sábado, 30 de maio de 2009

“Os Moedeiros Falsos’’ e as Falsificações da História



Logo após a Segunda Guerra Mundial, num cassino de Montecarlo, rodeado de mulheres e perdendo boas quantias de dinheiro no jogo, Saloman Sorowitsch (Karl Markovcis, excelente) relembra, num longo flashback, as circunstâncias nada comuns de sua vida que o levaram até aquele momento.

Em 1936 era um judeu notório falsário de dinheiro e documentos. É preso e levado para um campo de concentração onde experimenta e vivencia os horrores do sistema nazista. O mesmo oficial que o prende (promovido pelo ato) depois de anos, agora tem novos planos para ele. Junto a outros técnicos é incitado a em nome da sobrevivência e de condições menos indignas de moradia e alimentação, com certas mordomias como um mesa para jogar ping-pong depois do trabalho, a iniciarem uma pequena indústria de falsificação de libras esterlinas para inundar e corromper o mercado inglês e depois de dólares, para um colapso mais geral.

Adolph Burger (August Diehel) é um comunista que passa a ser a única voz discordante do grupo. Não quer ajudar os nazistas a derrotarem os aliados preferindo a morte. Num misto de vergonha, frieza e cálculo bem controlados, Soloman adere ao projeto, chamado Operação Bernhardt, sendo ele baseado num personagem real.O seu trabalho gerencial realmente deu uma sobrevida ao nazismo agonizante.

Enquanto Saloman trabalha na falsificação em massa, ecos inevitáveis de massacres de judeus no campo de concentração chegam até todos. Mas se de início é fiel a uma máxima pessoal marcante, “Os nazistas não vão me fazer sentir culpado por estar sobrevivendo”, submetido a uma seqüência de forte humilhação pessoal, simples, mas suficiente para nos mostrar o horror que é o domínio do corpo dos outros, Saloman passa a refletir mais sobre sua atividade, mas ainda com cautela e dissimulações.

O problema com “Os Falsários” (Áustria/Alemanha/2007) de Stefan Ruzowitzky , Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2008 é que por mais que tenha um ponto de vista bastante original, baseado numa história em seus fundamentos real, não deixa de ser mais um filme sobre os horrores nazistas (cujos pontos culminantes no Cinema foram “O Pianista” de Roman Polanski, “Noite e Neblina” de Alain Resnais e “A Lista de Schindler” de Steven Spielberg, dentre os inúmeros filmes que assisti sobre o tema). Há um certo clima de "déjà vu" que arrefece um pouco o impacto da obra pois não há como não mostrar nazistas impiedosos praticando suas perversidades ( um jovem com tuberculose é sacrificado com um tiro na testa com o hipócrita pretexto de que contaminaria os demais).

Mas o que “Os Falsários” tem de melhor são os movimentos da alma de Saloman que não deixa de ser modificado pelas vivências do horror que acaba presenciando e sofrendo muitas vezes na própria pele.

O problema com mais um filme sobre nazistas e os dilemas morais e éticos acarretados deve ser muito mais deste que aqui escreve do que do próprio trabalho. Tenho receio que com este excesso de filmes sobre o nazismo (só nos últimos meses tivemos “O Menino do Pijama Listrado”, “Um Homem Bom”, “Operação Valquíria”, “Um Ato de Liberdade”) a cabala universal a favor dos horrores cometidos pelo Estado de Israel contra os palestinos fique cada vez mais forte.

Contrariando o que desejava Barack Obama em reunião que tiveram, o premier ultraconservador Benjamin Netanyahu do partido Likud ( eleito pelo povo israelense!), relutante em aceitar a óbvia solução imperiosa de dois estados para a região, continuou autorizando os assentamentos judeus na Cisjordânia, ignorando um Mapa da Paz desejado. Os conflitos Israel/Palestina estão além da Faixa de Gaza, onde vários civis, homens, mulheres, velhos e crianças foram assassinados há poucos meses atrás.

Assim passo a ter a suspeita que um filme como “Os Falsários” por mais integridade que tenha, num conjunto de filmes, passe a nos anestesiar para as barbaridades que o Estado de Israel tem cometido historicamente.

É impressionante a quantidade de filmes sobre o holocausto já premiados pelo Oscar. Não deixa de fazer um tanto de sentido a idéia de que há um lobby judáico muito forte por trás. Há indícios de que o extraordinário documentário “Na Captura dos Friedmans”(EUA/ 2003) de Andrew Jarecki, um emaranhado de verdades e mentiras sobre um pai e filho acusados de pedofilia, que nos deixa atônitos com as perguntas que nos lança, bem mais fortes do que as respostas, tenha sido boicotado por este mesmo lobby.

Mas deixando de lado estas considerações sobre a manipulação midiática que se pode fazer com “Os Falsários” é forçoso ressaltar que o filme tem grandes qualidades, é econômico e foca bem um tema escudado na realidade que já merecia ter sido filmado há algum tempo. O fato de chegar agora aos circuitos quando já estamos saturados de imagens sobre o nazismo que podem ter um efeito anestesiante para os horrores da Israel de hoje, não deve nos fazer evitá-lo. Quem sabe se, num sonho, em vez de aumentar a raiva interna com que Israel tem lidado com os palestinos como bode expiatório, o filme promova uma saudável comiseração por todos os oprimidos, sejam de que lado estejam? Mas sem falsificações como temos observado desde que o Estado de Israel foi construído, desalojando palestinos de suas terras. Estes deveriam ser tratados a pão de ló pelos israelenses, mas esta é outra história, outro filme que merece ser feito com urgência.

http://cinema10.com.br/upload/filmes/filmes_424_Os%20Falsarios%2010.jpg

http://www.cinepop.com.br/cartazes/falsarios.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Navalha na Carne no Mississipi em Chamas



Em 1964 até mesmo bebedouros eram separados para negros e brancos no Mississipi, um dos estados onde mais grassava o racismo em extremos e a Klu-Klux-Klan agia impiedosamente provocando incêndios criminosos com membros e simpatizantes escondidos na sociedade como que se tivessem sido vítimas de “invasores de corpos” e que surgiam em público, covardemente, com horrendos capuzes.

Neste contexto, em “Mississipi em Chamas” (EUA/1988) de Alan Parker, militantes pelos direitos civis são assassinados e os agentes do FBI, Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willen Dafoe), são destacados para desvendar o caso, num ambiente de muito medo e silêncios impostos.

Como em situações exploradas já clássicas no cinema, Rupert e Alan têm temperamentos e métodos de trabalho bastante diferentes. Enquanto o mais jovem Alan é obediente a princípios rígidos e a forte ética pessoal, não avançando em suas investigações, Rupert bem mais despachado chega até a seduzir a mulher de um suspeito (Sra. Pell/Frances Mcdormand) para saber mais sobre o caso. Mas a maior audácia de Rupert é numa cadeira de barbeiro encurralar o suspeito com uma navalha no pescoço para que ele confesse suas ligações com a Klu-Klux-Klan e lhe dê coordenadas, atitude em que acaba vitorioso.

O jornalista Paulo Francis viu no ato de Rupert um exemplo de como se deve agir, pois de nada adianta o bom-mocismo do outro. Esta é não é uma tese que o filme defenda. Ele simplesmente relata uma situação crítica de uma sociedade onde estes métodos são empregados e se aponta em alguma direção é para o fato de que ela deve ser revista de cabo a rabo.

Não foi surpresa esta declaração de Francis, pois este, nos últimos anos de vida, era mestre na arte de fazer declarações estarrecedoras. No programa “Manhattan Conection” afirmou que a África do Sul não fez bem em acabar com o apartheid. Sendo um país muito rico em urânio, esta preciosidade não poderia ser bem explorada pelos negros. Seria um perigo isto não estar nas mãos dos brancos…(sic). Ninguém me contou. Eu o ouvi, pasmo.

Na era Bush várias “navalhas” foram apontadas ou então enfiadas em gargantas para se obter informações. Barack Obama prefere esconder imagens desta época negra, não quer julgar os responsáveis em todos os graus e ainda titubeia em fechar imediatamente a prisão de Guantánamo, o que contraria promessas de campanha. Neste sentido ainda pode-se dizer que os EUA não difere muito do Mississipi que nos mostra Alan Parker em seu eletrizante filme, mesmo tendo um negro no poder....

Quando uma sociedade precisa se valer de “navalhas na carne” em suas várias formas é sinal de que seus alicerces devem ser repensados. A mim, causa certo enjôo ouvir Obama declarar que em nome dos “valores maiores” deste país, tais e tais atos devem ser realizados. Não se vê mudanças realmente mais estruturais. Num artigo recente o historiador Eric Hobsbawn escreveu que a Inglaterra aprendeu com o malogro de suas experiências coloniais, sendo que o mesmo não estaria vendo em relação aos EUA, apesar de torcer por isto.

“Mississipi em Chamas”, o filme, é um dos melhores obras já feitas sobre o racismo nos EUA, com uma pujança narrativa digna do melhor Spike Lee. Mas os ecos que deixa não são tão simplórios como deu a entender Paulo Francis. O filme aponta para a necessidade imperiosa de mudanças de fundamentos. No caldo cultural reinante na época e agora, realmente, não há lugar para o mero bom-mocismo. Mas o que deve ser empregado no lugar deve ser bem repensado e rápido. Com certeza não é “navalha na carne” em suas várias metamorfoses.

sábado, 23 de maio de 2009

Sob as Tortuosas Leis do Desejo



De uma forma sem alardes Ang Lee vai construindo uma das obras mais consistentes e instigantes do Cinema Contemporâneo, abraçando os mais diversos gêneros, seja o filme de época bastante elaborado “Razão e Sensibilidade”; o drama dos anos 70, com a rebordosa dos resquícios de sonhos de amor livre, “Tempestade de Gelo”; a adaptação de quadrinhos “Hulk” fora do esquadro do previsível para este gênero de filme; o drama de artes marciais com refinadas considerações filosóficas, “O Tigre e o Dragão”; o drama de teor homoerótico que contrapõe posturas a princípio antagônicas do Ocidente e Oriente, “O Banquete de Casamento”; o western incomum com a paixão avassaladora entre dois caubóis tardios em “O Segredo de Brokeback Mountain, dentre outros. 

Em comum o que estes filmes tem além do sempre competentíssimo acabamento cinematográfico, ainda que não haja grandes inovações formais (Ang Lee é adepto do cinema em sua acepção mais clássica, o que não pode se confundir com academicismo do qual ele passa longe) são personagens em sérios conflitos com desejos que os movem para caminhos incontroláveis. São seres movidos muitas vezes por pulsões, por movimentos da alma para os quais têm limitados poderes. 

Com “Desejo e Perigo” (China / Taiwan / EUA: 2007), Leão de Ouro no Festival de Veneza, banalizado título brasileiro para o bastante instigante “Lust, Caution”, baseado em história de Eileen Chang, em essência (de certo modo um film noir), por mais que tenha uma roupagem completamente nova na obra de Ang Lee ao se situar no período de 1937 e 1942 , quando o Japão dominou a China militarmente, trata dos imperativos das leis do desejo que são capazes de perturbar até mesmo convicções ideológicas, *o que acabou provocando protestos vetustos de estudantes na China, taxando a protagonista de prostituta. 

Wong Chia Chi (Wei Tang, sensacional descoberta de Ang Lee) é uma estudante que participa de um grupo de teatro que se pretende revolucionário e convidada, aceita formar com seus colegas uma célula política clandestina cujo objetivo é atrair para longe dos seus seguranças o chinês colaboracionista Yee ( Tony Leung, ator fetiche de Wong Kar-Wai , numa elegante e diabólica interpretação) para uma emboscada de justiçamento. Depois de uma tentativa mal sucedida em Hong-Kong, Wong com novos álibis falsos se infiltra na casa de Yee em Xangai, como amiga da Sra. Yee (Joan Chen), como sendo Tai Tai, uma senhora supostamente casada com um homem em crise que agora sobrevive de contrabando. 

Wong/Tai passa a ter relações amorosas tensas, fortes, com doses de sadomasoquismo com Yee, apresentadas à platéia com o máximo de realismo e elegância em angulações ousadas, às claras, de uma forma que não é nada gratuita. Para o desenvolvimento da história é importantíssimo que a relação amorosa/sexual dos dois nos seja mostrada com o máximo de realismo e beleza. *Estas seqüências foram cortadas na exibição do filme na China. Criou-se um turismo cultural para chineses irem a Hong Kong ver o filme sem cortes. A atriz Wong Chia Chi sofreu represálias, sendo proibida de trabalhar por um ano. 

Chega a ser espantoso como um país que aspira a ser uma grande potência seja assim em cultura tão atrasado. Direitos humanos são violados sistematicamente e certo país latino americano onde isto também acontece sofre bloqueio econômico há décadas, mas a China de PIB elevadíssimo não, pois o que importa é o volume de negócios feitos e a compra de papéis melindrosos americanos. 

Mas voltemos ao filme que é o que mais nos importa aqui. Com uma reconstituição de época perfeita e troca de olhares bastante significativos, unindo um sentido épico forte com o intimismo mais poético, como nos melhores filmes de David Lean ( “Lawrence da Arábia”, etc), “Desejo e Perigo” é uma obra essencial que levou dois anos para chegar aos circuitos brasileiros, o que é um retrato eloqüente da desorientação que norteia exibidores e distribuidoras atualmente no Brasil. 

A forma potente como entrelaça questões de ordem política (ou de poder) com psicanálise (principalmente no que diz respeito aos poderes do inconsciente que não controlamos) remete a “O Conformista” e “O Último Imperador” e num certo sentido a “O Último Tango em Paris”, obras grandiosas de Bernardo Bertolucci. Claro que remete também a “O Porteiro da Noite”(1974) de Liliana Cavani, mas confesso que em relação a este filme, estou precisando de uma revisão, pois tenho na memória um certo incômodo com a reiteração de situações, algo que deve ser dissipado ou confirmado. 

“Desejo e Perigo” é um jogo de xadrez emocional meticulosamente montado que exige paciência e atenção do espectador em sua longa duração: 157 minutos. Mas o mais fascinante é que tudo que nos é mostrado é necessário para que o filme atinja a densidade maior de suas seqüencias conclusivas inesquecíveis. 

Em “O Segredo de Brokeback Mountain” um pequeno altar montado com uma foto do local de encontro entre os amantes e uma camisa sobre uma jaqueta num cabide dá conta da saudade e tristeza da ausência de um parceiro. Em “Desejo e Perigo” é o vazio em uma cama que cumpre poeticamente esta mesma função. 

Para quem se interessa primordialmente por grandes jogos formais “Desejo e Perigo” pode não exercer maior fascínio. Mas para quem se interessa sobre os meandros mais sutis, imprevisíveis e misteriosos da alma humana, principalmente no que diz respeito às metamorfoses ambíguas que o desejo pode assumir, “Desejo e Perigo”, um dos mais belos filmes eróticos dos últimos anos, é um filme incontornável, cheio de detalhes que podem ser mais bem apreciados em revisões. Já vi duas vezes o filme e tenho vontade de visitar a obra novamente. Pelo seu ar de delicada monumentalidade é um filme que perde muito se visto em vídeo. Uma ida ao cinema para fruir este espetáculo, que está tendo sucesso no Rio de Janeiro, o que mostra o quanto era tola a idéia de não exibí-lo, é um programa imperdível. 

*Informações sobre a exibição na China obtidas através da Folha de São Paulo de 15 de maio de 2009

http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/10/20_2728-blog-lust.JPG 

http://img.blogs.abril.com.br/1/asetimaarte/imagens/desejo-e-perigo-(2007).jpg 

Nelson Rodrigues de Souza


 

 

 

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Transmitindo às Criaturas o Legado da Nossa Miséria




Vi dia 19 de maio em “Encontros- O Globo” no Arteplex –RJ em pré-estréia, “Garapa” (Brasil/2008) de José Padilha”, com a presença do diretor para debate posterior à exibição, com mediação do jornalista Mauro Ventura  e presenças de Francisco Menezes (diretor do Ibase-Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, que prestou consultoria ao filme), Consuelo Lins (documentarista e professora de Cinema) e o cineasta José Joffily que além de ficções tem também documentários no currículo como “Vocação do Poder “( junto com Eduardo Escorel) e “O Chamado de Deus”. 

Assistir ao asfixiante “Garapa” e depois ter o calor humano do clima de debate, mesmo com um astral de aturdimento na sala, é um bálsamo. Conforme aconteceu com platéias nos Festivais de Berlim e Tribeca de 2009, ao fim da sessão não houve aplausos nem vaias e sim um silêncio aterrador. 

Muito se discute hoje na imprensa o impacto das imagens de “Anticristo” de Lars Von Trier” exibido no Festival de Cannes de 2009 corrente: tem cenas de sexo fortes, mutilações de órgãos genitais com tesoura e outras fantasias de um diretor que buscou desesperadamente sair de um período de forte depressão fazendo da arte com suas fantasias que o atormentavam sua terapia. Ainda não vi “Anticristo”, o que devo certamente fazer em nome dos filmes extraordinários que Lars Von Trier já nos deu ( “Ondas do Destino”, “Dançando no Escuro”, “Dogville”, dentre outros). Mas por mais que tenhamos um jogo de ficção atroz visualmente, podemos sempre procurar fazer um exercício de que Charlotte Gainsbourg e William Dafoe estão representando, efeitos digitais podem estar sendo usados ou até mesmo que esteja havendo doublés de corpos para os atores. 

 Com “Garapa” este exercício nos é interditado. O que temos diante de nos é um quadro agudo em três famílias dos efeitos da fome de uma forma nua e crua, sem enfeites, sem música, com cortes secos, com uma fotografia granulada como nos documentários dos anos 60, um preto e branco que se por um lado suaviza o impacto por outro aumenta a nossa desolação com este mundo perdido, que poderia ser também em outro país, outra localidade do Brasil que não o Ceará ou até mesmo, como lembrou Joffily, um lugar a vinte minutos de carro do cinema em que estávamos. 

A meta de Padilha era fazer um filme com a linguagem do Cinema Direto em que houvesse um mínimo de intervenções e o máximo em observações, abordando a questão da fome sob o ponto de vista de quem a sofre. Em alguns momentos quando se discute, por exemplo, métodos de controle de natalidade ou então a ineficiência de uma aspirina dada a uma criança com dor de dente, a qual precisaria ir mesmo é a um dentista, o que é assumido no filme, ocorrem intervenções e surge a voz do cineasta. Mas são poucos estes momentos. No debate Padilha contou que levou a criança ao dentista, o que omite no filme, como também outras de suas intervenções como lavar um chão cheio de moscas. 

“Garapa” se refere ao alimento energético mais barato e fácil que se pode conseguir num estado de pobreza extrema que é uma mistura de água quente com açúcar que é servida às crianças com uma mamadeira. Um paliativo banal bastante cruel. O filme se concentra em três famílias em que a força das mulheres mães é predominante e a fraqueza dos pais é patente: Robertina,mãe de 11 filhos; Rosa de três filhos ( ambas vivendo em Choró, zona rural do Ceará); Lúcia,moradora de periferia de Fortaleza, mãe de três filhas, com o marido Flávio, alcoólatra e com problemas mentais. O filme faz um recorte de três famílias que foram escolhidas de uma forma aleatória num conjunto de 12 milhões de brasileiros vivendo em "risco alimentacional" ( eufemismo para a fome mais negra....) segundo a ONU. Padilha não queria que dissessem que ele havia escolhido famílias a dedo para provar uma tese à priori. 

Lúcia não consegue carteira de identidade (o marido assim como faz com mantimentos a vende para poder beber). Paira ainda a suspeita de que cometa incesto com uma das filhas. Uma vizinha não se controla e chega até a ofender Lúcia ao dizer que ela tolera demais as cafajestadas do marido e que teria se tornado sem-vergonha. Uma médica que a acompanha a questiona sobre o porquê dela ainda insistir em namorar Flávio. Mas algo mais forte que os prende e que para nós seria incompreensível, pois decidamente nestas três histórias que correm em paralelo, estamos mergulhados num mundo com suas próprias leis, um mundo onde não há projetos de vida e sim apenas se pensa em como será obtido o alimento para matar a fome que vai voltar logo pois mal passa. 

Algumas famílias recebem auxílio do governo (as que têm documentos), mas conforme comentam é uma quantia muito pequena. Padilha nos debates se disse inteiramente a favor do projeto Bolsa-Família do governo Lula. No estado em estas pessoas estão, ganhando um pouco apenas para remediar a pobreza extrema, não há risco de deixá-los mal acostumados e vagabundos como apregoam muitos, pois é patente a falta de perspectivas de trabalhos. 

Francisco Menezes acredita que o programa Bolsa-Família tem de ser aperfeiçoado com programas complementares e que famílias em extrema pobreza como as do filme devem ter uma atenção mais especial. Ele nos conta que na Constituição de 1988 não há nada que se refira à alimentação. Há desde 2003 um projeto parado no Congresso que instrumentaliza a alimentação como um direito do cidadão. Em suma: há que se ter políticas públicas bem definidas para esta questão candente da fome e num primeiro estágio tem de se passar pelo assistencialismo sim, pois para quem está no limite da sobrevivência não há nada mais urgente. A frase de Betinho é antológica e inescapável: “quem tem fome tem pressa”. 

À fome se soma o desemprego, a ignorância, a falta de higiene e de educação, culminando numa total falta de esperança. Chega a ser bastante incômodo no filme, dentre vários aspectos, ver crianças com os pés infestados de moscas. Padilha que trabalhou com o montador Felipe Lacerda (das obras-primas “Ônibus 174” e “Central do Brasil”) nos contou que era impressionante a quantidade de moscas que filmaram e que não saíram no filme... Não houve necessidade de ir atrás de detalhes sórdidos: eles já impregnavam a filmagem com moscas até na lente da câmera. 

“Garapa” levanta sérias questões éticas que o diretor poderia ter melhor elucidado em letreiros finais sem prejuízo da força estética despojada do filme. A renda do filme, vendido também para várias televisões, vai para as famílias retratadas.A idéia inicial era a partir de uma base longe das locações, irem todo dia cedo a elas para filmar o dia inteiro e não intervir, mas houve vários momentos em que imperativos éticos fizeram a equipe intervir. Padilha não acredita em ética do documentário. Mas isto tem de ser bem explicado. Segundo ele o que existe é a ética da pessoa que faz o filme que independe do documentário. Não se encontra um livro sequer que discuta o que é ética no documentário. Padilha e equipe partiram de suas noções pessoais de ética e intervieram quando necessário. Acredito que o filme faz bem em não mostrar isto no seu corpo narrativo (o que é mostrado apenas com relação ao remédio para dor de dente, explicitado como insuficiente), mas seria melhor se nos letreiros finais houvesse mais informações como as que nos foi passada no debate. Acredito que um tanto do silêncio da platéia ao final do filme vem do respeito e estupefação diante do que foi visto, mas também dos questionamentos éticos quando aos possíveis procedimentos nas filmagens. As regras do jogo tinham de ser mostradas com mais clareza ao final, assim como Eduardo Coutinho costuma fazer em seus trabalhos logo no início. 

Segundo dados da ONU a fome afeta mais de 920 milhões de pessoas no mundo todo. Com o dinheiro que está sendo pago para reconstrução do FMI, algo da ordem de um trilhão de dólares, com contribuição até mesmo do Brasil, que tanto foi subjugado e humilhado por este órgão (que ainda vai querer ditar políticas neoliberais, surgindo das ruínas) e com o que se gasta em armamentos na Terra, daria para se acabar com bastante folga com este estado de fome crônica no mundo, pois para isto demandaríamos de uma quantia relativamente baixa: 30 milhões de dólares ao ano, segundo a FAO ( Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Padilha diz que o debate sobre o filme tem de ser politizado sim. Não se acaba com a fome no mundo porque não se quer! Como diz Renato Russo, a humanidade é desumana- lembrou o diretor. 

Famílias em estados nutricionais deploráveis como as do filme têm em média 5 filhos, o que coloca a questão da educação em termos de controle de natalidade num patamar elevado em que não se deve de forma alguma dar ouvidos a religiosos refratários a esta política que deve ser intensiva, ostensiva e abrangente. O Brasil deveria ser laico (o que na prática não é) e os fundamentalistas religiosos, sejam católicos ou evangélicos,etc, devem ser afastados o máximo possível com energia destas questões, não lhe dando ouvidos. Um papa que é contra o uso de camisinha não pode ser levado a sério (mesmo depois de ter constatado a gravidade do estado da população pobre africana!). Segundo Padilha com as famílias que trabalhou não encontrou impedimentos de ordem moral e religiosa, mas sim muita ignorância: questionada por Padilha, Robertina despreza qualquer método de prevenção de gravidez e diz que quando se tem que engravidar não há como evitar (sic). 

Para Padilha um dos problemas da fome é o da representação. Se encontrarmos um menino de rua desconhecido passamos batido. Se for conhecido tenderemos a ajudar. A base eleitoral de Barack Obama não tem nada a ver com a fome na África: se Obama fizer muito neste sentido ( uma utopia), nem por isso tende a aumentar seu capital eleitoral. 

A arte, um filme como “Garapa” muda o mundo? Para Padilha o filme sozinho não tem este poder, mas junto com artigos sobre o filme e junto a outras obras pode-se formar um caldo cultural propício a mudanças reais e concretas. Sua visão sobre o problema da fome mudou totalmente ao fazer este filme dolorido, de uma beleza terrível, necessário. Ver “Garapa” não é uma experiência fácil. O desalento e a desesperança reinam. Até um gatinho que surge em cena está magérrimo. Mas tomar o filme com base para debates para se pensar em soluções concretas, assim como foi feito no encontro com os debatedores é um alento. Que o filme (com lançamento no Brasil no dia 29 de maio) tenha reflexos aqui e no exterior à altura da grandeza generosa de sua proposta, por mais que surjam as vozes discordantes como aconteceu com a crucificação mais do que injusta de Padilha, por certos setores, ao fazer o ótimo “Tropa de Elite”. 

A falta de ações concretas e decididas para acabar com a miséria no mundo que o filme evidencia com sua atemporalidade e maleabilidade geográfica possíveis traz água no moinho para que se tenha um título para o post como o que foi feito. Machado de Assis, tomado de forma enviesada, é mais atual do que nunca. 

Se não é difícil acabar com a fome assim, por que não surge vontade política neste sentido? Aqui vale lembrar Brecht e “Mãe Coragem e Seus Filhos”: mesmo numa situação de miséria extrema há sempre alguém que lucra com isto. 

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http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/foto/0,,20159814,00.jpg 

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Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 16 de maio de 2009

A Ideologia Dominante da Obsolescência Compulsória


Quando o quente em editor de textos era o Wordstar paguei uma fábula para que digitalizassem textos meus em grande quantidade. Mas logo surgiu o Word em suas várias versões. Entreguei meus textos em disquetes para um conhecido que era bambambam em informática e ele de forma alguma conseguiu transferir o que eu já tinha pronto para o Word. Resultado: foi com grande tristeza que perdi tudo que tinha digitalizado. Tive que novamente investir na digitalização de uma formidável quantidade de textos agora em Word. 

Tenho uma coleção fabulosa de long-plays, muitos deles ainda não lançados em CDs. Sempre adorei as bolachas e a grande arte final das capas “imensas”. Um amigo fez uma tese de doutorado sobre a força estética destas capas. Até hoje existem controvérsias. Para o músico Ed Motta que tem lançado junto com CDs, versões em vinil, este último mesmo com os famosos chiados tem qualidade sonora superior ao do CD. O mesmo pensa o irrequieto Arnaldo Antunes. Eu não tenho o mesmo apuro de ouvido, mas morro de saudades dos meus vinis. 

Nada contra a tecnologia, mas porque temos sempre que descartar as antigas tecnologias?Esta tendência na área cultural tem sido desastrosa. O que se refere à Cultura tem que ser sempre visto de forma delicada. Leis de mercado manipuláveis são autênticos venenos. E depõem contra as noções básicas de arquivologia que não devem ser deixadas apenas para as instituições. Cada cidadão como ser cultural deve ter seus meios de arquivo. Vou mais longe: até mesmo condições de ouvir seus setenta e oito rotações com jóias que não mais foram lançadas ele tem que ter disponível. Este é mais um ponto em que acredito que deva haver intervenções de ordem estatal e não deixarmos as coisas ocorrerem simplesmente ao sabor dos ventos viciados do mercado. 

Claro que avanços na Medicina são sempre muito bem vindos, como na área de anestesia que dizem é uma das que mais tem evoluído, como também em várias outras atividades humanas. Mas com Cultura temos uma natureza diferente de outras áreas e outros cuidados devem ser tomados.

No Brasil temos hoje a febre das traduções “definitivas”. Se entrarmos na pilha, todos os livros pelos quais suamos para formarmos uma biblioteca básica estão caducos, atrasados. Tenho uma coleção da editora Globo dos vários tomos de “Em Busca do Tempo Perdido” que durante muito tempo foi elogiada como uma grande tradução, com trabalhos de ninguém mais nem menos do que Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, dentre outros. Agora surgem novas traduções que vendem como se fossem as mais grandiosas e fiéis. Eu não caio neste conto de marketing. Ainda me devo a leitura atenta dos volumes de Proust e quando o fizer lerei os volumes que já tenho. O mesmo posso dizer de romances traduzidos originariamente por Herbert Caro e outros grandes tradutores. Neste caso tenho estes livros numa razoável biblioteca e não vou entrar neste jogo perverso marqueteiro de “finalmente com grandes traduções”. Há pouco li que a adorável Lígia Fagundes Telles corrige vírgulas e algumas palavras de suas obras para uma edição completa de seus trabalhos numa nova editora. Vou ignorar solemente este esforço e vou continuar lendo o que já tenho dela, mesmo que as capas não sejam de Beatriz Milhazes.... 

No Brasil está havendo alguns lançamentos em vinil. Na Inglaterra isto também tem acontecido. Mas existe um problema óbvio: onde conseguir bons toca discos e manutenção deles. No Rio de Janeiro só conheço a seção de “antiguidades” da Modern Sound da Barata Ribeiro. Lamentável constatar que os preços são extorsivos e pra mim impraticáveis. Quem conhece outro lugar com preços decentes me avise. Por que a indústria numa menor escala não continuou fabricando e dando manutenção aos toca-discos? Resposta óbvia: porque compulsoriamente queriam que aderíssemos aos CDs e passássemos a comprar no novo formato tudo o que já tínhamos antes, o que nem sempre é possível, pois certos relançamentos não são feitos, descontado aqui a questão forte da grana. Aí não há porque criticar o que já chamei antes aqui de “piratas da pós-pós-modernidade atroz” que abaixam estas relíquias. 

Tenho uma coleção fabulosa de VHSs. Só que meu aparelho de vídeo cassete quebrou, não sei aonde consertá-lo se é que existe e só encontro um novo na famigerada Modern Sound com seus preços abusivos. Assim me vi obrigado a comprar vários títulos em DVD que já tinha em VHS. Mas mesmo assim me sinto impedido de ver certos filmes que não lançam em DVD de forma alguma como os extraordinários “Inverno de Sangue em Veneza” de Nicolas Roeg e “Mulheres Apaixonadas” de Ken Russel, bem como muitos clássicos do cinema que comprei numa ótima coleção de banca de jornal, dentre outros. E é importante ainda frisar que muitos filmes relançados são de aquisição monetariamente penosa ou numa expressão mais clara: tem preços também abusivos. A livraria do Arteplex, como várias outras do Rio de Janeiro, é ótima para o passeio guloso dos olhos pelas novidades. Já para comprar é outra história... 

Mesmo com estes percalços consegui construir uma coleção fabulosa de DVDs, comprados das mais variadas formas, muitos em promoções,outros dado o grande afeto que me liga aos filmes, comprados pelos seus altos preços mesmos, como coleções de Bergman e uma caixa com todo “Berlim Alexanderplatz” de Fassbinder. 

Mas eis que agora nos chega o Blu-Ray! Socorro! Imagino que no início os aparelhos em que os novos suportes funcionam, também operem com os DVDs. Mas “Eles”, kafkianos que são, da grande indústria, podem com o tempo só fabricar aparelhos que leiam Blu-Ray, os aparelhos de DVD  passam a ser encarados como o são os vídeo-cassetes hoje  e minha coleção suada de DVDs vai para o espaço! 

Assim, não contem para ninguém não. Mas estou, num ato de legítima defesa, para me proteger “Deles”, torcendo para que os preços do Blu-Ray nunca se tornem baixos e esta nova tecnologia seja um fracasso! Desespero? É. Mas contra a força “Deles” só “minha praga” passa a ter sentido...Quem tiver soluções alternativas que me avise e me tranqüilize. 

No Blog do Zanin a propósito das edições que estão saindo agora mais completas da obra de Kubrick quando já investimos bastante nas edições comuns, um leitor lembrou-se de uma frase de senso comum lapidar que repito aqui: “Meu dinheiro não é capim!” 

Ps Quando penso em obsolescência compulsória me lembro daquele gigantesco cemitério de automóveis pelo qual Geraldine Chaplin passeia em “Nasville” de Robert Altman. Não é à toa que a indústria automobilística chegou na crise em que está. E segundo Clovis Rossi na Folha de São Paulo está havendo no Brasil emissões mortais de enxofre pelos carros, que estão sendo toleradas em nome da crise e do lucro. A vida humana que se dane.

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Nelson Rodrigues de Souza

 

 

Com o Diabo na Língua- Um conto sobre "ratos" de Cultura


Com o Diabo na Língua

Ao Luiz

"Mas por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços"

Riobaldo em "Grande Sertão: Veredas"- Guimarães Rosa


(1988)

Trabalhando os dois no centro nervoso do Rio de Janeiro, Bolívar e Péricles já há mais de quatro anos encontram-se todos os dias, dito útil, no horário de almoço de seus respectivos trabalhos para após a refeição entabular uma desvairada conversa pelas ruas com este intervalo concedido sorvido como uma insólita sobremesa. Geralmente o tom da conversa é bastante crítico, sagaz, mas o alvo das elaboradas pilhérias tem sido “o inferno”, ou seja, “os outros”.

Naquela sexta-feira, entretanto, impressionados por um espetáculo que assistiram na véspera os diálogos adquiriram um tom cinzento inusitado para o caráter terapêutico que as caminhadas tinham normalmente. A emoção com que costumavam comentar os discos que ouviram, os filmes e peças que assistiram, os livros que leram, comumente é mais contida, filtrada, deixando as idéias fluírem de forma mais intelectualizada, menos passional. Naquela tarde, entretanto, perderam a mão. Sempre comentavam que o que impelia os colegas de trabalho (com os quais mantinham sempre relações distanciadas, reservadas e calculadamente enigmáticas) a procurarem apenas as diversões leves e descompromissadas era o fato de “A Grande Arte” tender a na maioria dos casos a “falar de corda em casa de enforcado”. O medo dessas pessoas sempre foi motivo de ironia. Agora estavam em uma situação em que a força interior (em contraponto à força bruta dominante) que supunham que tinham numa dose mais generosa era colocada em xeque. O espetáculo que viram tocou-lhes numa corda sensível que julgavam estar afinada, distendida a contento de tal forma que a música sairia dela conforme desejassem. O som ecoado, entretanto, desafinado, surpreendeu-os.

“O Homem no Parapeito da Ponte”, esse espetáculo teatral impressionou-os bastante independentemente de ser ou não o melhor que tivessem visto/lido “nos últimos tempos”, pela brutal identificação com inquietações existenciais e trabalhistas que viviam naquele momento crucial que não era só deles, mas de todo um povo. Eis o enredo perturbador: um suicida prepara-se para se jogar de uma ponte e tem seu gesto interrompido por um fotógrafo que quer fazer daquele ato um espetáculo para agradar o chefe e os leitores ávidos de sensacionalismo. No embate verbal (e corporal) que se estabelece entre os dois, percebe-se que o desespero os aproxima ainda que as soluções encontradas para enfrentar um cotidiano estupidamente adverso divirjam. Bolívar e Péricles têm temperamentos bem distintos: o primeiro mais agitado, impulsivo, nervoso, apressado, gesticula infalivelmente com as mãos; o segundo mais comedido nos gestos, fala mais mansa, tem reações mais reflexivas. Diferentes entre si, distintos dos dois personagens. Entretanto, o período de crise pessoal e da sociedade, por que passavam, aproximou os quatro mais do que poderia se supor.

Como de hábito os dois vociferavam contra os críticos. Foi só se encontrarem e Péricles mostrou a crítica do espetáculo visto ao companheiro, salientando o seguinte trecho: “Não há dúvida de que Foissy conhece a literatura e as teorias filosóficas sobre o tema, e que também não tem o jornalismo em muito boa conta. O texto, no entanto, se desequilibra entre essa necessidade de reflexão sobre a morte escolhida e a raiva por uma atividade profissional. Por outro lado, os contrapontos são por demais explícitos, sem matizes. O fotógrafo faz de tudo uma tabula rasa de sobrevivência: o suicida projeta no plano das idéias uma atitude que assume caráter de elegia.” Péricles mostrou-se irado: “Dizer que a peça de alguma forma poetiza o suicídio e que não tem o jornalismo em muito boa conta é uma bobagem! Isto é burrice ou má fé. Veja só: os críticos podem viver de criticar os outros, mas quando os criticam eles ficam umas feras!” Bolívar complementou: “Ele criticou a peça desse jeito porque no fundo ela questiona o jornalismo vampiresco que tem por aí. O poder deles não pode ser questionado. Você se lembra que aquele jornalista que não consigo mais nem citar o nome teve a coragem de vir a público negar o óbvio, o que estava na cara, ou seja, que o jornal dele apoiou descaradamente o governador que foi eleito! Escreveu aquele “Assim é se lhe parece”. Não! Assim foi porque lhes convieram! Se ele, tão prestigiado, vem a público defender os interesses dos patrões, imagine o que não fazem outros! Péricles acrescentou: “Está tão claro que na peça o que está em questão é a perversão, o mau uso do jornalismo. Daí a dizer que a peça despreza o jornalismo...”. O parceiro completou a sinfonia de queixas: “Lembra-se da carta sincera (mas realmente um tanto ingênua) de Cássia Kiss que eles massacraram? A motivação da carta foi das mais íntegras: indignou-se contra um espetáculo absurdamente descartado. Eles atacaram pelo lado mais frágil e fugiram da questão. A posição do Rubens Correia na ISTO É dizendo que nunca aprendeu nada com os críticos, que a crítica incentiva o cinismo dos artistas (quando eles falam bem, fica-se contente; quando falam mal, finge-se que não se leu), esta não foi contestada! A isto não houve resposta, mas àquela cartinha singela...” Bolívar ainda ponderou: “O Rubens no “Artaud!” outro dia depois de fazer o Artaud incorporar o Van Gogh bateu a cabeça num canto do porão do Teatro Ipanema fortemente e até sangrou (uma senhora chegou a passar-lhe um lenço) e nem por isso ele perdeu a concentração. Terminou direitinho o espetáculo. Se os críticos tivessem um centésimo desse amor e dessa dedicação ao Teatro que ele tem...”

Os dois alucinados críticos improvisados ainda se permitiram algumas queixas a mais. Bolívar tomou o jornal, leu-o pacientemente e se indignou: “O que ele escreveu sobre a interpretação do Vereza não acrescenta nada ao espetáculo visto. É um comentário que cabe a interpretações anteriores do Vereza (“ Memórias do Cárcere”, “No Brilho da Gota de Sangue”). Não precisava ter visto o espetáculo para ter escrito aquilo”. Péricles sentindo já certo peso no ar, instintivamente tentou uma observação mais bem humorada: “Ele diz que o autor conhece a Literatura e as teorias filosóficas sobre o tema. Ora para afirmar isso, ele, o crítico, também deve conhecer o tema assim. É por isso que tem medo deste e nega a peça (diz injustamente que Guy Foissy certa ode ao suicídio quando o que ocorre é uma discussão sobre as razões de um suicida). Duvido que até o próprio autor conheça profundamente o tema. Esse é um problema complexo demais. Afirmar categoricamente que o autor o conhece assim é absurdo... Vai ver que o crítico não tem tempo de se preparar para a sua atividade, fica lendo toda a Literatura sobre o suicídio....” O parceiro, sisudo até então, riu aos borbotões e logo voltou à carga: “Você viu o espaço que eles dão para o Hollywood Rock e a irrisória matéria com o Vereza, a minguada crítica... Porque não fazem uma primeira crítica na estréia e outra um mês depois quando o espetáculo já está realmente afinado, amadurecido? Eles se comprazem em serem patrulheiros-econômicos da burguesia, classe-média. Não servem ao Teatro. Se fizessem essa segunda crítica teriam muitas vezes de reconhecer que erraram, que foram arrogantes, maledicentes, precipitados...” Péricles trouxe mais à tona suas fantasias de crítico: “Ele poderia ter feito algum paralelo com a peça da Marsha Norman,“Boa Noite Mãe”, que aquele maldoso de São Paulo descartou simplesmente dizendo que eram “emoções para antes da pizza” Ou então com “O Suicídio” que o Teatro dos Quatro montou, onde na Rússia pós-Revolução um suicida era manipulado de acordo com interesses políticos”.

Cansados de defender o texto passaram então a tecer paralelos com suas situações de trabalho. Ambos eram funcionários de administração só que em empresas de compassos tendendo à oposição: enquanto Bolívar usualmente reclamava do ritmo frenético, neurotizante, Péricles queixava-se do marasmo do ambiente de trabalho, da mesmice cotidiana. Julgavam-se vítimas do conflito da iniciativa privada ávida de lucros (a qualquer custo) versus iniciativa pública ávida de verbas e poderes. Nessa briga interminável não havia lugar para espíritos sonhadores como o deles. Por excesso ou por falta de trabalho, num ritmo que podia ser compulsivo ou brando, o sofrimento era muitas vezes incontrolável. “Sabe que eu me sinto o próprio fotógrafo tendo de trabalhar com aquela gente, com aquele chefe! O que a gente tem de suportar para ganhar um dinheirinho safado!” – queixa-se Péricles. Bolívar foi mais atroz: “Nós precisamos aprender a ser medíocres, a nos conformarmos! O segredo da sobrevivência está em compactuar com a mediocridade!” Péricles aumentou as contas do rosário: “Nós havíamos combinado que não comentaríamos mais nossa situação de trabalho, mas eu não agüento! Já fui a visado para não confiar em ninguém lá, calar a minha boca, mas de vez em quando eu quebro a promessa que me fiz. Não é que queriam que eu colocasse um valor pro forma de contribuição numa listinha de casamento (2.500 cruzados quando na verdade nós da sala só contribuímos com 500 no máximo)? Queriam que eu assinasse uma coisa falsa só para impressionar o resto do pessoal e atrair polpudas contribuições. Fiz o maior escândalo! Ficaram uma arara comigo. E olha que isto é o de menos lá”. Bolívar completou: “Que Mário de Andrade me perdoe pela banalização, mas eu também não agüento mais os Macunaímas que andam por aí. No Cinema, no Teatro, na Literatura é muito poético, mas conviver com eles no dia a dia é mortal!”

Péricles contou que um amigo que trabalha num órgão cultural ficou de lhe mostrar uma lista com os nomes de várias grandes figuras da cultura brasileira que receberam verbas públicas consideráveis e não cumpriram o trabalho prometido que era uma obrigação. Um silêncio pesado instalou-se e os dois que caminhavam pelas calçadas, galerias e raramente paravam, desta vez se deixaram sentar no banco mais próximo. Estavam cansados de desfiar perplexidades numa hora que deveria ser de relaxamento. Bolívar de início, tentando mostrar-se calmo, questionou se os dois não estariam querendo trazer as “grandes figuras” até o universo medíocre deles para se conformarem. O companheiro, colhido de surpresa, mostrou-se indignado, não entendeu porque o amigo mostrava-se ferino. Era norma criticarem os outros e a si reservavam algumas leves ironias e autocomplacências. “Simplificando Mário de Andrade: o espírito de Macunaíma nunca lhe perseguiu?” – insistiu Bolívar. “Minha vida tem sido murrinha, mas decente” – respondeu nervosamente o outro. Bolívar instigava o amigo porque estava à procura de cumplicidade. O coração apertado desejava ouvir da parte do parceiro uma confissão que o aliviasse. Com uma mescla de raiva e vergonha contou agora um enredo em que ele era o protagonista, confundindo palavras tensas, carregadas e um tanto de lágrimas: “Sabe aqueles dois malditos que fizeram uma mafiazinha particular e acirraram ainda mais a concorrência reinante? Pois bem, eu não agüentei mais a safadeza e dei um jeito sutil de me livrar deles! Alguns arquivos e programas que me deram o maior trabalho foram alterados, saiu tudo errado e eu tenho certeza que foram os sacanas! Eu não podia suportar mais os risinhos cúmplices que trocavam. Eu fui idiota de entre tantos programas e arquivos colocar os meus com meu nome em vez de uma senha esdrúxula, alfanumérica! Mas me vinguei! Sorrateiramente, na quarta-feira em que não vim passear com você, enquanto almoçavam, tirei a chave da mesa de um deles, fiz uma cópia rápida na esquina e como fiz serão naquele dia pude vasculhar bem a gaveta dele, com cuidado, até que descobri uma folha com os códigos todos (em uma conversa que ouvi de rabeira soube de sua existência ).Eu alterei programas e arquivos do Cirilo e o Carlos foi , como eu esperava, o principal suspeito, pois só ele conhecia essas particularidades do cúmplice. Os dois discutiram feio e alto e foram transferidos!” Ao mesmo tempo em que mostrava um certo regozijo ao contar a trama, Bolívar não deixava de eivar a narração com uma contagiosa amargura. Péricles recebeu o impacto dessa duplicidade e se viu com a necessidade de apaziguar o espírito do amigo. Para tal trouxe à baila uma pequena história que por várias vezes esteve para escapulir, mas a vergonha em cumplicidade com a vaidade a reprimia: “Havia processos no meu trabalho que conseguiram bater recordes de tempo como inconclusos. Os chefes e os funcionários se restringiram a passar um para o outro os papéis sem concluí-los. Como eu acabo logo o que tenho para fazer você já sabe para quem caia o trabalho. Isto eu já havia comentado com você. Só que são processos cabeludos que os chefes é que tem obrigação de destrinchá-los em última instância e dar um ponto final. Foi por culpa deles que eles se tornaram cada vez mais emaranhados! Eu os devolvia, eles pipocavam por sucessivas mesas e como um bumerangue voltavam para a minha. Outro dia desses não pude controlar o aborrecimento e simplesmente rasguei-os, sorrateiramente, depois do fim do expediente! Os interessados que dêem início a novos processos! Os processos tinham dez meses. Faz um mês que eu os pulverizei. Ninguém reclamou até agora!”

Um silêncio ainda mais perturbador instalou-se. Cada um intuía como por dentro do outro, o barulho era infernal. Era melhor que o mundo exterior desse mais uma vez sinal de vitalidade para sacudir-lhes o torpor. Péricles, como de hábito, era quem primeiro procurava farejar um possível alento que lhes permitisse dar a volta por cima no baixo astral instalado. Sentiu vontade de puxar pelos espetáculos por estrear, pelos livros por ler, pelos filmes em breve, pelos shows, mas um inesperado sentimento de leviandade o conteve. Precisava quebrar de alguma maneira o ciclo vicioso de sofisticada, elegante roda-viva do consumo cultural passivo e perguntar ao amigo por que ele não voltava a elaborar os seus poemas. Bolívar riu de forma estrepitosa: “Como aquele personagem da peça “Caixas de Sombras” a maior contribuição que eu dei ao mundo literário foi ter saído dele” Péricles riu também: “Pois eu não! Um dia desses eu paro com as minhas esporádicas cartas aos jornais e elaboro o meu romance! Há algum tempo que eu o rumino. Um dia desses ele “virá de um jorro só” (não é o que dizem?)”. Bolívar voltou ao ar sisudo: “Às vezes tenho vontade de esquecer meus restritivos trinta e oito anos e sair por aí procurando outro trabalho, batendo de porta em porta. Aí me vem o Kafka: “E o pássaro viu-se livre para ir em busca de uma nova gaiola”... Eu caio então no real.” Péricles teve o impulso de perguntar se não valia mesmo a pena procurar, procurar, mas lembrou-se que a pergunta poderia lhe ser devolvida e ele já tinha um desanimador quadro de insucessos quando se submeteu a uma via-crúcis à procura de um novo emprego. As famílias oficiais já eram agrupamentos distantes, acomodados à vida bem menos agitada e sem sal do interior. A família de amigos era pródiga em conversas e trocas de afetos. Mas cada um se “virava” como podia e a troca de favores profissionais, usuais na sociedade, não lhes era possível, acessível. Dois homossexuais tendo como padrinhos Joseph Conrad e Dostoievski, sentindo os trinta anos se distanciarem, poderiam renovar as conversas e os afetos infinitamente, mas os empregos dificilmente. Tinham, infelizmente, de soltar rojão pelos trabalhos que conseguiram e mantinham. Era a situação à qual se conformavam. Para eles o trabalho era uma loucura! Mas largá-lo era uma loucura maior ainda! Era o que sentiam. Mas cotidianamente sentiam-se à beira de um surto. Lembravam-se muito dos versos cantados por Bethânia: “É lucidez, desatino, de ler o próprio destino, sem puder mudar-lhe a sorte.”

No afã de mudar de assunto (mas na realidade contemplando-o) Péricles lembrou ao amigo que hoje ele deveria estar um pouco atordoado, pois não se deu conta de uma frase lançada há pouco: “já me avisaram para ficar quieto”. Em outra ocasião Bolívar o teria inquirido imediatamente a respeito: “Quem avisou?”. Tão logo Péricles contou que esteve num terreiro e uma entidade alertou-o que se continuasse com a língua solta no emprego público que tem, seria perigoso, Bolívar não resistiu a um riso tímido, mas inequívoco. Para quebrar nascente ironia Péricles cuidou de expor as suas convicções: “Não tenho mais dúvida a respeito da idéia de Deus e do conceito espiritual das reencarnações neste ou em outros mundos. Não me olhe como se eu fosse um fanático! Não tem nada a ver com esses credos oficiais”. Bolívar lamentou que o amigo voltasse a esse tema. Era uma discussão que nas vezes anteriores em que foi suscitada mais o angustiou do que o esclareceu. O que o surpreendia agora era que o amigo não se limitara às leituras. Fora a uma “pesquisa de campo” e isto o assustou. Péricles estava eufórico: “Sem me conhecer a entidade incorporada na médium fez uma biografia sucinta da minha vida e uma radiografia perfeita de meus problemas! E olha que tem pontos nada rotineiros!” Bolívar foi então incisivo: “Cuidado com esses exibicionismos. Há muitos charlatões por aí!” “Charlatões há em todas as áreas, estamos já carecas de ter notícia disso! Não é exclusividade apenas do ocultismo. Não é porque existem péssimos médicos que vamos concluir que a medicina não existe...”- replicou Péricles. O parceiro exaltou-se: “As pessoas que correm atrás dessas doutrinas de reencarnação são aquelas que têm um medo terrível da morte! Não podem conceber a déia de que morrerão. Pronto. Não sobrará mais nada! Eu dado que bergmanianamente “vivo embaixo de um céu escuro e cruel tendo a morte como única certeza” não tenho medo dela! Do sofrimento tenho medo, dela não!” Péricles como que à espera desse comentário contrapôs uma defesa análoga: “As pessoas que fogem do entendimento das doutrinas de reencarnação são aquelas que tem um medo terrível da vida. Não podem conceber a idéia de que voltarão e podem sofrer tudo de novo. Tudo recomeçará!” “Quer dizer então que quem nasce numa favela está é depurando o seu espírito? Tem que sofrer mesmo, não é? É carma que se chama isso, não é? Ser homossexual é um carma, não é?” – disparou o incrédulo parceiro. Enquanto Péricles procurava a melhor forma de responder, o amigo saboreava no silêncio uma vitória, um sentimento que o incomodava dado o afeto que o ligava ao amigo. “Sim e não meu caro. É um carma sim, mas quem somos nós para tomarmos o papel de Deus e imputarmos dívidas espirituais aos outros? Os favelados têm o livre arbítrio para lutarem contra sua condição. Nós temos o dever de lutar por uma sociedade mais justa, com suas riquezas bem distribuídas. Não é porque um conceito é manipulado pelas classes dominantes que ele deixa de ser verdadeiro em sua essência. Não há nenhum sentimento nobre que não possa ser manipulado pelos poderosos. Nem por isso esses sentimentos deixam de serem nobres e verdadeiros. De tudo, de acordo com sórdidos interesses pode ser feita uma faca-de-dois-gumes.”

Na cabeça de Bolívar passaram a dançar um carrossel de questões que lançou ao amigo: “Que livre-arbítrio que eu tenho se Deus já sabe tudo que farei, pois tudo pode? Deus faz da vida da gente um jogo de marionetes? Se o criador é perfeito por que deixou este mundo chegar a esse ponto de discórdia, à beira de guerras nucleares e grandes catástrofes ecológicas, com essa miséria toda, essa Babel azucrinante? Que perfeição é essa?” Expostas as perguntas, à primeira Péricles simplesmente respondeu que o fato de Deus saber/prever (se o quiser) tudo que ele fará não lhe tira o livre-arbítrio, à segunda atribuiu uma impertinência que não merecia resposta pois a julgava uma versão debochada da primeira. A terceira respondeu com outra pergunta: “Se você fosse milionário e sobrecarregasse precocemente seu filho com bens materiais sem restrições, ele daria valor ao que tem, estaria preparado para a vida, ele seria feliz?”

Bolívar alegou que essas respostas eram simplistas. O improvisado pregador fez questão de explicar que não acredita em dogmas, mas no mundo espiritual há questões que são comparáveis ao problema da tradução na Literatura: “há conceitos, idéias que são intraduzíveis para a nossa dimensão”. Bolívar falou com uma expressão um tanto cínica de que essa era uma boa observação, no sentido de que funcionava como boa desculpa. Péricles pressentiu pelo ar maroto, que estavam prestes a discutir deselegantemente e que deveria mudar de assunto.

Ao perguntar ao colega se ele leria novamente “Os Irmãos Karamazov”, Péricles sentiu que de fato não mudou de assunto como pretendia e que de outra forma ainda fustigava o ceticismo dele: “Você leu a obra quando era muito jovem, muitas filigranas devem ter lhe escapado. Deixa “o horror, o horror” do “O Coração das Trevas” um pouco e vem “alimentar-se diretamente da placenta” conforme a Clarice. É impressionante a paciência e a generosidade que Dostoievski tem com os seus personagens. Ele conhece cada dobra da alma de suas crias. Ele é o autor mas também dá livre-arbítrio aos personagens. Estes fazem o que tem vontade, muitas vezes contra a própria razão. “Razão – esse anão que mora nos ombros de um gigante chamado vontade...”Tenho desejo de sair por aí distribuindo o capítulo do “O Grande Inquisidor” como esses beatos distribuem esses papeizinhos e suas falas apocalípticas... “ (“Gente, eu sei que vocês não tem paciência de lerem um calhamaço de 500 páginas mas leiam pelo menos esse capítulo aqui”). Está tão claro e contundente como questões vitais como a religiosidade, as idéias de Cristo, foram manipuladas pelos poderosos eclesiastas no interesse de suas garras de poder e riquezas materiais. O apelo à verdadeira espiritualidade em Dostoievski é forte demais. Ele comunga com todas as nossas descrenças diante das manipulações, não deixa pedra sobre pedra ao mostrar a prostituição das relações sociais, descreve uma sociedade caindo de podre como a nossa, com a dos personagens “do parapeito” e, no entanto, ele não nos conduz ao ceticismo. Muito pelo contrário!”Bolívar assistia o manifesto do amigo, tinha vontade de intervir, mas estava tomado, queria ouvir mais. “Você já leu algum tempo atrás, mas você deve ter simplesmente aprendido um pouco mais desde então sobre Psicologia, Psicanálise, História, Direito, etc, mas a obra transcende tudo isso!” ”Dostoievski é como um Deus?” – arriscou Bolívar. “Assim é demais” – arriscou Péricles, acrescentando: “Mas é como Cristo, isto sim, ou melhor “cristão torturado”! Depois de tantas manipulações me dá certa paranóia de ler a Bíblia. Dostoievski supre essa carência!”. Meio sem jeito Bolívar lembrou que Milan Kundera, Gabriel Cabrera Infante sentem repulsa diante da obra de Dostoievski, que Otto Maria Carpeaux escreveu que o elogiado capítulo era fruto de um desconhecimento da História da Igreja Romana. O outro foi implacável : “Milan é um gato escaldado pela brutalidade dos milicos russos que fizeram de Praga uma praga. E ele generalizou o seu horror chegando, injustamente, até Dostoievski.Logo um autor que profeticamente já previa que uma revolução com gente com aquela mentalidade como os Ivans Karamazovs da vida, redundaria num genocídio, no stalinismo. Já a má vontade do Gabriel é “fricote de bicha fina”! Nós conhecemos bem isso, não conhecemos?...Por outro lado a critica de Carpeaux é apenas uma amostra da força da Igreja Tradicional, dos tentáculos que ela lança mesmo para as mentes que se acreditam mais abertas.”

Uma pausa para tomada de fôlego impôs-se. Após algumas reflexões Bolívar prometeu reler a obra indicada, mas só depois que terminasse o mapeamento de Joseph Conrad. Sentiu vontade de fazer mais uma provocação: “Mas se existem outras vidas, quando a nossa aqui não dá certo, o suicídio é uma boa saída não é:” Péricles captou o tom mais de pilhéria do que de dúvida real, mas mesmo assim foi incisivo: “É a pior saída! O pior crime! É uma atitude de quem passou por aqui, mas não entendeu nada! Estará assumindo dívidas pesadas!” O outro sentiu um arrepio e lembrou que a hora de almoço já tinha sido mais do que extrapolada.

Uma sinfonia/cacofonia de sofisticado consumismo ecoou até o momento que se separaram: “Estou curioso para ver o Abujamra no “O Contrabaixo”, “Acho que o filme do Kubrick (“Full Metal Jacket/Nascido para Matar) vai nos tirar dessa dieta cinematográfica de janeiro”, “Quero ver “O Balcão” com um grupo de Recife”, “Quero rever “Meu Tio, o Yaurutê” com o extraordinário trabalho do Cacá Carvalho”, “Estou com uma boa intuição para “Rua Casas Negras”, “Estou doido para assistir ao show da Leny Andrade na sala Funarte”, etc. Após se despedirem, Bolívar já um pouco distante gritou: “E vamos rever qualquer dia desses o “O Homem no Parapeito da Ponte”. Os atores já devem estar no ponto!”

Como todos os dias chamados úteis chega uma hora em que acaba o período de liberdade condicional e os “presos” que tomavam sol têm de voltar para atrás de suas grades pós-modernas. Nesta hora lembram-se de Kafka. Uma melancolia os invade e depois de certos espasmos de sofrimento, se recuperam... Pensam nos próximos filmes, peças, livros, shows e devaneios. Afinal esses encontros na rua ou com a arte em suas diferentes formas, por enquanto, ainda são possíveis e permitidos. O poder de sublimação de angústias existenciais através de todos estes recursos teria uma sobrevida imprevisível. Para toda vida seria impraticável.

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Nelson Rodrigues de Souza

Autor em Teia de Preconceitos Arraigados



Tennessee Williams detestava a versão cinematográfica de sua peça “Gata em Teto de Zinco Quente (EUA/1958) por Richard Brooks. Também não gostava da versão teatral feita por Elia Kazan. Este teria pedido modificações com as quais o autor concordou e se arrependeria mais tarde. Assim de sua obra toda, o texto de que mais gostava é a sua versão pessoal publicada em livro desta peça. Já está mais do que na hora de termos para o Cinema uma versão que obedeça fielmente os desejos do autor bem como mais montagens que a estes se prendam. 

Mas o texto de “Gata em Teto de Zinco Quente” é tão extraordinário que Richard Brooks contando com um elenco formidável ( principalmente o casal  Brick( Paul Newman) e Maggie (Elizabeth Taylor) e “O Velho”(Burl Evans), pai de Brick,  secundado por ótimos coadjuvantes como o irmão primogênito Gooper (Jack Carlson), a mulher dele Mae (Madeleine Sherwood), seus cinco filhos ( os “monstros sem-pescoço”), contando ainda com a Mama, mulher do “Velho” ( Judith Anderson)), não deixou de nos legar um clássico mesmo que em alguns tópicos essenciais não tenha ido ao seu cerne.

A família se reúne para o 65º aniversário do “Velho”. Este está com um câncer terminal no intestino a princípio escondido pelo médico, o que aos poucos vai sendo revelado a todos. Brick não consumou seu casamento com Maggie, desprezando-a, preso que está a recordações traumáticas com um ex-amigo que morreu tragicamente. Numa tentativa vã de recuperar a virilidade perdida e seus tempos como atleta, bêbado, pela madrugada, tenta pular obstáculos, se fere e passa a utilizar uma muleta. Maggie pede que ele dê atenção ao pai pelo qual não tem apreço, pois com a doença do “Velho”, está em jogo quem irá administrar os grandes negócios da família e o herdeiro mais sensato e natural deve ser Gooper, num lobby ostensivo de sua mulher Mae que procura lembrar a todos que deu herdeiros para a família ao contrário do casal impotente Brick/Maggie cujos movimentos íntimos de súplicas e rejeições são vigiados através das paredes finas que separam os quartos. 

“O Velho” não tem pudores em dizer em alto e bom som que seu casamento foi um fracasso e que ainda está em busca de outras mulheres olhando inclusive para a nora Maggie com bastante lascívia. Assim o fracasso desta família no que diz respeito à fraqueza dos afetos e desvios materialistas nos é desnudado impiedosamente. Quando “O Velho” ciente de sua morte próxima, se esconde num porão entulhado com o que comprou em protocolares viagens que fez com a mulher à Europa, vai ter um jogo de verdades com o filho alcoólatra Brick que é o mais belo momento do filme. Mas neste jogo Brick não se sente confortável para contar os reais sentimentos que tinha pelo amigo morto, para o qual desligou o telefone num momento de grave crise, contribuindo para o seu suicídio. 

“Gata em Teto de Zinco Quente” corrói diversos automatismos do que seria a família americana prototípica feliz em suas várias camadas de desacertos, mesquinharias, desamores, rancores e infelicidades escamoteadas. Isto não impede que Mae, tão desprestigiada pelo marido tenha um momento de grande dignidade. 

Mas não deixa de ser sintomático que um filme corajoso como este ao expor tantas mazelas familiares, tantos desafetos, amarguras e arrivismos ostensivos alheios à dor do “Velho”( com a espada de Dâmocles da morte apontada para ele e que se recusa a tomar morfina para continuar lúcido em relação aos fatos que vai tomando ciência), trate a homossexualidade de Brick com tanta timidez. No ajuste de contas com o pai ele é incapaz de abordar este fato com coragem. O filme sugere também uma impotência do personagem, fruto do trauma vivenciado com a perda do amigo e por uma suposta traição de Maggie com este último e ao final do filme temos uma seqüência de alta voltagem erótica em que Brick no quarto faz aquilo que havia nos sido negando durante todo o filme: ele para surpresa de Maggie, a abraça com ardor e joga um travesseiro na cama, sugerindo que vai “cumprir seu papel de marido”, que vai trabalhar bem os calores ostensivos desta gata que até então viveu desesperada com seus hormônios em ebulição “num teto de zinco quente”. 

O desfecho do filme não deixa de ser belo e ao seu modo limitado, ter o seu sentido, se pensarmos mais na impotência que acometeu o personagem e que agora com os ajustes de contas está mais aliviado. O filme descontado estes momentos de pudor tem embates antológicos. A química entre ao atores é perfeita. Talvez se esteja exigindo demais de um filme do final dos anos cinqüenta. Mas não faltam hoje grandes atores que possam também adquirir uma grande química. Assim o Cinema pode redimir as vontades de um dos maiores dramaturgos americanos ( e do mundo) do século XX com uma versão  mais explosiva e fiel ao texto definitivo do autor. Fica aqui a idéia lançada. É  certo que um casal como Paul e Elizabeth é algo histórico e de difícil retorno. Mas não custa nada tentar. O grande Cinema e o grande Teatro agradecem. Os amantes do desmonte de hipocrisias também. 

PS O filme em questão encontra-se nas principais bancas de jornais numa alentada coleção de clássicos da Folha de São Paulo, com belos textos e fotos, a um preço bem camarada. Imperdível.

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Nelson Rodrigues de Souza