazer o mesmo. Recusa-se. Só o fará ao final do filme, fechando-o, numa situação limite. Sendo que depois só lhe resta, significativamente, comprar um artefato doméstico que já havia comprado no início do filme, mas agora em outra escala.

“35 Doses de Rum” é um precioso e belíssimo retrato do cotidiano de pessoas (principalmente negros) que vivem num subúrbio de Paris, não numa situação de total miserabilidade (como há muito ainda no Brasil), mas sem perspectivas de melhorarem de vida. O aposentado que não sabe o que fazer do tempo livre que passa a ter é também sintomático desta condição.

Claire Denis mais uma vez (e de forma mais especial) capta com sua câmera pequenos movimentos/momentos destas vidas (como o de uma ida a um concerto falhada, por causa do taxi camuflado com um artifício frágil, emperrado e guinchado, fazendo os ocupantes procurarem um bar onde possam não perder a noite e sentimentos mais profundos de solidão e angústia se revelam ou então de um gato de 17 anos que morre, é tratado com forte pragmatismo que revela a dessensibilização de alguém calejado pelas desesperanças, que seria a esperança de outrem etc.), tudo com grande apuro técnico e sensibilidade. Há uma viagem de pai e filha à Alemanha que só os faz confirmar que devem fazer na França o deslocamento que lhes parece viável e possível, num clima de festa e melancolia, que as 35 doses de rum tomadas pelo pai sintetizam bem.

Realizado em 2008, em “35 Doses de Rum”, não temos ainda a maior “imaterialidade” poética entre os seres e as coisas/natureza e observação dos movimentos dos corpos, de muitas sensações e fluxos que constroem a força de “Minha Terra, África”, feito depois, mas no conjunto, me parece um filme ainda melhor. Uma autêntica obra-prima*.

* Hirao, um cinéfilo bastante atuante num grupo de que faço parte, certa vez comentou com razão, que só o tempo revelará com mais consistência o que é ou não uma obra-prima. Mas eu não quero esperar nem devo este tempo...tempo...tempo...chegar. E já me dou ao luxo/prazer agora de fazer esta avaliação, mesmo que a posteridade me desminta depois.

4.5- “Sexta-feira à Noite” (França/2002)

Laure (Valerie Lemercie) arruma caixas, estando para se mudar para o apartamento do namorado. Há uma greve forte de transportes em Paris e o trânsito fica caótico. Um estranho, Jean (Vincent Lindon, do espetacular “Mademoiselle Chambon”-2009, já comentado no Blog) é convidado a entrar no carro. Um clima erótico logo se instala. Quase nada acontece e, no entanto, tudo acontece...Depois de avanços e recuos vão para um hotel.

Depois do tabu do sexo explícito em filmes artisticamente empenhados quebrado por Nagisa Oshima no magistral e essencial “O Império dos Sentidos”, outros grande filmes surgiram com esta audácia, mas também indo muito além disso nos temas envolvidos: “Intimidade” de Patrice Chéreau ( absurdamente inédito no circuito exibidor brasileiro, mesmo tendo ganho Urso de Ouro em Berlim e tendo sido a maior bilheteria de um dos Festivais Internacionais do Rio. Só recentemente foi lançado no Brasil, em DVD pela Lume. Eu o conheci por um DVD que comprei em Madri), “Desejo e Perigo” de Ang Lee, “Shortbus” de John Cameron Mitchell etc. “9 Canções” de Michael Winterbotton é bastante irregular.

Mas é muito bom também vermos filmes com cenas sexo mais sugeridas do que vistas, o que Claire Denis faz aqui com muita sensibilidade e apuro visual, mostrando “fragmentos de uma relação amorosa”, onde vemos closes dos personagens, beijos nos pés, descanço sobre peitos etc.

Após esta experiência clandestina, Laure sai renascida, pronta para seguir em frente. Se o encontro casual não mudou seu destino, certamente ele a mexeu muito por dentro e deu mais confiança a si mesma.

“Sexta-feira à Noite” guarda algumas semelhanças com “Chuva” da argentina Paula Hernandez (já comentado no Blog). Mas enquanto em “Chuva” a sombra dos personagens que estão na vida dos protagonistas, também de um encontro casual, é muito forte, o filme de Claire Denis se concentra mesmo é nas emoções simples e nobres de Laure e Jean, sem interferências no discurso de terceiros.

Desnecessário acrescentar que “Sexta-feira à Noite” é um filme belíssimo....mas acrescento.

4.6-“Nénette e Boni” (França/1996)

Nénette e Boni após o divórcio dos pais foram criados separadamente. Nénette ( Alice Hori) que viveu com o pai, foge da escola e vai para o apartamento do irmão Boni (Gregóire Colin), criado pela mãe, irmão que a princípio a rejeita, dando-lhe guarida depois. Boni trabalha com entregador de pizza para um casal dono de uma pizzaria que tem hábitos não ortodoxos e aberturas no casamento, consentidas ou camufladas (Vincent Gallo, sempre misterioso e fascinante em seus personagens, de “Brown Bunny” a “Tetro”, dentre outros; ela é composta por Valeria Bruni Tedeschi, atriz de Ozon, dentre outros e também cineasta)

Boni vive muito de fantasias sexuais, de modo geral masturbatórias. Está muito interessado na esposa do “patrão”. Até mesmo quando ela se oferece explicitamente num restaurante, ele foge para seu mundo de fantasias. O pai dos dois irmãos está envolvido em negócios ilícitos, com uma turma barra pesada que selará seu destino. Busca ansiosamente por uma reconciliação com a filha e para isto tenta também conquistar o filho, que o odeia.

Quando Nénette fica grávida e pretende doar de forma anônima seu filho ao nascer, sem nem querer ver seu rosto, Boni toma atitudes fortes, em que há grande poesia implícita.

“Nénette e Boni” é mais um filme de Denis que evidencia as suas qualidades de grande diretora, grande observadora do meio mais marginal de Paris, com imagens captadas, como é de hábito, com muita sensualidade. Não é dos seus melhores filmes, mas mesmo assim está muito acima da média do que vemos no chamado circuito de arte.

4.7- “Bom Trabalho” (França /1999)

Com alguns momentos de exceção “Bom Trabalho” é como um balé contemporâneo visual, magnificamente filmado, onde se dá muito destaque à beleza de rostos e corpos masculinos das mais variadas formas. Mas isto não é nada gratuito. Tem sua razão de ser dramaticamente como veremos.

Logo de início já sabemos que o sargento Gualp (Denis Lavant) está em Marselha, França, depois de ter passado um tempo comandando legionários da Legião Francesa em treinamento no norte da África em tempos de colonização. Reminiscências de seu trabalho eivado de intolerância e autoritarismo vão surgindo aos poucos no filme (chega a achar um absurdo que um legionário abandone um pouco a guarda para ir urinar; para punir um negro por ninharia , o faz cavar sozinho um enorme buraco que deixa este com feridas nas mãos etc.)

O comandante Forestier (Michel Sobor) sabe que Gualp está com implicância com o legionário Sentain ( Grégorie Colin);Até o alerta disso. Mas a forte atração homoerótica do sargento por Sentain o leva ao descontrole, numa reação de ódio que tenta reprimir a de amor/desejo. Com um pretexto bobo acaba abandonado no deserto Sentain, que completamente congelado, balbuciando, é encontrado por negros, mas o filme deixa em aberto se ele vai conseguir sobreviver.

Fourestier, ciente do ocorrido, sem notícias e tendo como vestígio de Sentain apenas uma bússola “congelada”, ameaça Gualp de corte marcial. Mas opta por desligá-lo da legião estrangeira.

Contado assim dá impressão de que se trata de um filme linear, o que não é nada disso: é uma obra também bastante sensorial da diretora, que capta muito bem a sensualidade dos corpos, de belíssimas imagens coreografadas, que se desenvolvem revelando seus mistérios aos poucos. Há sequências mais realistas de treinamento com a em que legionários se arrastam pelo chão, mas de modo geral reinam composições visuais muito mais interessadas em mostrar a plasticidade em jogo, do que se filiar ao realismo. Numa delas Gualp e Septain vão se aproximando, estando próximos de um beijo que não ser realiza.

“Bom Trabalho” tem fortes paralelos com “Furyo- Em Nome da Honra” ( “Merry Christmas, Mr. Lawrence “/1983), uma das obras-primas de Nagisa Oshima. Num campo de prisioneiros ingleses, dominado por japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, dentre outros conflitos, paira a forte atração homoerótica que o tirano comandante japonês (Ryuichi Sakamoto, autor da maravilhosa trilha sonora do filme) sente por um oficial inglês ( David Bowie) que sentindo o que está ocorrendo, acaba provocando-o mais ainda, desde usando uma flor na boca e até, numa sequência antológica em câmera lenta , sair de sua posição de sentido junto aos ingleses dominados e perfilados, ir ao encontro do comandante e beijá-lo na boca, para pasmo de todos, ingleses e japoneses. Ao comandante, “ultrajado”, só resta matar o objeto do seu forte desejo, enterrando-o, deixando-o só com a cabeça de fora, num sol inclemente.

Em “Bom Trabalho” estamos longe destas explicitações de Oshima ( cada um no seu estilo e propósitos conceituais e estéticos; um não invalida o outro), mas não deixa de ser a seu modo, além do retrato do estado de ânimo da legião estrangeira ( que tem um tanto de “O Deserto dos Tártaros” de Dino Buzzatti , filmado por Valerio Zurlini em 1983, seu último filme, mas que não é uma maravilha como “A Garota com a Valise”; neste “O Deserto dos Tártaros” tem-se militares esperando por uma guerra que nunca vem; claro que para a Legião Estrangeira a guerra colonial veio, com seus desastres, mas “Bom Trabalho” capta um clima de treinamentos e espera), é um fantástico “estudo” dos limites extremos a que a homofobia internalizada, camuflando a própria homossexualidade, pode conduzir uma pessoa.

O sargento Gualp não chega a ser feio, ainda que tenha um rosto com marcas, mas Denis faz questão de mostrar os outros legionários lindíssimos (de rosto e corpo) como contraste.

Voltando a seu quarto em Marselha, desligado da Legião Estrangeira vemos Gualp na cama pegar uma arma e passeá-la sobre seu corpo, insinuando-se um provável suicídio. Há um corte para uma boate onde vemos Gualp sozinho, ao som de "The Rhythm of the Night", um hit/must “de 99 entre cem boates gays mundo afora”. Gualp de uma timidez inicial começa a dar alguns passos até evoluir e “se acabar” movido pela energia da música. Precisa escrever mais alguma coisa? Somente que “Bom Trabalho” é uma obra-prima.

4.8- “Desejo e Obsessão” (“Trouble Every Day”/ França/2001)

Sem ser um dos melhores filmes de Denis, provavelmente é o seu maior desafio. Ela trata aqui de um tema delicadíssimo e dificílimo que é o canibalismo amoroso literal (como a já comentada no Blog peça “Ato de Comunhão” com Gilberto Gawronski), em que um diretor menor cairia fácil no terror barato, no trash involuntário.

Shane ( Vincent Gallo, em mais uma grande interpretação de um homem atormentado) vai com a esposa June ( Trissia Vessey) , ambos americanos, passar a lua de mel em Paris. Ele não consegue gozar com a mulher, sendo que numa cena patética, depois de um contato com ela, vai para o banheiro se masturbar, onde o vemos atingir enfim o orgasmo com jorro explícito e a mulher o procurar de forma tristonha e decepcionada. Ao mesmo tempo, Sahne está procurando por um médico, Léo (Alex Descais) que segundo colegas teria caído em desgraça no meio científico por querer procurar no cérebro humano explicações para a patologia/distúrbio de sua mulher Coré( Béatrice Dale) que é fissurada em relações eróticas onde chega a levar parceiros até a morte, canabalizando-os literalmente. Léo a prende no apartamento, mas um homem o invade, vê Coré por trás de tábuas, quebra-as e tem uma relação amorosa mortal.

Claire Denis é suficientemente explícita para mostrar a barra pesada de que se trata ( além de mostrar corpos ensanguentados, chega a nos fazer visualizar pedaços de uma vagina sendo arrancada com a boca, dentre outras imagens chocantes) , mas também suficientemente sutil para que essas cenas não se estendam demais (ao contrário do procedimento que Gaspar Noé adota para um longuíssimo estupro e uma pancada que transforma a vítima numa caveira ensanguentada, no insuportável, ainda que com belos momentos, “Irreversível”) .

Denis filma tudo com beleza extraordinária, muito mais interessada em nos fazer entender seus personagens de atitudes extremas e bizarras, mas longe de ser caudatária delas.

Shane, que só goza também realmente com canibalismo amoroso, mata uma mulher numa academia e acaba num encontro com Coré, também a matando. A ordem/desordem deste mundo particular macabro acaba sendo restituída e Shane volta à companhia da esposa, sem condições de gozar com ela, mas preservando-a da morte.

“Desejo e Obsessão”, mais ainda que outros filmes de Claire Denis, mesmo que contado com spoilers ( algo que foi alertado para o leitor) é tão bem engendrado em sua estética primorosa , que exercerá grande fascínio para quem o assistir depois de ler este texto, pois, a rigor, o resultado nas telas dos trabalhos de Claire Denis, é indescritível. E ao contrário de “Vênus Negra”, já comentado no ítem 3, dá muita vontade de rever, pois seu fascínio será sempre hipnótico e renovado, apesar da dureza do que está em jogo.

“Desejo e Obsessão” nos lembra de Fernando Pessoa em um de seus heterônimos: “O ser humano é um abismo: eu é que sei”. E põe abismo nisto!

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Para encerrar estes comentários sobre filmes desta grande cineasta contemporânea ( independentemente de gênero identitário) , lembro aqui que quando li poucos anos atrás que o crítico do site Contracampo ( http://www.contracampo.com.br/ ) Luis Carlos de Oliveira Júnior daria em São Paulo um curso sobre a obra de Claire Denis ( é dele um dos belos textos do catálogo da Mostra), eu estranhei ( “Com tantos grande cineastas vivos ou mortos, logo Claire Denis? Isto deve ser idiossincrasia “destes meninos....”- pensei). Vendo agora vários de seus filmes, constato que um curso sobre Claire Denis tem a maior pertinência, no contexto do que de melhor se faz no Cinema Contemporâneo. Mesmo não tendo meu pensamento escrito em lugar nenhum, ficam aqui meus parabéns e desculpas ao Luis Carlos. E o convite a todos, para de que forma for...., entrem em contacto com a obra desta diretora que trabalha forma/contéudo imbricados com muita beleza e ótica originalíssima, como poucos.

5- “Potiche- Esposa Troféu” ( França/2010) de François Ozon

François Ozon, mesmo não sendo propriamente um gênio do Cinema (e por que precisaria sê-lo?) é um dos cineastas europeus mais instigantes, criativos, produtivos e ecléticos (sem deixar certa marca autoral) em atividade. Já experimentou os mais diversos gêneros com os melhores resultados, seja na brilhante comédia policial “8 Mulheres”, nos doloridos dramas “Sob a Areia” e “O Tempo que Resta”, nos filmes que flertam com situações mágicas e/ou absurdas como “Sitcom” e “Ricky”, no melodrama de época bastante subestimado mas muito bom “Angel” , no média metragem de suspenses bergmaniano com toques de “Persona”, “See The Sea”, com personalidades de duas mulheres que se imiscuem ( seu primeiro filme que assisti, quando ele era desconhecido, em Nova York 1998, com cartazes por Manhatan toda, com a alusão a “Persona” como marketing, que se confirmou ao vê-lo( inédito nos cinemas no Brasil, o que foi suficiente para querer estar sempre atento à sua obra dali em diante), dentre outros.

Ozon é homossexual assumido e esta condição o faz ter miradas homoeróticas originais, como na adaptação de peça de Fassbinder quando jovem, mas nem por isso menos cortante, “Gotas D’Água em Pedras Escaldantes”, o já citado “ O Tempo que Resta”, “O Refúgio”, “O Amor em Cinco Tempos” ( onde a questão é o “sujeito oculto”), dentre outros, sem deixar de incorporar outros temas como a finitude, as ironias do acaso, os sentimentos amorosos confusos, os autoenganos, as falsas aparências etc. Ao mesmo tempo desenvolveu, como Almodóvar, sem se limitar a ela, grande sensibilidade para captar o universo feminino em suas várias facetas.

“Potiche- Esposa Troféu”, retomando o espírito cômico e farsesco de “8 Mulheres”, não escondendo também a forte origem teatral adaptada para as telas por Ozon, com grande eficiência cinematográfica, mesmo neste gênero considerado menor ( que não implica em maiores facilidades, pois tudo tem que ser afiadíssimo), nos mostra o outro lado da moeda dos filmes comentados de Claire Denis sobre imigrantes em periferias, ainda que situado numa província francesa em 1977, pois focando o charme nada discreto de certa burguesia francesa, vai desvelando paulatinamente várias formas de hipocrisias patronais, sociais, comportamentais, políticas, familiares etc.

Catherine Denueve (impagável e ainda linda) é Suzanne Pujol, uma mulher bibelô, que entregou ao marido Robert Pujol (Fabrice Luchini) a fábrica que herdou do pai para ele administrar, tendo uma vida restrita ao lado doméstico bastante tacanho e castrador, onde nem transar fazem mais, sendo que Robert tem como amante a secretária eficiente e maternal Nadège (Karin Viard), sob a vista grossa da mulher.

Quando Robert depois de ser sequestrado por funcionários em greve, libertado com a ajuda do prefeito comunista Maurice Babin ( Gerard Depardie, que se está longe de uma plena forma física, não deixou de ser o grande ator que sempre foi), com quem Suzanne teve um rápido affair no passado,este irascível e controlador patrão que não quer ceder em direitos nenhum dos reivindicados pelos grevistas, acaba enfartando e diante da filha inexperiente mas que comunga de ideias patronais do pai, Joëlle (Judith Godrèche ), em crise no casamento e do filho Laurent ( Jérémie Renier, ator dos Irmãos Dardenne nos graves “A Criança” e “O Silêncio de Lorna” e do inédito e muito bom”Propriedade Privada” de Joachim Lafosse, como um dos filhos problemáticos de Isabelle Huppert, ator em “Potiche” muito à vontade numa chave cômica ) que estuda Ciências Políticas, mas no fundo não só não quer administrar a fábrica da família, mas sim estudar artes ( com especial predileção por Kandinsky), enfim com todas estas barreiras, só resta à própria Suzanne administrar a fábrica de guarda chuvas herdada, com o aval do marido que mal fala e tem de se recuperar.

Suzanne passa a adquirir gosto pelo trabalho, consegue a confiança dos grevistas, institui medidas progressistas, conquista até a simpatia da rival Nadège, traz os filhos para trabalhar com ela, inclusive Laurent que passa a dar novas cores a guarda chuvas como uns com desenhos de Kandisky. Outras subtramas compõem o roteiro excelente do filme, como um possível incesto que depois de revelado falso, se transforma em provavelmente outro, agora de caráter adicional homoerótico (uma interpretação minha).

Estas situações básicas expostas com alguns detalhes evoluem com grande graça para outras, com diálogos sempre afiados e precisos e uma direção com composições visuais retrôs, que captam muito bem a época como também outras situações de um passado ainda mais remoto e idílico do que o presente da história.

Ozon se apropria muito bem do clássico “rindo se castiga os costumes” e faz um filme feminista nada politicamente correto, pois todos os personagens são mostrados em suas ambiguidades e fraquezas. Valendo-se também de músicas da época tem situações musicais de encantamento inusitado. Catherine Deneuve, ao contrário do que pregavam alguns (será que ainda existem?) nunca foi apenas uma belíssima mulher que teve a sorte de trabalhar com vários grandes diretores: ela sempre foi uma grande atriz do cinema francês (além de grande diva, mesmo que ela não goste de assim ser tida), bastante versátil, dominando também o gênero bastante difícil que é a comédia, sempre a um passo da gaiatice vulgar em que muitos caem, como também personagens trágicas, como a protagonista de “Tristana, Uma Paixão Mórbida” do mestre Luis Buñuel, onde tem no mínimo uma cena antológica: Tristana, com uma das pernas amputadas, odiando o marido burguês que tem ( Fernando Rey), de muletas vai à janela ao alto e mostra os seios para um adolescente que se delicia com eles. Apesar de talvez ser mais lembrada no futuro como “A Bela da Tarde”, realmente inesquecível, seus trabalhos no cinema, são os mais variados e de grande qualidade. Basta lembrar a amiga solidária de Selma (Björk) numa das obras-primas de Lars Von Trier que é “Dançando no Escuro”, “O Último Metrô” e a enigmática mulher de “A Sereia do Mississipe”, ambos de Truffaut, a cruel e doente protagonista de Arnald Desplechin em “Um Conto de Natal”, dentre tantos trabalhos eloquentes.

Se Deneuve é o centro de gravidade do filme de Ozon, ele não deixa de ter coadjuvantes ótimos, muito bem dirigidos. Para que Deneuve reine com mais brilho é preciso que os que estão em seu entorno brilhem também. Vamos ver qual será o novo projeto de François Ozon. Ele é sempre promessa cumprida de divertissement , fascínio, mesmo em seus filmes mais graves que não sacrificam o prazer do espectador, mesmo que de forma dolorosa, transmitindo sua visão de mundo iconoclasta de hipocrisias as mais variadas. Até a morte ele tenta surpreender e desmistificar em “Sob a Areia” e “O Tempo que Resta”. No já citado “See the Sea”, que tem um dos seus finais mais perturbadores, o suspense dá um tom especial.

Na tradição de Hitchcock, Polanski, Fassbinder, Almodóvar, De Palma etc. Ozon é “evidente*, lúdico e perverso”, no melhor sentido destas palavras, conforme o crítico Marcos Ribas de Farias sintetizou o mestre do suspense Hitch por ocasião do lançamento de “Trama Macabra”( 1976), seu último filme.

*Evidente no sentido de apresentar clareza narrativa. Isto não significa que não haja ambiguidades a serem descobertas e outras que ficam em aberto (como em “Os Pássaros”, “O Bebê de Rosemary” etc.). Aqui se pretende uma distinção (sem hierarquia de valores) com narrativas mais tortuosas, ou até mesmo recusas a narrativas, como temos em Godard ( com exceção de “O Desprezo”), Bressane, Sganzerla, muitos Glaubers etc.

6- “A Falta Que Nos Move" (Brasil/2009) de Christiane Jatahy

Não percam por nada "A Falta Que Nos Move" de Christiane Jatahy (Brasil, 2009; só agora entra em cartaz!!!), com fotografia de Walter Carvalho, em digital, lindíssima, de tons escuros que caminham para um final luminoso, tendo tudo a ver com a evolução dramática do que se vê. Há possíveis influências/sintonias do Dogma 95, de John Cassavetes, ecos de “Esperando Godot” de Becket, de Eduardo Coutinho ("Jogo de Cena" e principalmente "Moscou"), das adaptações muito sinceras e íntegras de Domingos de Oliveira de peças suas para o Cinema, tudo muito bem "digerido" e transformado num filme tocante e singular, com luz própria, que se beneficia bastante com o trabalho teatral que a diretora vem desenvolvendo.

Um filme está sendo feito numa bela casa, de onde se vê paisagem privilegiada da Lagoa&montanhas&prédios, durante um jantar&seus preparativos etc. na véspera de Natal, com um convidado esperado que não chega, mesmo tempos depois que todos os atores já atuam, através de mensagens por celular da diretora ( que também é um personagem, mas oculto).Tem-se um jogo entre o que são emoções, recordações verdadeiras dos atores reais, o que podem estar improvisando e o que seja encenação já demarcada antes. É melhor nem tentar distinguir nada e embarcar num crescendo de emoções à flor da pele, bastante revelador de uma geração, por mais que Pedro Brício (os personagens tem o nome dos próprios atores) tenha razão ao questionar o conceito de geração, dado que as pessoas são muito heterogêneas e singulares.

A obra nos remete a uma geração de classe média que nem quer tomar a tocha olímpica de pais resistentes à ditadura militar ou de outros ideais/ideologias, mas também se sentem desconfortáveis com a pasmaceira, a passividade e o conformismo dominante, que agora (depois do filme pronto) está sendo um tanto quebrado com marchas pela liberdade no Brasil (o que é muito pouco, mas melhor que nada), os movimentos nas ruas de Madri, Barcelona e principalmente nas revoltas no norte da África e no mundo árabe ( quem imaginaria?), com forte auxílio das redes sociais, evidenciando que tudo na vida pode ser uma faca de dois gumes. Neste caso há o gume da alienação masturbatória e narcisista dos encantos do uso de gadgets computacionais os mais variados empregados com fanatismo e a possibilidade de tentar (e conseguir como é o caso do Egito e da Tunísia, por exemplo) utilizá-los para fins mais objetivos de mudanças sociais fortes. O filme do “regional aldeia Brasil” tem ressonâncias universais. E é bom que se ressalte: a obra de Jatahy também vai além de “conflito de gerações”, para tocar fundo em questões que dizem respeito à condição humana.

São 5 atores.13 horas contínuas de filmagem. Dirigidos por mensagem de texto. Realidade e ficção no limite da tensão” (http://afaltaquenosmove.com/ ).

Kiko Mascarenhas é aquele que quer ser obediente às regras estabelecidas pela direção, por mais que elas venham se mostrando irrealizáveis. Pedro Brício (na melhor entre tantas ótimas e dificílimas atuações) é o que mais contesta Kiko querendo que ele “caia na real”, deixe de ser autoritário, controlador e facilmente suscetível como quando Pedro faz alusão ao seu irmão, vendedor de Ipods ( que será mostrado como um traficante depois).. Marina Vianna e Cristina Amadeo são filhas de pais resistentes à ditadura militar, à maneira deles e querem uma identidade para si que não seja a desejada pelos pais, com Mariana subestimando até a barra pesada que eles enfrentaram, procurando ser conciliadora. Cristina Amadeo é a que mais se aproxima de Kiko, mas também o critica, ao seu modo. Daniela Fortes é a mais doce. Os atores estão mais fortes no filme porque seus personagens são mais fortes, mas as mulheres não deixam de trazer emoções e questões instigantes à tona, principalmente Marina.

Ruy Gardnier escreveu no site Contracampo (http://www.contracampo.com.br/64/entrecasais.htm), que o Dogma 95 só deu frutos podres, posição equívoca já pelos primórdios: “Os Idiotas” de Lars Von Trier e “Festa de Casamento” de Thomas Vinterberg (ambos, Dinamarca /1998) são tão instigantes, petardos críticos pertinentes, vão fundo no desmonte de “teatros sociais”, sendo tão extraordinários que hesito e nem consigo escolher de qual mais gosto. Embora “A Falta Que Nos Move” não seja um filme ortodoxo às regras do Dogma 95 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogma_95 ), dele se diferenciando em muitos aspectos, no conjunto é um ótimo fruto dele. A estética do movimento veio para ficar, obedecida em parte ou no todo. Não é a maneira de se opor às formas hegemônicas de se fazer Cinema, mas é uma das ótimas maneiras.

A trilha de “A Falta Que Nos Move” vai desde um trabalho original de Lucas Marcier, Rodrigo Marçal e Luciano Correa, músicas dos Talking Heads, como contém um momento belíssimo de um grande sucesso de Guilherme Arantes ( compositor e cantor brasileiro que precisa ser mais valorizado) que é “Meu Mundo e Nada Mais”, já um clássico (http://letras.terra.com.br/guilherme-arantes/46312/ ), pertinente no todo em que é apresentada, onde um trecho expressa ainda mais o sentimento crescente dos personagens de que por mais que tentem ser felizes com aquele encontro em tempo de comemorações de Natal, estariam melhores em seus mundos particulares ( o que Pedro Brício vai explicitar com mais força ao final, declarando-se muito arrependido de estar ali): “Eu queria tanto/ Estar no escuro do meu quarto/ À meia-noite, à meia luz/ Sonhando! Daria tudo, por meu mundo/ E nada mais...”. Uma das sequências mais belas do filme.

O cinema contemporâneo tem trabalhado muito a questão da metalinguagem. “A Falta Que Nos Move” embarca nesta vertente, mas com grande pujança, emoção e criatividade, que além dos atores, texto e direção e da citada fotografia, advém também muito da câmera ágil que o digital permite, operada por Lula Carvalho, dentre outros. Assim temos uma investigação do que pode ter de cinematográfico no teatral e de teatral no cinematográfico, como nos últimos filmes de Domingos de Oliveira, sendo que os dois momentos supremos no Cinema desta ânsia metalinguística são “ Fellini 8 e Meio” (1963) de Federico Fellini e “Salve o Cinema” de Mohsen Makhmalbaf ( Irã, 1995), meu cineasta iraniano predileto, mesmo não perdendo de vista os grandiosos Abbas Kiarostami ( do recente “Cópia Fiel”) e Jafar Panahi ( “Fora do Jogo”). Enfim, desde que trabalhada com talento e singularidade, a metalinguagem é um dos temas eternos do cinema que veio para ficar, assim como aspectos e o espírito do Dogma (que no fundo não quer ser nada dogmático, mas uma saudável provocação, grande incentivo à criação, fora dos dogmas hegemônicos). Até mesmo Lars Von Trier na acachapante e atordoante obra-prima, Palma de Ouro em Cannes, “Dançando no Escuro”, mescla ideais do Dogma com narrativa mais tradicional, com grande impacto e expressividade, na via-crúcis de uma mulher operária nos EUA, que vai perdendo a visão e precisa pagar uma operação cara, para que seu filho pequeno não tenha o mesmo destino, explodindo todas as convenções do gênero musical. Não é à toa que o nostálgico e conservador Rubens Ewald Filho odiou!

“A Falta que Nos Move” em sua experimentação muito bem sucedida não tem este caráter de explosão de linguagens tanto acentuado assim. O que se ressalta mais são explosões fascinantes e comoventes dos personagens que em nada se assemelham a “atores canastrões da própria vida”, com exceções, que “atuam” num BBB da Globo, algo pra mim insuportável ( já tentei assistir mais e execrei o que vi), comprometidos que estão por ganharam “titulo de celebridades “a la Andy Warhol” e os 15 minutos de fama, uma fantástica bolada ao final do programa, mesmo que para isto tenham de mentir, fingir, dar rasteiras em colegas etc. Se comento isto é porque li críticas que aludem a certa influência de realities shows ( pra mim, uma praga que assola a televisão mundial e principalmente a brasileira) na obra de Jatahy. O fato de em “A Falta que Nos Move” termos profissionais envolvidos de grande talento, experiência e sensibilidade, em todos os níveis e tendo como meta atingir grande beleza na arte cinematográfica, faz toda a diferença. Comparar com BBB é um sacrilégio.

O filme em essência é o próprio e lindo título: os personagens/atores são movidos pela falta, assim como, a rigor, todos nós. No dia em que nos sentirmos realmente e totalmente plenos (o que é inatingível), só nos restará morrer. Para o filósofo Arthur Schopenhauer, uma inspiração para o filme, esta sensação de plenitude só viria mesmo em vida atingindo-se o nirvana, conforme as ideias do budismo. Mas como para nós ocidentais, de modo geral, será possível isto? O grande professor, crítico teatral e filósofo Gerd Bornheim (já falecido, um dos poucos brasileiros, entre os que conheci/li em que realmente consigo associar verdadeiramente a esta condição; outros que observei são mais professores de filosofia do que filósofos propriamente ditos) declarou num seminário assistido, com toda razão que por mais que tentemos, nossa herança judaico-cristã ocidental é muito forte e é dificílimo, senão impossível, para nós ocidentais, nos livrarmos inteiramente dela e seu peso.

O filme, com algumas regras rígidas (pouco se sai da bela sala claustrofóbica: uma das exceções é a ida para um quarto onde uma transa angustiada entre Kiko e Cristina mal se realiza) no fundo é uma ode à impossibilidade de controlar o fluxo indeterminado da vida, fruto do acaso, do imponderável ( ou de Deus?), que é aonde está sua maior riqueza. Por mais que planejemos nossas vidas (isto é imperioso), parece nos “dizer” o filme, “20% vem do planejado e 80% é indeterminação”. O primeiro é exceção, o segundo é regra (pelos menos minha vida em retrospecto revela isso e de outras pessoas que acompanhei). Não aceitar isso é um atalho para a infelicidade e a frustração, amargura. Aceitar isto é um risco, mas incontornável, aonde um gozo consistente da vida pode acontecer mesmo com intermitências, os “fundos e topos”: “Tristeza não tem fim. Felicidade sim”. É certo que “não há ventos favoráveis para quem não sabe para onde ir”, mas se formos obstinados, fundamentalistas, numa meta, não perceberemos “ nem os ventos favoráveis, nem os desfavoráveis e muitas vezes nem os distinguindo”.

Viver é muito perigoso”;”É o diabo na rua no meio do redemoinho” - nos reitera várias vezes Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, ou de uma forma mais simples, “São demais os perigos desta vida”- Vinícius de Moraes. É deste conflito entre planejamento e grande indeterminação que vem as grandes aventuras e/ou desventuras humanas. Há os que se apegam às “felicidades catalogadas” segundo Clarice Lispector, para mergulharem na infelicidade, pois se a rigor a felicidade como um estado constante não existe (o que existe são momentos felizes que não podem ser desperdiçados), infelicidade, infelizmente, parece existir mesmo. E a sociedade humana com seus tabus, seus preconceitos, suas burocracias disfarçadas de ideologias ou políticas, sua total despreocupação com a felicidade humana (como lembrava o angustiado Rainer Werner Fassbinder e tematiza em muitos dos seus filmes), algo agora ainda mais radicalizado, com tanta pulverização e incitação ao consumo exacerbado (até ao de bens culturais, o que feito em doses cavalares, sem tempo para meditação pode ser contraprodutivo e sofisticadamente alienante, quando não, comprometedor da própria vida) é uma usina de armadilhas para a infelicidade.

“A Falta que nos Move” é uma obra que nos demove da passividade rotineira de muitos filmes homogeneizados, higienizadores, conformistas, mas sem também o ranço de muitas experimentações com a linguagem que se comprazem nesta atitude, como se dali não tivesse que brotar grande vitalidade também, autênticos tiros nos próprios pés que são, chatos de doer.

O filme nos move a muitas reflexões tanto com o que mostra, quanto com o que não mostra, mas fica insinuado, mais no extracampo das ideias do que das imagens, deixando uma visão clara de que não podemos compreender o mundo de hoje olhando apenas para nossos umbigos e pares, mas sim mirando outras gerações, seus impasses existenciais e emocionais que podem até serem um tanto diferentes dos nossos, mas também os iluminam, pois no fundo se trata da condição humana, de sermos todos “personagens em busca de um autor”. Em meio às indeterminações uma certeza fica: não se pode mesmo esperar Godot. Se um dia encontrarmos Godot, é porque ele veio até nós e não porque nós fomos até ele em vida, ou o esperamos.

Curiosa e sintomaticamente é a direção fria de um filme dentro do filme por mensagens de celular, esse ícone da comunicabilidade que se tornou avatar fetiche da incomunicabilidade neurótica, que mais contribui para a confusão no ânimo dos personagens/atores. Numa estética, orçamento e proposta completamente diferente, mas também arrebatadora, em “Os Infiltrados” de Martin Scorsese, um dos mais impiedosos retratos da contemporaneidade, a grande dose de violências físicas eclode também por insuficiências e confusões de onipresentes celulares, que acabam sendo tão mortíferos indiretamente quanto as armas o são diretamente.

A grande explosão de Pedro Brício ao final, o pedido de desculpas chorando de Kiko, gerando depois o convite a que todos façam o que tem de mais íntegro e verdadeiro, depois de todo o ocorrido, que é chorar para a câmera, com closes e planos gerais, constitui uma sequência belíssima, a se reter. Como também o corte para o brinde de todos à vida, às mentiras bem contadas etc., quando o dia já está amanhecendo e um café está sendo preparado. Um filme inteligente e sensível até no otimismo que advém do pessimismo total catártico, num mundo onde cada vez mais o único consenso é o dissenso.

Com “A Falta Que Nos Move”, Christiane Jatahy tem a mais auspiciosa estreia no longa-metragem, no terreno da ficção ( mesmo que mesclada à realidade) no Cinema Brasileiro, desde Karim Aïnouz em “Madame Satã” ( 2002) e Marcelo Gomes em “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005). É o filme brasileiro do ano até aqui. Dificilmente superável.

Ps1 Está em cartaz no Teatro Sérgio Porto até o final de julho, “O Livro” de Newton Moreno, direção de Christiane Jatahy, num trabalho incrível de Du Moscovis como alguém que recebe um livro do pai com a mensagem de ficará logo cego e tem de descobrir o que fazer no tempo que resta, indeterminado, de visão, num jogo em que emoções do ator também ecoam nas do personagem, em uma cenografia de papéis enormes e extensos muito bela.

Os demais trabalhos da diretora acompanhei pela imprensa. Certa noite no CCBB por um triz não fui ver “A Falta que Nos Move” na Casa França Brasil. Optei por ver mais um filme de um importante festival no CCBB. Algo do que me arrependo hoje, vendo o que se mostra no cinema. Para um maior conhecimento do teor do espetáculo teatral que deu origem ao filme e seus antecedentes, vale a pena acessar http://www.artepluralweb.com.br/atualizacao/releases/06/novembro/sescpaulista_christiani.htm

Como o título “A Falta que nos Move” vem do filósofo Arthur Schopenhauer, também é muito interessante ter uma visão geral de vida e obra através de

http://pt.wikipedia.org/wiki/Arthur_Schopenhauer

Ps2 O filme merece ter sido bastante prestigiado no fim de semana de lançamento, pois tem aquela velha e triste história do fatídico (e errôneo) critério mercadológico do desempenho neste período determinando a carreira de um filme, sem tempo suficiente para o boca a boca surtir seus melhores efeitos. Se com outras artes acontecesse isto, acabariam. No entanto o Cinema Brasileiro mais autoral resiste! Um prodígio, num país em que o diagnóstico de Paulo Emilio Salles Gomes em "Um Intelectual na Linha de Frente", “Trajetória no Subdesenvolvimento”e outros textos, continua atualíssimo: "O Cinema Brasileiro é estrangeiro em sua própria terra". Mas é bom não esquecer que há cineastas brasileiros que mesmo trabalhando com orçamentos muito maiores do que os de Jatahy, conseguem imprimir sua marca autoral e atingir o grande público, tendo espaço mais assegurado no circuito. Não são muitos, mas existem. É o caso de Hector Babenco, Cacá Diegues, Walter Salles, José Padilha ( e poucos outros que não me ocorrem agora). Mas no conjunto de propostas bem autorais do Cinema Brasileiro, “são exceções que confirmam a regra”.

Ps3 Consultando a programação do circuito a partir de sexta-feira, 7 de julho constato que o filme continua no Arteplex com 3 sessões diárias e no Vivo Gávea com duas. Mesmo mal, ainda que merecesse mais.

Ps4 Uma crônica teatral da minha geração, dos que nasceram por volta de 1954 (eu só quis vir ao mundo dois meses depois que Getúlio morreu, no final de outubro deste ano...; por mais que ele tenha sido injustiçado no fim da vida, levando-o a um estratégico suicídio, nunca suportei a ideia que este grande e criminoso ditador do Estado Novo tivesse sido eleito democraticamente depois....) está no delicioso e crítico “Salve Amizade”, escrito e dirigido por Flávio Marinho. Sou de uma geração que era jovem demais para “embarcar” no movimento hippie, na contracultura, como também na resistência ao regime militar na luta armada ou outra forma de luta, se educou em todos os níveis (quem conseguiu...) durante a brabeza deste período, se formou nos estertores deste regime, trabalhando e pegando rebordosas deste e quando o país foi se democratizando, também enfrentou a dureza de fortes crises econômicas e políticas sucessivas, sendo que ainda pegamos os primórdios da revolução da informática com os microcomputadores, que exercia fascínio, mas era também intimidadora e aterrorizante, o que hoje os jovens “tiram de letra” etc. Mas conseguimos viver um razoável tempo em que o vírus do HIV não era um problema. Ufa! Pelo menos isto!Ah! Sim...Algumas formas de resistência à ditadura militar, não radicais foram possíveis. Num outro post, relato minhas experiências.

Da peça muito bem humorada (mas das que o humor às vezes dói ),em que duas mulheres sem namorados pensam em conquistar dois homens com quem estudaram ( mas um deles é gay e o outro comprometido), tem pelo menos uma fala inesquecível que vem da jornalista vivida por Louise Cardoso, sem filhos, sem marido:”Se eu não sei mais o que é certo ou errado para mim mesma, como é que eu saberia o que é certo ou errado para um filho?”

Fazem parte de minha geração, além do dramaturgo e diretor Flávio Marinho, o jornalista Artur Xexéo ( uma roleta russa: tanto pode escrever coisas interessantíssimas, como também as abobrinhas mais irrelevantes e dispensáveis), o cineasta Bruno Barreto ( com vasta filmografia, alguns filmes excelentes, bastante subestimado por fazer parte do “clã Barreto”, odiado por muita gente - que superestimam os erros e esquecem as grandes qualidades e o papel histórico louvável- e pela condição lembrada por Tom Jobim: “No Brasil fazer sucesso muitas vezes é uma ofensa”), o ator Diogo Vilela ( entre os grandes desta geração, com muitíssimos mais acertos na carreira prodigiosa, do que “erros”) e outros que eu e vocês podemos pesquisar. Só fomos salvos nesta jornada, pelo esforço pessoal e principalmente pelas amizades conquistadas, mas também frutos de situações indeterminadas, encontros mágicos. Salve amizade!

7- “Estranhos Normais(Itália, 2010) de Gabriele Salvatores

Gabriele Salvatoris ganhou maior visibilidade quando recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por “Mediterrâneo”( 2003), um bom filme que nos mostra como militares italianos escalados para a guerra, ao encontrarem um povoado do Mediterrâneo, com certo ar paradisíaco, passam a rever seus papéis como pessoas levadas à belicosidade e descobrem o dolce far niente que é viver por ali, esquecendo a guerra da qual deveriam fazer parte. É um filme com colorido especial, singular, mas não chega a se constituir numa grande obra que merecesse este prêmio, como foi o caso de “Caráter”, “Mephisto”, “A Vida dos Outros”, “A Partida”, dentre tantos outros ( sim, Hollywood também já acertou muito nesta premiação, apesar dos que insistem em escrever/dizer que ele é sempre previsível).

Mas o grande trabalho de Gabriele já exibido no Brasil, muito pouco comentado, é um dos mais dolorosos rituais de perda da inocência de uma criança/jovem do Cinema ( tema que já nos deu também as obras primas “O Mensageiro” de Joseph Losey e “Brinquedos Proibidos” de René Clement, dentre outras), que é “Eu Não Tenho Medo”(2005). Aqui temos um menino que vai descobrindo aos poucos que os pais e pessoas próximas são sequestradores perigosos e mantém em cárcere num buraco outro menino. Os dois fazem contacto. A família do garoto não quer pagar o resgate. As coisas se complicam bastante, para todos, num desfecho atordoante, com belíssima composição visual.

“Estranhos Normais” é uma comédia inteligente metalinguística que não é plenamente bem sucedida. Ezio (Fabio de Luigi, muito bom) é um roteirista de cinema, que escreve uma história em que duas famílias, um tanto exóticas mas diversas, acabam se aproximando porque dois jovens de 15 anos, cada um fazendo parte de uma delas, resolvem se casar. Ezio também se coloca nesta sua história.

O filme não esconde sua fonte teatral (baseado em peça de Alessandro Genovesi). Principalmente em sua primeira parte, hilária, em que os personagens e o escritor se dirigem para a câmera para narrar suas vivências e impressões. A sequência mais engraçada do filme se dá quando o computador de Ezio tem uma pane e aparecem na tela (e depois em torno dele), seus personagens, cada um com suas queixas e/ou comentários sobre o destino que tem tido, terão ou poderão ter.

Numa segunda parte em que as duas famílias se reúnem em torno de uma mesa, junto com Elzo, há revelações inusitadas, sarcásticas, bem humoradas, mas no conjunto o filme cai um tanto.

Estranhos Normais” é um bom filme. Mas conhecendo “Não Tenho Medo” e estando em cartaz “Meia Noite em Paris” de Woody Allen, “Potiche” de Ozon, não perdendo o vício das comparações, temos aqui um filme que merece ser prestigiado, mas no fundo é limitado e está longe do que o diretor já conseguiu nos mostrar. Não é um caso de preconceito em relação a comédias. Ozon e Woody (este em maior escala) nos mostram o quanto este gênero bastante difícil, pode ser tão divertido, mas também bastante revelador.

8- A Vida é Um Teatro e o Teatro é a Vida

8.1- "O Retorno ao Deserto", de Bernard-Marie-Koltès, direção de Moacir Chaves- Teatro Laura Alvim (o principal)

Meu primeiro contato com a dramaturgia instigante e forte do francês Bernard-Marie-Koltès(vide http://blog.meiapalavra.com.br/2010/06/26/bernard-marie-koltes/ e http://www.bernardmariekoltes.com/ ),falecido precocemente por complicações de saúde relativas a Aids, foi numa extraordinária montagem de Gilberto Gawronski para “Na Solidão dos Campos de Algodão”, em que o diretor e Ricard Blat em trabalhos soberbos eram um vendedor e um cliente. Sabe-se que uma tensa negociação está em jogo, mas não se tem certeza sobre o que está sendo vendido: o corpo, drogas, passaportes falsos etc.? Poucas vezes uma obra de arte mostrou com tanta contundência um mundo de relações humanas estilhaçadas pela mercantilização barata e a um preço muito alto também, com efeitos que vem se agudizando cada vez mais, com as mais nefastas consequências, a principal delas sendo a grande solidão a que empurra os seres humanos.

Em “O Retorno ao Deserto” temos numa linguagem não realista e sim fortemente poética e metafórica (o que pode confundir algumas pessoas), a volta de uma mulher e seus filhos, exilada na Argélia, à casa onde mora o irmão, a mulher e o filho, além de um criado muçulmano fiel, numa província francesa, que é de propriedade dela. O irmão administra uma fábrica herdada. Ela optou pela casa na partilha de bens. Sua chegada gera muito mais ódio do que qualquer outro sentimento e traz à tona a misteriosa morte da primeira mulher do irmão há 15 anos. Assim a guerra colonial França-Argélia, seus efeitos deletérios, é vista através do microcosmo de uma guerra entre irmãos franco-argelinos e seus filhos.

Os atores do espetáculo estão todos excelentes, principalmente José Karini ( Adrian) que tem de trabalhar sempre num tom exaltado, conforme pede seu personagem e Mônica Biel (Mathilde), os irmãos inimigos, que ao fim acabam fazendo uma aliança, em nome de um fortíssimo e simbólico racismo, desconcertando o espectador. Fernando Lopes Lima, ótimo como o criado Aziz, compõe também o político local Sablon com um tom excessivamente caricatural afetado, que não se sabe se foi orientação do diretor ou está no texto. De qualquer forma soa como algo estranho ao tom geral da encenação.

Moacir Chaves (do extraordinário “Sermão da Quarta Feira de Cinzas” com Pedro Paulo Rangel, baseado em texto do Padre Antônio Vieira) faz de modo geral uma direção muito boa, fazendo os atores terem voz muito bem projetadas no ambiente do teatro, em posições um tanto rígidas, quebradas por momentos de explosão ou de ressonâncias poéticas, mas que enfatiza a opção por um não realismo do autor. Aonde o espetáculo peca é no cenário, que se é bem construído em cada sequência, dado as várias transições que são exigidas, forçam um trabalho muito evidente e numeroso dos atores para as metamorfoses necessárias no palco, o que quebra um tanto do ritmo do trabalho. No entanto, tentei imaginar soluções cenográficas que fossem diferentes das adotadas, mas não consegui. Trabalho mais astuto para um cenógrafo do que o realizado por Sérgio Marimba e do meu imaginado que sou leigo.

Claro que no conjunto, restrições à parte, trata-se de um clássico da dramaturgia contemporânea muito bem montado e que merece muito ser prestigiado. Pena que no domingo em que fui assistir, havia muito poucas pessoas, o que pode até fazer os atores renderem menos, pela troca de energia menor, o que acabei não sentindo. Mas é sempre um tanto constrangedor estar numa plateia com pouca gente, por melhor que seja a peça. Fico pensando no que podem estar sentindo os atores. Lamentavelmente, a menos que eu tenha me distraído “ O Globo” , o mais influente jornal impresso do Rio de Janeiro, não fez ainda nenhuma crítica do espetáculo*, que se positiva pode levar muita gente a este espetáculo imperdível.

*Conferi em http://rioshow.oglobo.globo.com/teatro-e-danca/home.aspx e não encontrei comentários nem críticas. Vale a pena consultar sempre o Blog de Lionel Fisher que sempre faz contrapontos interessantes ao que O Globo publica. Aqui se tem sua crítica a “O Retorno ao Deserto”:

http://lionel-fischer.blogspot.com/2011/06/teatrocritica-retorno-ao-deserto.html

8.2- “A Moça Mais Bonita do Rio de Janeiro” de Artur Azevedo, direção de Pedro Paulo Rangel.

Até hoje tenho um banzo e nostalgia enormes por espetáculos que não assisti de anos atrás, como “Hoje é Dia de Rock” no Teatro Ipanema com Rubens Correa,a primeira montagem de “Vestido de Noiva” por Ziembinski no Teatro Municipal-RJ, “O Balcão” no Teatro Ruth Escobar, “O Rei da Vela” dirigido por Zé Celso Martinez Correia etc. Um também histórico muito comentado e lembrado é “O Mambembe” de Arthur Azevedo com Fernanda Montenegro e outras feras. Ou eu era muito jovem na época, morando no interior de São Paulo, ou foram encenados antes de eu nascer. Só uma máquina do tempo resolveria estes sentimentos de “exclusão”.

Assim o espetáculo recente baseado em Artur Azevedo com excelente adaptação de Augusto Pessôa, também um dos atores do espetáculo, veio mitigar um pouco desta última lacuna, pois não só temos uma pequena joia de texto, como a montagem com ótimos atores, se revezando em vários papéis, com grande inteligência e ainda fazendo de mulheres na plateia, a moça em questão, é uma delícia. Divertidíssima e além de focar um ótimo retrato de uma época, tem ressonâncias com o presente, onde impera o oportunismo, o arrivismo e o argentarismo, acima dos sentimentos mais genuínos.

Dona Firmina não quer (ao contrário do marido Raposo que vem a falecer) que a filha, tida como “A Moça Mais Bonita do Rio de Janeiro”, se case com o “pobretão sem futuro” Remígio. Para a filha, sonha com a união com o Barão de Moreira que também a cobiça pela sua fama. Pressionada, “a moça” fica sem defesas e adoece, com consequências inesperadas ( ou nem tanto), mas que dão margem a muito humor e crítica social.

Augusto Pessôa, Rodrigo Lima e René Stern estão impagáveis, fazendo vários papéis, todos irrepreensíveis e com grande time para a comédia. A concepção visual extraiu o máximo no Teatro de Arena da Caixa Cultural-RJ. Ainda que não tenha pautado sua carreira só pela comédia, Pedro Paulo Rangel, grande ator, ignorado pelo Cinema Brasileiro, com raras aparições na tela (com trabalhos antológicos no Teatro como “Soppa de Letras”, onde transformava as mais variadas letras de músicas, dos mais diversos gêneros, em histórias dramatizadas), se vale da experiência no gênero e do grande conhecimento que tem do ofício do ator, para realizar uma direção irretocável.

O espetáculo em questão, apesar do grande sucesso, saiu de cartaz da Caixa Cultural-RJ (lá só se prevê pequenas temporadas), mas se não está viajando merece muito ganhar outro espaço no Rio de Janeiro, pois seu potencial de grande público está longe de ter sido esgotado, o que é atestado pelas palmas hiper entusiasmadas da plateia quando o assisti em seu último dia. Lá na Caixa. Espero e os atores/pessoas envolvidas também que retorne. Daí o prazer e motivação de escrever sobre ele aqui.

8.3- “Bartleby, o escriturário” de Herman Melville, direção e adaptação de João Batista com a CIADRAMATICADECOMEDIA- Teatro Laura Alvim- (o principal)- de 7 a 27 de julho, terças e quartas às 21:00 h.

Nem só de Moby-Dick, se perpetua a Literatura de Herman Melville. Um dos seus trabalhos mais estudados é a novela “Bartleby, o escriturário”, que gera, como toda grande arte, muitas interpretações. João Batista adaptou esta obra para o Teatro e o resultado é muito forte e feliz.

Um advogado, num escritório que é um cenário expressionista, trabalha com três copistas. Estes em seus devaneios delirantes, revelando seus inconscientes, chegam a jogar papéis para o alto de tão atormentados pela maçante e massacrante rotina do trabalho sem graça e repetitivo. Um novo escriturário é contratado, o lacônico e misterioso Bartleby. Este faz um trabalho veloz de copiar documentos, não se socializa com os colegas que o provocam, o incitam a sair para beber e às perguntas do chefe responde sempre: “Prefiro não”. Poucas vezes se dá à audácia de falar algo mais do que isto. O chefe chega a criar um anteparo entre ele e o funcionário silencioso, sobre o qual não sabe nada em relação à origem, descobrindo depois que ele está morando no escritório.

De uma irritação inicial o advogado, para contrariedade de seus outros funcionários que ficam revoltados, passa a nutrir um sentimento de piedade e solidariedade por Bartleby, mas este trará ainda mais confusões com sua “resistência passiva” que fará a todos, redimensionarem suas atitudes, principalmente o chefe, mesmo que após uma mudança de localização do escritório e sendo despedido com todos os direitos, ele crie problemas por continuar morando no mesmo local.

Há um clima kafkiano nítido na peça. O programa dela narra que Kafka, dentre outros , como possivelmente até Becket, foram influenciados por este enigmático conto.

Sem deixar de lado momentos em que a força da Literatura de Melville se impõe nas narrativas, a adaptação conseguiu força dramática muito forte e até mesmo certo suspense com o que pode acontecer com essa situação insólita. Se na cabeça do advogado narrador tudo já aconteceu, nós espectadores não sabemos nem como, nem o porquê , o que sustenta a dramaturgia do texto, ao contrário do que conclui a crítica teatral Bárbara Heliodora em sua crítica em O Globo ( http://www.aarffsa.com.br/noticias3/29061145.html ). Bárbara é um tanto avessa a textos adaptados, prefere textos de origem teatral mesmo, apesar de ter gostado muito de “Crônica da Casa Assassinada”, baseado em romance de Lúcio Cardoso e de “O Filho Eterno” , num de Cristovão Tezza. Não é portanto fundamentalista neste quesito. No entanto, ao meu ver, erra ao não considerar a sutil, mas forte dramaturgia em jogo nesta adaptação de Melville para o palco.

O destino de Bartleby, com seu comportamento subversivo, transgressivo, radical, em que chega um ponto em que nem copiar mais quer ( “Prefiro não”) é algo que está sempre movendo o interesse da plateia. Até onde irá a paciência do advogado também. O cenário expressionista reflete o estado de alma conturbado do herói, por mais que ele procure se mostrar frio, imperturbável, resoluto, sério em suas estranhas atitudes que ficam sem respostas mais conclusivas e podem apenas ser supostas. No fundo temos um texto não realista que reflete sobre o horror da burocracia de um mundo que se assenta sobre a opressão cotidiana de uma proletarização que pode estar em toda parte, como um escritório e em qualquer época. Por exemplo, no Brasil de hoje se discute muito a existência ou não de empregos, a empregabilidade, mas não há a menor preocupação (não só aqui ) com a qualidade do trabalho, em que condições se trabalha. viram imagens do horror que são as diminutas “baias” do pessoal que trabalha em telemarketing de muitas áreas, tendo ainda de ouvir as reações mais desagradáveis das pessoas que incomodam por profissão? Etc...etc.....etc....

A leitura mais “marxista” feita acima, claro, não é a única. A peça/conto trata também da necessidade de libertação de toda automatização nas relações humanas, guiada pelas convenções sociais, até mesmo religiosas, pois no fundo, Bartleby toma pra si a função de Deus, recusando-se a comer e morrendo na prisão, dono de seu destino fatal.

Num trabalho de atores excelente, onde se destaca o advogado (Duda Mamberti) e a composição de Bartleby, numa dinâmica narrativa e evolutiva bastante atraente e surpreendente, o espetáculo merece ser visto por todos os que se interessam pelos (des) caminhos das (des)aventuras humanas. Os mistérios da condição humana continuarão após a visão do espetáculo, mas esta escuridão será pelo menos um pouquinho mais iluminada. Pelo menos seremos convidados a termos mais compaixão pelo ser humano e as armadilhas sociais, existenciais e metafísicas em que caem ( caímos). Não se saberá com certeza o que move Bartleby, mas entenderemos um pouco mais o que nos move.

Ps1 Ao sair do Teatro, envolvido em pensamentos me enganei de rua para pegar ônibus para casa, o que me fez pegar um, com certo tempo a mais. Pois nele estava um ator da peça no banco de trás e puxei uma conversa que se revelou muito interessante ( coisas do destino). Tememos os dois sobre o que poderia escrever Bárbara dado que é notória suas, em geral, restrições a adaptações do que não seja peça no original. Dito e feito: ela não gostou nada do espetáculo. Num ponto ela tem razão em sua crítica: faltou no programa com dois ótimos textos, apontar quem é quem no espetáculo. Ao ator contei que me identifiquei muito com as situações da peça. Mesmo trabalhando como engenheiro numa atividade mil vezes mais complexa do que a de um copista, depois de alguns anos tinha vontade de jogar todos os papéis para o alto e dizer “Prefiro não” a todas as perguntas “superiores”.

Ps2 Lionel Fisher gostou muito do que viu, como eu. Aqui vai seu texto sobre a peça:

http://lionel-fischer.blogspot.com/2011/05/teatrocritica-bartleby-o-escriturario.html

O texto de Leonel está em destaque na bilheteria do teatro. Isto evidencia o quanto é importante que se faça críticas logo nos jornais, principalmente em O Globo, o mais lido. Quanto às negativas dizem que não influenciam o público, só as positivas. Espero que isto aconteça de fato. Algo de que tenho minhas desconfianças, levando-se em conta o preço de muitos espetáculos e a grande quantidade deles, que na prática até mesmo fazendo sucesso de crítica e público podem não ter continuidade, como aconteceu com “Play”, dirigido por Ivan Sugahara, ótima peça e montagem que ficou pouco tempo no Solar de Botafogo e da qual não se teve mais notícia.

8.4- “Conversando com Mamãe”- versão teatral de Jordi Galcerán, de texto do cineasta e roteirista argentino Santiago Carlos Oves- direção de Susana Garcia- Caixa Cultural-Teatro Nelson Rodrigues- até 10 de julho-Temporada Popular*

“Conversando com Mamãe” , independentemente do resultado que apresentasse, tem um grande trunfo: a presença da grande dama do Teatro ( por mais batido que seja este epíteto, mas é verdadeiro ) Beatriz Segall. Nunca vi nenhum trabalho com ela que não fosse arrebatador. Sempre que comparece com uma peça nos palcos, é uma escolha muito bem feita, um desafio a ser vencido como nos inesquecíveis “Emily” (Dickinson, a grande poetisa americana), primeira e auspiciosa direção teatral de Miguel Falabella (a solitária Emily, que restringiu sua vida a uma província americana, encantada com a aurora boreal, é algo que não mais se esquece, dentre outros momentos), “O Manifesto” ( junto com Cláudio Correia e Castro, onde de esposa submissa passa a ser uma ativista para desgosto do marido militar ), “Caça à Raposa” ( onde é a raposa-mor de uma família criada pela dramaturga, roteirista Lillian Helman, num microcosmo do capitalismo emergente no início do século XX), “Três Mulheres Altas” de Edward Albee ( uma das mais críticas e cruéis peças já escritas, onde ela é uma mulher bastante amarga em idade mais avançada, que interage com ela mesma em outros estágios de sua vida- interpretados por Nathalia Thimberg e Marisa Orth) etc..etc....etc.....Um dos banzos teatrais da minha vida é não ter visto a elogiadíssima visão de “À Margem da Vida” de Tennessee Williams com Beatriz.

Por melhor que esteja Herson Capri, grande ator pouco comentado, o espetáculo maior em “Conversando com Mamãe” é de fio a pavio, a atuação magnetizante de Beatriz Segall, agora numa chave irônica e cômica.

Uma mãe solitária de 82 anos, cujo filho já saiu de casa há 25 anos, ainda prepara refeições como se ele ainda morasse com ela. Através da comida que sobra colocada embaixo de uma árvore, acaba conhecendo um “argentino anarquista” pobre de 69 anos, com quem passa a flertar e até querer morar junto. O filho a visita, com uma ideia fixa: executivo que perdeu o emprego, com cursos dos filhos a pagar etc., quer que a mãe venda o apartamento em que mora. Mas ela, com ironias, despistamentos, “ouvidos de mercador”, procura ignorar as angústias presentes do filho e conversar mais sobre o passado, o futuro que deseja para si ao lado do argentino e insistir no ódio que tem pela sogra do filho.

Instalado este conflito básico, com muitos momentos de forte humor, com o filho se tornando mais compreensivo com a mãe que passa a conhecer melhor, a peça caminha para certa contemporização mútua um tanto excessiva, até mesmo para caminhos de uma comédia. Mas nada que derrube um espetáculo muito agradável e revelador de sentimentos submersos que vem à tona com a sabedoria, a experiência que pode advir da idade e que pode contagiar pessoas mais jovens. Um espetáculo em que há certa dose de irrealidade ( qual será o futuro da família do filho; seus graves problemas continuam até mesmo com uma separação conjugal), mas é irresistível, principalmente por vermos Beatriz em cena no Rio de Janeiro ( pelo menos num aspecto temos uma peça impecável: não cai na pieguice, no açúcar excessivo, o que também é um mérito de composição dos atores). Presença que tem acontecido mais em São Paulo em peças que não vem para o Rio de Janeiro, como uma em que contracena com a ótima atriz Rita Elmôr, do inesquecível monólogo “Que Mistérios Tem Clarice?”.

* O carisma do espetáculo tem fôlego para continuar ainda em cartaz em outro teatro. O que espero que aconteça. O teatro Nelson Rodrigues também tem o (mal) hábito de dar pouco tempo aos espetáculos ali em cartaz, com bom público ou não. Vi um show extraordinário de Leila Pinheiro ali, com fantásticos elementos cênicos, cantando Renato Russo, comemorando 30 anos de carreira, para um público que tomava todo teatro e no entanto ficou ali por três dias, se tanto.

9- Literatura Impregnada em Mim- “A Fúria do Corpo” de João Gilberto Noll (Editora Record/ 1981)- ( Há também edição da Editora Rocco, bem como nova edição da Record)

Meu primeiro contacto com a literatura de João Gilberto Noll se deu através do belíssimo livro de contos “O Cego e a Dançarina”, onde um deles, “Alguma Coisa Urgentemente”, adaptado ao cinema por Alcione Araújo e Jorge Durán, gerou uma das obras-primas do Cinema Brasileiro: “Nunca Fomos Tão Felizes” de Murilo Salles, onde um pai envolvido com a resistência à ditadura (Cláudio Marzo) vai buscar num colégio interno seu filho, já um jovem adulto (Roberto Bataglin) para morar com ele e o jovem aos poucos, com muitas tensões interiorizadas e incomunicabilidades, vai tentando descobrir, afinal, o que fazia seu pai e o porquê deste reencontro tardio. Optando mais pelos longos eloquentes silêncios, é uma das obras antecipadoras de muito que se faz no Cinema Contemporâneo hoje, não só no brasileiro.

“O Cego e a Dançarina” me impressionou já pela epígrafe de Adélia Prado, que eu já havia destacado, dentre outros versos, num livro de poemas de Adélia Prado: Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada está morto. O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera. Adelia é uma mulher católica que vive em Divinópolis, nada ortodoxa, com versos que fariam corar religiosos cristãos fundamentalistas que estão atravancando projeto de lei anti-homofobia (e vencendo!), dentre outros males, como o genial: “Deus não me fez da cintura para cima, para o diabo criar o resto”.

Minha aproximação de “A Fúria do Corpo” se deu num momento muito especial da minha vida. Um companheiro da época estava de resguardo decorrente de obrigações que havia feito num candomblé e eu respeitei inteiramente essa situação, lógico. Mas algo me impulsionou a tirar da estante “A Fúria do Corpo” e lê-lo demorada e minuciosamente (como é de hábito na minha relação com Literatura; sou lento para Literatura, preferindo ler bem, indo e voltando, poucos livros, do que muitos de forma afoita; não consigo entender/acompanhar pessoas que dizem que em poucas horas devoraram um livro - será que realmente o assimilaram, ficaram impregnados dele? -; tive um namorado que lia rapidamente romances por método aprendido num curso de leitura dinâmica, o que fatos que envolveram a relação, mostraram depois, que ele pouco assimilava do que lia, provavelmente só o esqueleto do enredo).

Minha leitura demorada do hiper-barroco “A Fúria do Corpo”, que também é uma fúria da linguagem, se deu de forma febril. Um narrador sem nome, sem passado, anjo decaído provavelmente da classe média, desocupado, morando em lugares improvisados, encontra uma mulher mendiga em condições próximas, que ele passa a chamar de Afrodite. Os dois se apaixonam ao modo deles, perambulam pela cidade do Rio de Janeiro e se envolvem em grandes aventuras eróticas (sejam homoeróticas ou não), vertiginosamente, como se só o sexo pudesse dar sentido à vida de desvalidos, excluídos da sociedade, que levavam/a que foram empurrados, ainda que sofram e fiquem bastante angustiados, em meio a bastante êxtases. Há muitas sequências eróticas fortes, narradas sem nenhum pudor, cruas, mas que não deixam de transparecer forte lirismo. Para isto contribui muito o trabalho com a linguagem extraordinário de João Gilberto Noll, aqui num barroquismo que não se deve encontrar em obras futuras do autor, que passou a perseguir certo minimalismo, ainda que com personagens em fuga, deslocados, algo que tomei mais conhecimento por leituras indiretas de entrevistas, críticas e resenhas, do que com o corpo a corpo com estas obras.

Por fim, em “A Fúria do Corpo”, como que num ato de tentativa de purificação, os dois tomam um banho num lugar público, um chafariz, numa outra sequência de grande beleza.

Hector Babenco detinha os direitos de adaptação do romance de Noll para o cinema. Mas como acabou aceitando o convite para dirigir “Ironweed"( 1987), numa adaptação ao cinema do romance homônimo de William Kennedy, foi aos EUA realizar um dos mais belos filmes de sua grandiosa carreira, com Meryl Streep e Jack Nicholson em papéis também de desvalidos que vivem nas ruas ( numa sequência inesquecível, dentre outras, ela vai a uma biblioteca, fingindo que é leitora habitual, só para sentir o conforto deste lugar). O filme, lançado próximo ao Natal, foi um fracasso de bilheteria nos EUA. Segundo Babenco, nesta época, a última coisa que o americano médio gostaria de assistir seria seu filme. Ainda assim Meryl conseguiu mais uma de suas indicações merecidas ao Oscar de melhor atriz. Um filme que merece uma revisão atenta.

Como Babenco já havia feito então uma história com pessoas que vivem à margem da sociedade nestas condições, com alguns paralelos com “A Fúria do Corpo” (mas muito longe de ter o forte erotismo como mola propulsora existencial dos personagens deste), o cineasta arquivou o projeto. Seria muito interessante e revitalizador se algum realizador/produtor comprasse os direitos dessa obra (que não sei se ainda continuam com Babenco), fizesse uma adaptação bastante cuidada e pensada, trabalhasse com excelentes atores, numa direção exuberante etc. , o que daria origem a um filme brasileiro extraordinário, pois o material de origem assim é. Mas que não se caia no erro de Ruy Guerra ao adaptar “Estorvo” de Chico Buarque” para o cinema, pois tornou o que era um fluxo de linguagem belíssimo, enfatizando a inadequação de um protagonista ao Brasil/mundo contemporâneo ( neste sentido tem paralelos com “A Fúria do Corpo”) que tornou o que já apresentava certo hermetismo ( mas nada que não pudesse ser ultrapassado por um leitura mais atenta) em algo hiper-hermético, para mim quase que insuportável, não fosse a fotografia e alguns momentos realmente inspirados.

“Harmada” e “Hotel Atlântico” de Maurice Capovilla e Susana Amaral respectivamente, me pareceram adaptações um tanto anódinas de João Gilberto Noll para o cinema. Mas “A Fúria do Corpo”, numa boa produção em todos os aspectos, tem tudo para ser uma obra-prima do Cinema Brasileiro, como aconteceu com “Macunaíma, “Vidas Secas, “Memórias do Cárcere”, “São Bernardo”, “Guerra Conjugal” etc. , prodígios da relação Literatura/Cinema que se realizou bastante no século passado, mas que hoje quase que não acontece. “Crimes Delicados” de Beto Brandt baseado em Sérgio Sant'Anna, “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles inspirado por romance de Paulo Lins, são umas das poucas exceções. Ruy Guerra também complicou demais a narrativa de “O Veneno da Madrugada”, baseado em Garcia Marquez, restando a se admirar muito mais a fotografia extraordinária de Walter Carvalho. Ele detém os direitos de adaptação de “Quase Memória”, obra-prima de Carlos Heithor Cony. Quando o realizar espero que esteja mais próximo da concepção sua de “Erêndira”(1983) com Cláudia Ohana e Irene Papas, grande filme, baseado em Garcia Marquez.

João Gilberto Noll ficou mais satisfeito em estar numa mesa de uma das últimas FLIPs (Festa Literária Internacional de Paraty) com a cineasta Lucrécia Martel, do que se estivesse com seus pares escritores. Este deslocamento pessoal, está coerente com o de seus personagens.

Em “A Fúria do Corpo” o profano se torna sagrado. Não é à toa que Silviano Santiago em seu livro de ensaios “Nas Malhas da Letras”, tenha colocado Noll no grupo dos “amigos do Reino”, onde estariam também Jorge de Lima, Guimarães Rosa, dentre outros.

10- Um Tanto de MPB

10.1 “Ponte Aérea”- Eveline Hecker canta músicas de Zé Miguel Wisnick- Biscoito Fino (gravado entre setembro de 2001 e abril de 2003; idealização e direção de produção: Patricia Pillar; produção: Zeca Assumpção; direção musical: Eveline Hecker e Zeca Assumpção)

O encontro entre a voz delicadíssima e afinada de Eveline Hecker que já foi professora de música, tendo fundado o “Arranco de Varsóvia”, com as sofisticadas músicas de Zé Miguel Wisnick, não é algo que aconteça fácil na MPB. O CD “Ponte Aérea” promove este encontro, resultando numa beleza etérea fascinante, em ritmos os mais variados, com letras bastante elaboradas, mas nem por isso herméticas, que refletem a vasta cultura do polivalente Zé Miguel, que é professor, conferencista (inesquecível uma palestra sua que assisti em seminário organizado por Adauto Novaes), músico, poeta, cantor, articulista de jornal (imperdível a coluna que escreve em O Globo aos sábados, iluminista em tempos tão confusos/sombrios; prefiro mil vezes as atitudes intelectuais de Zé Miguel que não recusa espaços “burgueses”e dá os seus recados&pensatas, do que as de Marilena Chauí de hoje que se esconde num mutismo- o famigerado silêncio dos intelectuais- só quebrado por entrevistas à Caros Amigos, Fórum e congêneres, pois a chamada grande imprensa não mereceria hoje a menor confiança ( sic), num momento histórico do país em que seria muito importante sabermos mais e melhor o que ela pensa) etc.

“Ponte Aérea” apresenta músicas de Wisnick que são inteiramente suas ( a maioria) e outras com parceiros como Jorge Mautner, Paulo Leminski em uma tradução, Paulo Neves, Zé Celso Martinez Correa num samba contagiante, gerando no conjunto um CD de ritmos diversificados que a voz versátil de Eveline envolve/capta muito bem. Numa delas, “Por Um Fio” temos Zé Miguel ao piano e também cantando com Eveline. Só por esta mostra já dá para vislumbrar o talento de Wisnick também como intérprete. Seu CD “Pérolas aos Poucos”, em que junto à suas suaves e belíssimas interpretações temos participações de outros artistas como Caetano Veloso, Elza Soares, Ná Ozzetti, Jussara Silveira, terminando com um solo dele ao piano, é algo bastante precioso. Procurei por trabalhos dele anteriores, mas não consegui ainda encontrar. Agora está lançando o CD duplo “Indivisível”, conforme matéria citada ao fim do texto.

O preconceito no Brasil é tão multifacetado que conheço gente de vasta cultura que acredita que o bastante culto Wisnick não deveria se atrever a incursionar pela MPB, pois soaria falso. Bobagem! Se isto fizesse sentido não teríamos as obras de Nara Leão e Beth Carvalho, por exemplo, que saíram de seus casulos de classe média e foram atrás de compositores populares. Nem permitiríamos que o “erudito” Villa Lobos também enveredasse por músicas populares etc. etc.

A poética do CD “Ponte Aérea” é apuradíssima, sem facilitações, mas altamente gratificante para quem prestar mais atenção. Aqui uma súmula dela tirada de cada faixa:

“Canção que ficou/ Pra trás, pra sempre/Assim no ar/ Diga para mim/ Eu não posso mais/ Sobre a curva do mar/ Ponte aérea paisagem do Rio/ Se desfaz”; “Uma vez amanheceu/ Meu pai mostrou o céu/ Onde nasceu redondo o sol/ Abrindo um rombo no azul/ Abrindo um sonho/ Abrindo um tambor de luz”; “Túnel fundo/ Noite, sonho e dilúvio/ Em que me vi vivo e viúvo/ Canta o pássaro no arbusto/ Mesmo em sonhos eu escuto/ Canto e grito de lamento e luto”; “Vê se encontra um tempo/ Pra me encontrar sem contratempo/ Por algum tempo/ O tempo dá voltas e curvas/ O tempo tem revoltas absurdas/ Ele é e não é ao mesmo tempo”; “Choveram-me lágrimas limpas/ Lágrimas ininterruptas/ Na minha infância campestre, celeste/ Na mocidade de alturas/ De alturas e loucuras”; “Que sonho nos sonhou e lançou/ Neste limbo em que a vida é assim/ Que símbolo cavou entre nós/ Dentro em nós/ Este estranho jardim”; “Muito além ou aquém da saudade/ Sou ninguém ou alguém alem da dor/ Que chegou até onde vai o mar e voltou/ Encalhado no fado estou/ Viajante adiante da viagem/ A levar todo mar e Atlântida/ Sou curare de uma tribo sem margem”; “A vida leva e traz/ A vida faz e refaz/ Será que quer achar/ Sua expressão mais simples/ É sobre-humano amar”; “Teu véu/ Do mesmo fio/ Em que a vida teceu/ Sua fibra/ O céu/ A cristaleira de estrelas no breu/ Se equilibra”; “Que só há no bem-querer/ E na negra escuridão/ Assum preto foi/ Asa branca dói/ Muito além da solidão” ; “Por um fio eu me parto em dois/ Aceito o que a sorte dispôs no meu caminho/ Vejo a vida a morte e o depois/ Não vou viver jamais sozinho”; “Trazendo o sonho o apagamento/ Dos endividamentos de cada dia/ Um deus que aos deuses se dá/ Um deus que se põe ao dispor/ Não há melhor drogaria pra o amor”; “Cola em mim até ouvir/ Coração no coração/ O umbigo tem frio/ E arrepio de sentir/ O que fica pra trás/ Até perder o chão/ Ter o mundo na mão/ Sem ter mais/Onde se segurar/ Se meu mundo cair/ Eu que aprenda a levitar”; “Mas se arrisca teu olhar pra trás/ Encara sem receio o escuro e o nunca mais/ Depois vai seguindo assim sob este céu/ Azul sem fim/ E você é onde se guardou em mim/ A música”; “Preciso te dizer que não/ Preciso repetir que sigo só/ Mas me diz o que é o amor/ Me explica por favor/ O que me faz querer/ Ser saudade de você/ Saudade da saudade de você e eu”.

Posso estar enganado, mas a impressão que tenho é que este belíssimo e fundamental CD de Eveline canta Wisnick não aconteceu ou não aconteceu na grandeza em que merecia, tanto por parte de um público mais cult digamos assim, como por parte da crítica. Se for verdade, é uma pena. Mas sempre é tempo de descobri-lo e o valoriza-lo à altura de sua força e singularidade na MPB.

A obra musical de Wisnick (que inclui também trabalhos para o Grupo Corpo, capitaneado pelos irmãos Pederneiras de Minas Gerais) é tão rica, vasta, lírica, propensa a tantas leituras ( mesmo que tenhamos a nobre impressão de que ela foi feita para a voz de Eveline), que até mesmo outros artistas deveriam se dedicar mais a ela. Ná Ozzetti, de quem ouvi pela primeira vez interpretações lindas de Wisnick, o samba “Sócrates Brasileiro”,“ “A Olhos Nu, “Libra” e “Orfeu”, em seu primeiro trabalho solo fora do Grupo Rumo, “Ná Ozzetti”, recentemente lançado em CD, em sua maravilhosa carreira ainda deve aos seus apaixonados fãs como eu, um CD só dedicado a Wisnick. Tenho certeza que Eveline ficaria muito contente também, sem ciúmes...

Ps- Já tinha separado e reouvido muitas vezes o CD “Ponte Aérea” de Eveline, disposto a escrever sobre ele. Por uma feliz coincidência, sai em O Globo (parece até que sou do departamento de marketing do jornal, mas acontece que o Segundo Caderno, sobre Cultura de modo geral, de uns tempos pra cá, melhorou bastante e isto tem que ser reconhecido; os paulistas que não me leiam/perdoem, mas está muito melhor que a Folha Ilustrada ), uma ótima matéria sobre Wisnick e seus projetos. Aqui vai o link:

http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2011/07/03/imerso-em-oswald-de-andrade-jose-miguel-wisnik-devora-digere-musica-literatura-em-cd-exposicao-bale-show-palestra-na-flip-924822914.asp

Sobre Eveline recomendo:

http://www2.uol.com.br/ziriguidum/0403/040322-01.htm

http://www.brasilbacana.com.br/produto/2943079/Eveline-Hecker

Ouça Eveline e Zé Miguel (ao piano) cantando “Por Um Fio" em

http://blogln.ning.com/profiles/blogs/penelope-cafu-por-um-fio

10.2- “Líricas” de Zeca Baleiro- Distribuição Universal Music sob licença da MZA Music, gravado entre 29 de maio e 2 de agosto de 2000- direção artística de Marco Mazzola -produzido por Zeca Baleiro.

Um dos comentários recorrentes sobre a MPB é que depois da aparição na época áurea dos festivais de Chico, Caetano, Gil, Edu, Vandré etc., não surgirá mais geração como esta. Isto é uma meia-verdade. Grandes talentos surgiram depois, de gerações não tão distantes assim: Djavan, Chico César, Lenine e Zeca Baleiro, dentre outros.

Não conheço todos os trabalhos de Zeca Baleiro. Dentre os que ouvi, o que mais me impressionou é o à vontade em que musicou poemas de Hilda Hilst como se poemas e canções tivessem nascido uns para os outros em “Ode descontínua e remota para flauta e oboé - de Ariana para Dionísio”, gravado por cantoras da MPB, incluindo Ângela Maria na última faixa ( vide http://www2.uol.com.br/ziriguidum/0603/060324-01.htm ).

Dentre os demais CDs de Zeca, aquele por qual tenho mais apreço é “Líricas”, em que os ritmos podem variar bastante (soul, baladas etc.), mas sem perder um lirismo indo do mais cáustico (“Você só pensa em grana”), ao mais doce (“ Brigitte Bardot”).

Zeca sem ser especialmente um grande cantor, na linha de frente da MPB, é o que se pode chamar de grande intérprete, com voz e estilo bastante singulares, sabendo dar todas as pausas e avanços que suas músicas pedem e que ele conhece muito bem. Claro que outras interpretações são possíveis, mas ouvi-lo é uma experiência bastante gratificante, mesmo com músicas de outros, pois ele tem um jeito muito particular de cantar que não remete a nenhum outro. Sua mistura de acidez com ternura é algo raro na MPB. Talvez Lenine lhe seja próximo. A imaginação poética de Zeca trabalha com muitas associações que a princípio podem parecer estranhas, exóticas, mas depois mostram a força que tem. Vejamos as de “Líricas”:

“É mais fácil cultuar os mortos que os vivos/ Mais fácil viver de sombras que de sóis/ É mais fácil mimeografar o passado/ Do que imprimir o futuro”; “Ah, eu pagava pra ver/ Nós dois no cavalo de Ogum/ Nós juntos parecendo um/ Na lua na rua na casa em casa/ Brasa da boca de um dragão”; “Eu vou fazer de tudo que eu puder/ Eu vou roubar essa mulher pra mim/ Posso te ligar a qualquer hora/ Mas eu nem sei o teu nome/ Se não eu quem vai fazer você feliz?/ Se não eu quem vai fazer você feliz?” ( música e letra de Chorão, Marcão, Champigon, Thiago e Pelado); “Minha religião é o prazer/ Não tenho dinheiro pra pagar a minha ioga/ Não tenho dinheiro pra bancar a minha droga/ Eu não tenho renda pra descolar a merenda/ Cansei de ser duro vou botar minh’alma à venda”; “Giorgio/ Eu tive um sonho risonho e terno/ Sonhei que era um anjo elegante no inferno/ Giorgio/ Eu sinto medo na longa estrada/ O medo é a moda desta triste temporada”; “Morena vem cantar a toada / Zoada eu cansei de escutar/ Cinema onde a luz/ Não se esconde/ Quem sabe/ O olho acusa/ E a blusa da musa me veste/ Amor palavra sem uso/ Vacina da peste”; “ Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra/ Embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar/ Me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre/ ( tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa” ( Poema de E. E. Cummings-Tradução em português : Haroldo de Campos- musicado por Zeca Baleiro); “Qual é a parte/ Da tua estrada/ No meu caminho/ Será um atalho/ Ou um desvio/ Um rio raso/ Um passo em falso/ Um prato fundo/ Pra toda fome/ Que há no mundo” ( música de Zeca Baleiro sobre letra de Alice Ruiz); “Quando eu nasci um anjo só baixou/ Falou que eu seria um executivo/ E desde então eu vivo com meu banjo/ Executando os rocks do meu livro/ Pisando em falso com os meus panos quentes/ Enquanto você ri no seu conforto/ Enquanto você me fala entre dentes/ Poeta bom meu bem poeta morto”; “Tudo que é urso hiberna/ Tudo que é peito sangra/ Bomba de Hiroshima/ Explodirá em Angra”; “Só faz milagres quem crê que faz milagres/ Como transformar lágrima em canção/ Vejo os pombos no asfalto/ Eles sabem voar alto/ Mas insistem em catar migalhas no chão”; “A saudade é prego parafuso/ Quanto mais aperta mais difícil arrancar/ A saudade/ É um filme sem cor/ Que o meu coração quer ver colorido....../ A saudade é Brigitte Bardot/ Acenando com a mão num filme muito antigo”.

O CD “Líricas” (para quem ainda tem grande prazer em comprá-los como eu) tem um encarte e capa com fotos belíssimas com o conceito de lirismo estampado e ainda conta com uma preciosa memorabilia onde Zeca Baleiro comenta a motivação e inspiração para as letras e canções, bem como dá impressões suas sobre elas. O seu insight inicial (ainda um tanto inconsciente) para musicar o poema de E.E. Cummings veio de uma cena de “Hannah e Suas Irmãs” (1986) de Woody Allen onde este era lido por um dos personagens, não saiu mais de sua mente e anos depois lhe caiu nas mãos um livro de poemas de Cummings traduzidos por Haroldo de Campos. Não teve dúvidas: iria musicar o poema contido no livro. “Minha casa”, uma canção de estrada, apesar do aparente desencanto, ele considera uma canção de esperança. Etc.etc.

A mais bela canção do CD talvez seja “Brigitte Bardot”, sobre a saudade, a mais lírica, que o remete à infância quando ouvia sua mãe cantar , em especial, “Na virada da montanha” de Ari Barroso e Lamartine Babo. Eis o link para ouvi-la:

http://letras.terra.com.br/zeca-baleiro/49379/

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Não gosto de explicar as razões sempre afetivas que me levam a escolher um determinado filme para o Espaço Homenagem do Blog. Mas neste de agora, faço questão de lembrar: “Simbad e a Princesa” é o primeiro filme que assisti na tenra infância, que me impressionou muito. Hoje sei que os efeitos especiais estonteantes são do mestre Ray Harryhausen. Não era para menos. Uma inocência poética e grande arte que não reconheço em muitos filmes de hoje, excessivamente computadorizados em seus efeitos digitais, o que pode gerar, com exceções, frieza.

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Nelson Rodrigues de Souza