sábado, 16 de maio de 2009

Com o Diabo na Língua- Um conto sobre "ratos" de Cultura


Com o Diabo na Língua

Ao Luiz

"Mas por cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços"

Riobaldo em "Grande Sertão: Veredas"- Guimarães Rosa


(1988)

Trabalhando os dois no centro nervoso do Rio de Janeiro, Bolívar e Péricles já há mais de quatro anos encontram-se todos os dias, dito útil, no horário de almoço de seus respectivos trabalhos para após a refeição entabular uma desvairada conversa pelas ruas com este intervalo concedido sorvido como uma insólita sobremesa. Geralmente o tom da conversa é bastante crítico, sagaz, mas o alvo das elaboradas pilhérias tem sido “o inferno”, ou seja, “os outros”.

Naquela sexta-feira, entretanto, impressionados por um espetáculo que assistiram na véspera os diálogos adquiriram um tom cinzento inusitado para o caráter terapêutico que as caminhadas tinham normalmente. A emoção com que costumavam comentar os discos que ouviram, os filmes e peças que assistiram, os livros que leram, comumente é mais contida, filtrada, deixando as idéias fluírem de forma mais intelectualizada, menos passional. Naquela tarde, entretanto, perderam a mão. Sempre comentavam que o que impelia os colegas de trabalho (com os quais mantinham sempre relações distanciadas, reservadas e calculadamente enigmáticas) a procurarem apenas as diversões leves e descompromissadas era o fato de “A Grande Arte” tender a na maioria dos casos a “falar de corda em casa de enforcado”. O medo dessas pessoas sempre foi motivo de ironia. Agora estavam em uma situação em que a força interior (em contraponto à força bruta dominante) que supunham que tinham numa dose mais generosa era colocada em xeque. O espetáculo que viram tocou-lhes numa corda sensível que julgavam estar afinada, distendida a contento de tal forma que a música sairia dela conforme desejassem. O som ecoado, entretanto, desafinado, surpreendeu-os.

“O Homem no Parapeito da Ponte”, esse espetáculo teatral impressionou-os bastante independentemente de ser ou não o melhor que tivessem visto/lido “nos últimos tempos”, pela brutal identificação com inquietações existenciais e trabalhistas que viviam naquele momento crucial que não era só deles, mas de todo um povo. Eis o enredo perturbador: um suicida prepara-se para se jogar de uma ponte e tem seu gesto interrompido por um fotógrafo que quer fazer daquele ato um espetáculo para agradar o chefe e os leitores ávidos de sensacionalismo. No embate verbal (e corporal) que se estabelece entre os dois, percebe-se que o desespero os aproxima ainda que as soluções encontradas para enfrentar um cotidiano estupidamente adverso divirjam. Bolívar e Péricles têm temperamentos bem distintos: o primeiro mais agitado, impulsivo, nervoso, apressado, gesticula infalivelmente com as mãos; o segundo mais comedido nos gestos, fala mais mansa, tem reações mais reflexivas. Diferentes entre si, distintos dos dois personagens. Entretanto, o período de crise pessoal e da sociedade, por que passavam, aproximou os quatro mais do que poderia se supor.

Como de hábito os dois vociferavam contra os críticos. Foi só se encontrarem e Péricles mostrou a crítica do espetáculo visto ao companheiro, salientando o seguinte trecho: “Não há dúvida de que Foissy conhece a literatura e as teorias filosóficas sobre o tema, e que também não tem o jornalismo em muito boa conta. O texto, no entanto, se desequilibra entre essa necessidade de reflexão sobre a morte escolhida e a raiva por uma atividade profissional. Por outro lado, os contrapontos são por demais explícitos, sem matizes. O fotógrafo faz de tudo uma tabula rasa de sobrevivência: o suicida projeta no plano das idéias uma atitude que assume caráter de elegia.” Péricles mostrou-se irado: “Dizer que a peça de alguma forma poetiza o suicídio e que não tem o jornalismo em muito boa conta é uma bobagem! Isto é burrice ou má fé. Veja só: os críticos podem viver de criticar os outros, mas quando os criticam eles ficam umas feras!” Bolívar complementou: “Ele criticou a peça desse jeito porque no fundo ela questiona o jornalismo vampiresco que tem por aí. O poder deles não pode ser questionado. Você se lembra que aquele jornalista que não consigo mais nem citar o nome teve a coragem de vir a público negar o óbvio, o que estava na cara, ou seja, que o jornal dele apoiou descaradamente o governador que foi eleito! Escreveu aquele “Assim é se lhe parece”. Não! Assim foi porque lhes convieram! Se ele, tão prestigiado, vem a público defender os interesses dos patrões, imagine o que não fazem outros! Péricles acrescentou: “Está tão claro que na peça o que está em questão é a perversão, o mau uso do jornalismo. Daí a dizer que a peça despreza o jornalismo...”. O parceiro completou a sinfonia de queixas: “Lembra-se da carta sincera (mas realmente um tanto ingênua) de Cássia Kiss que eles massacraram? A motivação da carta foi das mais íntegras: indignou-se contra um espetáculo absurdamente descartado. Eles atacaram pelo lado mais frágil e fugiram da questão. A posição do Rubens Correia na ISTO É dizendo que nunca aprendeu nada com os críticos, que a crítica incentiva o cinismo dos artistas (quando eles falam bem, fica-se contente; quando falam mal, finge-se que não se leu), esta não foi contestada! A isto não houve resposta, mas àquela cartinha singela...” Bolívar ainda ponderou: “O Rubens no “Artaud!” outro dia depois de fazer o Artaud incorporar o Van Gogh bateu a cabeça num canto do porão do Teatro Ipanema fortemente e até sangrou (uma senhora chegou a passar-lhe um lenço) e nem por isso ele perdeu a concentração. Terminou direitinho o espetáculo. Se os críticos tivessem um centésimo desse amor e dessa dedicação ao Teatro que ele tem...”

Os dois alucinados críticos improvisados ainda se permitiram algumas queixas a mais. Bolívar tomou o jornal, leu-o pacientemente e se indignou: “O que ele escreveu sobre a interpretação do Vereza não acrescenta nada ao espetáculo visto. É um comentário que cabe a interpretações anteriores do Vereza (“ Memórias do Cárcere”, “No Brilho da Gota de Sangue”). Não precisava ter visto o espetáculo para ter escrito aquilo”. Péricles sentindo já certo peso no ar, instintivamente tentou uma observação mais bem humorada: “Ele diz que o autor conhece a Literatura e as teorias filosóficas sobre o tema. Ora para afirmar isso, ele, o crítico, também deve conhecer o tema assim. É por isso que tem medo deste e nega a peça (diz injustamente que Guy Foissy certa ode ao suicídio quando o que ocorre é uma discussão sobre as razões de um suicida). Duvido que até o próprio autor conheça profundamente o tema. Esse é um problema complexo demais. Afirmar categoricamente que o autor o conhece assim é absurdo... Vai ver que o crítico não tem tempo de se preparar para a sua atividade, fica lendo toda a Literatura sobre o suicídio....” O parceiro, sisudo até então, riu aos borbotões e logo voltou à carga: “Você viu o espaço que eles dão para o Hollywood Rock e a irrisória matéria com o Vereza, a minguada crítica... Porque não fazem uma primeira crítica na estréia e outra um mês depois quando o espetáculo já está realmente afinado, amadurecido? Eles se comprazem em serem patrulheiros-econômicos da burguesia, classe-média. Não servem ao Teatro. Se fizessem essa segunda crítica teriam muitas vezes de reconhecer que erraram, que foram arrogantes, maledicentes, precipitados...” Péricles trouxe mais à tona suas fantasias de crítico: “Ele poderia ter feito algum paralelo com a peça da Marsha Norman,“Boa Noite Mãe”, que aquele maldoso de São Paulo descartou simplesmente dizendo que eram “emoções para antes da pizza” Ou então com “O Suicídio” que o Teatro dos Quatro montou, onde na Rússia pós-Revolução um suicida era manipulado de acordo com interesses políticos”.

Cansados de defender o texto passaram então a tecer paralelos com suas situações de trabalho. Ambos eram funcionários de administração só que em empresas de compassos tendendo à oposição: enquanto Bolívar usualmente reclamava do ritmo frenético, neurotizante, Péricles queixava-se do marasmo do ambiente de trabalho, da mesmice cotidiana. Julgavam-se vítimas do conflito da iniciativa privada ávida de lucros (a qualquer custo) versus iniciativa pública ávida de verbas e poderes. Nessa briga interminável não havia lugar para espíritos sonhadores como o deles. Por excesso ou por falta de trabalho, num ritmo que podia ser compulsivo ou brando, o sofrimento era muitas vezes incontrolável. “Sabe que eu me sinto o próprio fotógrafo tendo de trabalhar com aquela gente, com aquele chefe! O que a gente tem de suportar para ganhar um dinheirinho safado!” – queixa-se Péricles. Bolívar foi mais atroz: “Nós precisamos aprender a ser medíocres, a nos conformarmos! O segredo da sobrevivência está em compactuar com a mediocridade!” Péricles aumentou as contas do rosário: “Nós havíamos combinado que não comentaríamos mais nossa situação de trabalho, mas eu não agüento! Já fui a visado para não confiar em ninguém lá, calar a minha boca, mas de vez em quando eu quebro a promessa que me fiz. Não é que queriam que eu colocasse um valor pro forma de contribuição numa listinha de casamento (2.500 cruzados quando na verdade nós da sala só contribuímos com 500 no máximo)? Queriam que eu assinasse uma coisa falsa só para impressionar o resto do pessoal e atrair polpudas contribuições. Fiz o maior escândalo! Ficaram uma arara comigo. E olha que isto é o de menos lá”. Bolívar completou: “Que Mário de Andrade me perdoe pela banalização, mas eu também não agüento mais os Macunaímas que andam por aí. No Cinema, no Teatro, na Literatura é muito poético, mas conviver com eles no dia a dia é mortal!”

Péricles contou que um amigo que trabalha num órgão cultural ficou de lhe mostrar uma lista com os nomes de várias grandes figuras da cultura brasileira que receberam verbas públicas consideráveis e não cumpriram o trabalho prometido que era uma obrigação. Um silêncio pesado instalou-se e os dois que caminhavam pelas calçadas, galerias e raramente paravam, desta vez se deixaram sentar no banco mais próximo. Estavam cansados de desfiar perplexidades numa hora que deveria ser de relaxamento. Bolívar de início, tentando mostrar-se calmo, questionou se os dois não estariam querendo trazer as “grandes figuras” até o universo medíocre deles para se conformarem. O companheiro, colhido de surpresa, mostrou-se indignado, não entendeu porque o amigo mostrava-se ferino. Era norma criticarem os outros e a si reservavam algumas leves ironias e autocomplacências. “Simplificando Mário de Andrade: o espírito de Macunaíma nunca lhe perseguiu?” – insistiu Bolívar. “Minha vida tem sido murrinha, mas decente” – respondeu nervosamente o outro. Bolívar instigava o amigo porque estava à procura de cumplicidade. O coração apertado desejava ouvir da parte do parceiro uma confissão que o aliviasse. Com uma mescla de raiva e vergonha contou agora um enredo em que ele era o protagonista, confundindo palavras tensas, carregadas e um tanto de lágrimas: “Sabe aqueles dois malditos que fizeram uma mafiazinha particular e acirraram ainda mais a concorrência reinante? Pois bem, eu não agüentei mais a safadeza e dei um jeito sutil de me livrar deles! Alguns arquivos e programas que me deram o maior trabalho foram alterados, saiu tudo errado e eu tenho certeza que foram os sacanas! Eu não podia suportar mais os risinhos cúmplices que trocavam. Eu fui idiota de entre tantos programas e arquivos colocar os meus com meu nome em vez de uma senha esdrúxula, alfanumérica! Mas me vinguei! Sorrateiramente, na quarta-feira em que não vim passear com você, enquanto almoçavam, tirei a chave da mesa de um deles, fiz uma cópia rápida na esquina e como fiz serão naquele dia pude vasculhar bem a gaveta dele, com cuidado, até que descobri uma folha com os códigos todos (em uma conversa que ouvi de rabeira soube de sua existência ).Eu alterei programas e arquivos do Cirilo e o Carlos foi , como eu esperava, o principal suspeito, pois só ele conhecia essas particularidades do cúmplice. Os dois discutiram feio e alto e foram transferidos!” Ao mesmo tempo em que mostrava um certo regozijo ao contar a trama, Bolívar não deixava de eivar a narração com uma contagiosa amargura. Péricles recebeu o impacto dessa duplicidade e se viu com a necessidade de apaziguar o espírito do amigo. Para tal trouxe à baila uma pequena história que por várias vezes esteve para escapulir, mas a vergonha em cumplicidade com a vaidade a reprimia: “Havia processos no meu trabalho que conseguiram bater recordes de tempo como inconclusos. Os chefes e os funcionários se restringiram a passar um para o outro os papéis sem concluí-los. Como eu acabo logo o que tenho para fazer você já sabe para quem caia o trabalho. Isto eu já havia comentado com você. Só que são processos cabeludos que os chefes é que tem obrigação de destrinchá-los em última instância e dar um ponto final. Foi por culpa deles que eles se tornaram cada vez mais emaranhados! Eu os devolvia, eles pipocavam por sucessivas mesas e como um bumerangue voltavam para a minha. Outro dia desses não pude controlar o aborrecimento e simplesmente rasguei-os, sorrateiramente, depois do fim do expediente! Os interessados que dêem início a novos processos! Os processos tinham dez meses. Faz um mês que eu os pulverizei. Ninguém reclamou até agora!”

Um silêncio ainda mais perturbador instalou-se. Cada um intuía como por dentro do outro, o barulho era infernal. Era melhor que o mundo exterior desse mais uma vez sinal de vitalidade para sacudir-lhes o torpor. Péricles, como de hábito, era quem primeiro procurava farejar um possível alento que lhes permitisse dar a volta por cima no baixo astral instalado. Sentiu vontade de puxar pelos espetáculos por estrear, pelos livros por ler, pelos filmes em breve, pelos shows, mas um inesperado sentimento de leviandade o conteve. Precisava quebrar de alguma maneira o ciclo vicioso de sofisticada, elegante roda-viva do consumo cultural passivo e perguntar ao amigo por que ele não voltava a elaborar os seus poemas. Bolívar riu de forma estrepitosa: “Como aquele personagem da peça “Caixas de Sombras” a maior contribuição que eu dei ao mundo literário foi ter saído dele” Péricles riu também: “Pois eu não! Um dia desses eu paro com as minhas esporádicas cartas aos jornais e elaboro o meu romance! Há algum tempo que eu o rumino. Um dia desses ele “virá de um jorro só” (não é o que dizem?)”. Bolívar voltou ao ar sisudo: “Às vezes tenho vontade de esquecer meus restritivos trinta e oito anos e sair por aí procurando outro trabalho, batendo de porta em porta. Aí me vem o Kafka: “E o pássaro viu-se livre para ir em busca de uma nova gaiola”... Eu caio então no real.” Péricles teve o impulso de perguntar se não valia mesmo a pena procurar, procurar, mas lembrou-se que a pergunta poderia lhe ser devolvida e ele já tinha um desanimador quadro de insucessos quando se submeteu a uma via-crúcis à procura de um novo emprego. As famílias oficiais já eram agrupamentos distantes, acomodados à vida bem menos agitada e sem sal do interior. A família de amigos era pródiga em conversas e trocas de afetos. Mas cada um se “virava” como podia e a troca de favores profissionais, usuais na sociedade, não lhes era possível, acessível. Dois homossexuais tendo como padrinhos Joseph Conrad e Dostoievski, sentindo os trinta anos se distanciarem, poderiam renovar as conversas e os afetos infinitamente, mas os empregos dificilmente. Tinham, infelizmente, de soltar rojão pelos trabalhos que conseguiram e mantinham. Era a situação à qual se conformavam. Para eles o trabalho era uma loucura! Mas largá-lo era uma loucura maior ainda! Era o que sentiam. Mas cotidianamente sentiam-se à beira de um surto. Lembravam-se muito dos versos cantados por Bethânia: “É lucidez, desatino, de ler o próprio destino, sem puder mudar-lhe a sorte.”

No afã de mudar de assunto (mas na realidade contemplando-o) Péricles lembrou ao amigo que hoje ele deveria estar um pouco atordoado, pois não se deu conta de uma frase lançada há pouco: “já me avisaram para ficar quieto”. Em outra ocasião Bolívar o teria inquirido imediatamente a respeito: “Quem avisou?”. Tão logo Péricles contou que esteve num terreiro e uma entidade alertou-o que se continuasse com a língua solta no emprego público que tem, seria perigoso, Bolívar não resistiu a um riso tímido, mas inequívoco. Para quebrar nascente ironia Péricles cuidou de expor as suas convicções: “Não tenho mais dúvida a respeito da idéia de Deus e do conceito espiritual das reencarnações neste ou em outros mundos. Não me olhe como se eu fosse um fanático! Não tem nada a ver com esses credos oficiais”. Bolívar lamentou que o amigo voltasse a esse tema. Era uma discussão que nas vezes anteriores em que foi suscitada mais o angustiou do que o esclareceu. O que o surpreendia agora era que o amigo não se limitara às leituras. Fora a uma “pesquisa de campo” e isto o assustou. Péricles estava eufórico: “Sem me conhecer a entidade incorporada na médium fez uma biografia sucinta da minha vida e uma radiografia perfeita de meus problemas! E olha que tem pontos nada rotineiros!” Bolívar foi então incisivo: “Cuidado com esses exibicionismos. Há muitos charlatões por aí!” “Charlatões há em todas as áreas, estamos já carecas de ter notícia disso! Não é exclusividade apenas do ocultismo. Não é porque existem péssimos médicos que vamos concluir que a medicina não existe...”- replicou Péricles. O parceiro exaltou-se: “As pessoas que correm atrás dessas doutrinas de reencarnação são aquelas que têm um medo terrível da morte! Não podem conceber a déia de que morrerão. Pronto. Não sobrará mais nada! Eu dado que bergmanianamente “vivo embaixo de um céu escuro e cruel tendo a morte como única certeza” não tenho medo dela! Do sofrimento tenho medo, dela não!” Péricles como que à espera desse comentário contrapôs uma defesa análoga: “As pessoas que fogem do entendimento das doutrinas de reencarnação são aquelas que tem um medo terrível da vida. Não podem conceber a idéia de que voltarão e podem sofrer tudo de novo. Tudo recomeçará!” “Quer dizer então que quem nasce numa favela está é depurando o seu espírito? Tem que sofrer mesmo, não é? É carma que se chama isso, não é? Ser homossexual é um carma, não é?” – disparou o incrédulo parceiro. Enquanto Péricles procurava a melhor forma de responder, o amigo saboreava no silêncio uma vitória, um sentimento que o incomodava dado o afeto que o ligava ao amigo. “Sim e não meu caro. É um carma sim, mas quem somos nós para tomarmos o papel de Deus e imputarmos dívidas espirituais aos outros? Os favelados têm o livre arbítrio para lutarem contra sua condição. Nós temos o dever de lutar por uma sociedade mais justa, com suas riquezas bem distribuídas. Não é porque um conceito é manipulado pelas classes dominantes que ele deixa de ser verdadeiro em sua essência. Não há nenhum sentimento nobre que não possa ser manipulado pelos poderosos. Nem por isso esses sentimentos deixam de serem nobres e verdadeiros. De tudo, de acordo com sórdidos interesses pode ser feita uma faca-de-dois-gumes.”

Na cabeça de Bolívar passaram a dançar um carrossel de questões que lançou ao amigo: “Que livre-arbítrio que eu tenho se Deus já sabe tudo que farei, pois tudo pode? Deus faz da vida da gente um jogo de marionetes? Se o criador é perfeito por que deixou este mundo chegar a esse ponto de discórdia, à beira de guerras nucleares e grandes catástrofes ecológicas, com essa miséria toda, essa Babel azucrinante? Que perfeição é essa?” Expostas as perguntas, à primeira Péricles simplesmente respondeu que o fato de Deus saber/prever (se o quiser) tudo que ele fará não lhe tira o livre-arbítrio, à segunda atribuiu uma impertinência que não merecia resposta pois a julgava uma versão debochada da primeira. A terceira respondeu com outra pergunta: “Se você fosse milionário e sobrecarregasse precocemente seu filho com bens materiais sem restrições, ele daria valor ao que tem, estaria preparado para a vida, ele seria feliz?”

Bolívar alegou que essas respostas eram simplistas. O improvisado pregador fez questão de explicar que não acredita em dogmas, mas no mundo espiritual há questões que são comparáveis ao problema da tradução na Literatura: “há conceitos, idéias que são intraduzíveis para a nossa dimensão”. Bolívar falou com uma expressão um tanto cínica de que essa era uma boa observação, no sentido de que funcionava como boa desculpa. Péricles pressentiu pelo ar maroto, que estavam prestes a discutir deselegantemente e que deveria mudar de assunto.

Ao perguntar ao colega se ele leria novamente “Os Irmãos Karamazov”, Péricles sentiu que de fato não mudou de assunto como pretendia e que de outra forma ainda fustigava o ceticismo dele: “Você leu a obra quando era muito jovem, muitas filigranas devem ter lhe escapado. Deixa “o horror, o horror” do “O Coração das Trevas” um pouco e vem “alimentar-se diretamente da placenta” conforme a Clarice. É impressionante a paciência e a generosidade que Dostoievski tem com os seus personagens. Ele conhece cada dobra da alma de suas crias. Ele é o autor mas também dá livre-arbítrio aos personagens. Estes fazem o que tem vontade, muitas vezes contra a própria razão. “Razão – esse anão que mora nos ombros de um gigante chamado vontade...”Tenho desejo de sair por aí distribuindo o capítulo do “O Grande Inquisidor” como esses beatos distribuem esses papeizinhos e suas falas apocalípticas... “ (“Gente, eu sei que vocês não tem paciência de lerem um calhamaço de 500 páginas mas leiam pelo menos esse capítulo aqui”). Está tão claro e contundente como questões vitais como a religiosidade, as idéias de Cristo, foram manipuladas pelos poderosos eclesiastas no interesse de suas garras de poder e riquezas materiais. O apelo à verdadeira espiritualidade em Dostoievski é forte demais. Ele comunga com todas as nossas descrenças diante das manipulações, não deixa pedra sobre pedra ao mostrar a prostituição das relações sociais, descreve uma sociedade caindo de podre como a nossa, com a dos personagens “do parapeito” e, no entanto, ele não nos conduz ao ceticismo. Muito pelo contrário!”Bolívar assistia o manifesto do amigo, tinha vontade de intervir, mas estava tomado, queria ouvir mais. “Você já leu algum tempo atrás, mas você deve ter simplesmente aprendido um pouco mais desde então sobre Psicologia, Psicanálise, História, Direito, etc, mas a obra transcende tudo isso!” ”Dostoievski é como um Deus?” – arriscou Bolívar. “Assim é demais” – arriscou Péricles, acrescentando: “Mas é como Cristo, isto sim, ou melhor “cristão torturado”! Depois de tantas manipulações me dá certa paranóia de ler a Bíblia. Dostoievski supre essa carência!”. Meio sem jeito Bolívar lembrou que Milan Kundera, Gabriel Cabrera Infante sentem repulsa diante da obra de Dostoievski, que Otto Maria Carpeaux escreveu que o elogiado capítulo era fruto de um desconhecimento da História da Igreja Romana. O outro foi implacável : “Milan é um gato escaldado pela brutalidade dos milicos russos que fizeram de Praga uma praga. E ele generalizou o seu horror chegando, injustamente, até Dostoievski.Logo um autor que profeticamente já previa que uma revolução com gente com aquela mentalidade como os Ivans Karamazovs da vida, redundaria num genocídio, no stalinismo. Já a má vontade do Gabriel é “fricote de bicha fina”! Nós conhecemos bem isso, não conhecemos?...Por outro lado a critica de Carpeaux é apenas uma amostra da força da Igreja Tradicional, dos tentáculos que ela lança mesmo para as mentes que se acreditam mais abertas.”

Uma pausa para tomada de fôlego impôs-se. Após algumas reflexões Bolívar prometeu reler a obra indicada, mas só depois que terminasse o mapeamento de Joseph Conrad. Sentiu vontade de fazer mais uma provocação: “Mas se existem outras vidas, quando a nossa aqui não dá certo, o suicídio é uma boa saída não é:” Péricles captou o tom mais de pilhéria do que de dúvida real, mas mesmo assim foi incisivo: “É a pior saída! O pior crime! É uma atitude de quem passou por aqui, mas não entendeu nada! Estará assumindo dívidas pesadas!” O outro sentiu um arrepio e lembrou que a hora de almoço já tinha sido mais do que extrapolada.

Uma sinfonia/cacofonia de sofisticado consumismo ecoou até o momento que se separaram: “Estou curioso para ver o Abujamra no “O Contrabaixo”, “Acho que o filme do Kubrick (“Full Metal Jacket/Nascido para Matar) vai nos tirar dessa dieta cinematográfica de janeiro”, “Quero ver “O Balcão” com um grupo de Recife”, “Quero rever “Meu Tio, o Yaurutê” com o extraordinário trabalho do Cacá Carvalho”, “Estou com uma boa intuição para “Rua Casas Negras”, “Estou doido para assistir ao show da Leny Andrade na sala Funarte”, etc. Após se despedirem, Bolívar já um pouco distante gritou: “E vamos rever qualquer dia desses o “O Homem no Parapeito da Ponte”. Os atores já devem estar no ponto!”

Como todos os dias chamados úteis chega uma hora em que acaba o período de liberdade condicional e os “presos” que tomavam sol têm de voltar para atrás de suas grades pós-modernas. Nesta hora lembram-se de Kafka. Uma melancolia os invade e depois de certos espasmos de sofrimento, se recuperam... Pensam nos próximos filmes, peças, livros, shows e devaneios. Afinal esses encontros na rua ou com a arte em suas diferentes formas, por enquanto, ainda são possíveis e permitidos. O poder de sublimação de angústias existenciais através de todos estes recursos teria uma sobrevida imprevisível. Para toda vida seria impraticável.

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Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Acho que conheço os dois personagens.
    Estou vivendo de não "falar de corda na casa do enforcado". Entende o que quero dizer?

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  2. Bom, ver você de novo com sua linguagem contundente e questionamentos inteligentes. Assuntos que as pessoas tem medo de abordar.
    Adorei.
    Pericles e Bolivar são maravilhosos mas,Carma existe para transformar e para isso o livre arbítrio deve se exercitado.
    Lindo texto!Forte e Verdadeiro!

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