quarta-feira, 20 de maio de 2009

Transmitindo às Criaturas o Legado da Nossa Miséria




Vi dia 19 de maio em “Encontros- O Globo” no Arteplex –RJ em pré-estréia, “Garapa” (Brasil/2008) de José Padilha”, com a presença do diretor para debate posterior à exibição, com mediação do jornalista Mauro Ventura  e presenças de Francisco Menezes (diretor do Ibase-Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, que prestou consultoria ao filme), Consuelo Lins (documentarista e professora de Cinema) e o cineasta José Joffily que além de ficções tem também documentários no currículo como “Vocação do Poder “( junto com Eduardo Escorel) e “O Chamado de Deus”. 

Assistir ao asfixiante “Garapa” e depois ter o calor humano do clima de debate, mesmo com um astral de aturdimento na sala, é um bálsamo. Conforme aconteceu com platéias nos Festivais de Berlim e Tribeca de 2009, ao fim da sessão não houve aplausos nem vaias e sim um silêncio aterrador. 

Muito se discute hoje na imprensa o impacto das imagens de “Anticristo” de Lars Von Trier” exibido no Festival de Cannes de 2009 corrente: tem cenas de sexo fortes, mutilações de órgãos genitais com tesoura e outras fantasias de um diretor que buscou desesperadamente sair de um período de forte depressão fazendo da arte com suas fantasias que o atormentavam sua terapia. Ainda não vi “Anticristo”, o que devo certamente fazer em nome dos filmes extraordinários que Lars Von Trier já nos deu ( “Ondas do Destino”, “Dançando no Escuro”, “Dogville”, dentre outros). Mas por mais que tenhamos um jogo de ficção atroz visualmente, podemos sempre procurar fazer um exercício de que Charlotte Gainsbourg e William Dafoe estão representando, efeitos digitais podem estar sendo usados ou até mesmo que esteja havendo doublés de corpos para os atores. 

 Com “Garapa” este exercício nos é interditado. O que temos diante de nos é um quadro agudo em três famílias dos efeitos da fome de uma forma nua e crua, sem enfeites, sem música, com cortes secos, com uma fotografia granulada como nos documentários dos anos 60, um preto e branco que se por um lado suaviza o impacto por outro aumenta a nossa desolação com este mundo perdido, que poderia ser também em outro país, outra localidade do Brasil que não o Ceará ou até mesmo, como lembrou Joffily, um lugar a vinte minutos de carro do cinema em que estávamos. 

A meta de Padilha era fazer um filme com a linguagem do Cinema Direto em que houvesse um mínimo de intervenções e o máximo em observações, abordando a questão da fome sob o ponto de vista de quem a sofre. Em alguns momentos quando se discute, por exemplo, métodos de controle de natalidade ou então a ineficiência de uma aspirina dada a uma criança com dor de dente, a qual precisaria ir mesmo é a um dentista, o que é assumido no filme, ocorrem intervenções e surge a voz do cineasta. Mas são poucos estes momentos. No debate Padilha contou que levou a criança ao dentista, o que omite no filme, como também outras de suas intervenções como lavar um chão cheio de moscas. 

“Garapa” se refere ao alimento energético mais barato e fácil que se pode conseguir num estado de pobreza extrema que é uma mistura de água quente com açúcar que é servida às crianças com uma mamadeira. Um paliativo banal bastante cruel. O filme se concentra em três famílias em que a força das mulheres mães é predominante e a fraqueza dos pais é patente: Robertina,mãe de 11 filhos; Rosa de três filhos ( ambas vivendo em Choró, zona rural do Ceará); Lúcia,moradora de periferia de Fortaleza, mãe de três filhas, com o marido Flávio, alcoólatra e com problemas mentais. O filme faz um recorte de três famílias que foram escolhidas de uma forma aleatória num conjunto de 12 milhões de brasileiros vivendo em "risco alimentacional" ( eufemismo para a fome mais negra....) segundo a ONU. Padilha não queria que dissessem que ele havia escolhido famílias a dedo para provar uma tese à priori. 

Lúcia não consegue carteira de identidade (o marido assim como faz com mantimentos a vende para poder beber). Paira ainda a suspeita de que cometa incesto com uma das filhas. Uma vizinha não se controla e chega até a ofender Lúcia ao dizer que ela tolera demais as cafajestadas do marido e que teria se tornado sem-vergonha. Uma médica que a acompanha a questiona sobre o porquê dela ainda insistir em namorar Flávio. Mas algo mais forte que os prende e que para nós seria incompreensível, pois decidamente nestas três histórias que correm em paralelo, estamos mergulhados num mundo com suas próprias leis, um mundo onde não há projetos de vida e sim apenas se pensa em como será obtido o alimento para matar a fome que vai voltar logo pois mal passa. 

Algumas famílias recebem auxílio do governo (as que têm documentos), mas conforme comentam é uma quantia muito pequena. Padilha nos debates se disse inteiramente a favor do projeto Bolsa-Família do governo Lula. No estado em estas pessoas estão, ganhando um pouco apenas para remediar a pobreza extrema, não há risco de deixá-los mal acostumados e vagabundos como apregoam muitos, pois é patente a falta de perspectivas de trabalhos. 

Francisco Menezes acredita que o programa Bolsa-Família tem de ser aperfeiçoado com programas complementares e que famílias em extrema pobreza como as do filme devem ter uma atenção mais especial. Ele nos conta que na Constituição de 1988 não há nada que se refira à alimentação. Há desde 2003 um projeto parado no Congresso que instrumentaliza a alimentação como um direito do cidadão. Em suma: há que se ter políticas públicas bem definidas para esta questão candente da fome e num primeiro estágio tem de se passar pelo assistencialismo sim, pois para quem está no limite da sobrevivência não há nada mais urgente. A frase de Betinho é antológica e inescapável: “quem tem fome tem pressa”. 

À fome se soma o desemprego, a ignorância, a falta de higiene e de educação, culminando numa total falta de esperança. Chega a ser bastante incômodo no filme, dentre vários aspectos, ver crianças com os pés infestados de moscas. Padilha que trabalhou com o montador Felipe Lacerda (das obras-primas “Ônibus 174” e “Central do Brasil”) nos contou que era impressionante a quantidade de moscas que filmaram e que não saíram no filme... Não houve necessidade de ir atrás de detalhes sórdidos: eles já impregnavam a filmagem com moscas até na lente da câmera. 

“Garapa” levanta sérias questões éticas que o diretor poderia ter melhor elucidado em letreiros finais sem prejuízo da força estética despojada do filme. A renda do filme, vendido também para várias televisões, vai para as famílias retratadas.A idéia inicial era a partir de uma base longe das locações, irem todo dia cedo a elas para filmar o dia inteiro e não intervir, mas houve vários momentos em que imperativos éticos fizeram a equipe intervir. Padilha não acredita em ética do documentário. Mas isto tem de ser bem explicado. Segundo ele o que existe é a ética da pessoa que faz o filme que independe do documentário. Não se encontra um livro sequer que discuta o que é ética no documentário. Padilha e equipe partiram de suas noções pessoais de ética e intervieram quando necessário. Acredito que o filme faz bem em não mostrar isto no seu corpo narrativo (o que é mostrado apenas com relação ao remédio para dor de dente, explicitado como insuficiente), mas seria melhor se nos letreiros finais houvesse mais informações como as que nos foi passada no debate. Acredito que um tanto do silêncio da platéia ao final do filme vem do respeito e estupefação diante do que foi visto, mas também dos questionamentos éticos quando aos possíveis procedimentos nas filmagens. As regras do jogo tinham de ser mostradas com mais clareza ao final, assim como Eduardo Coutinho costuma fazer em seus trabalhos logo no início. 

Segundo dados da ONU a fome afeta mais de 920 milhões de pessoas no mundo todo. Com o dinheiro que está sendo pago para reconstrução do FMI, algo da ordem de um trilhão de dólares, com contribuição até mesmo do Brasil, que tanto foi subjugado e humilhado por este órgão (que ainda vai querer ditar políticas neoliberais, surgindo das ruínas) e com o que se gasta em armamentos na Terra, daria para se acabar com bastante folga com este estado de fome crônica no mundo, pois para isto demandaríamos de uma quantia relativamente baixa: 30 milhões de dólares ao ano, segundo a FAO ( Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Padilha diz que o debate sobre o filme tem de ser politizado sim. Não se acaba com a fome no mundo porque não se quer! Como diz Renato Russo, a humanidade é desumana- lembrou o diretor. 

Famílias em estados nutricionais deploráveis como as do filme têm em média 5 filhos, o que coloca a questão da educação em termos de controle de natalidade num patamar elevado em que não se deve de forma alguma dar ouvidos a religiosos refratários a esta política que deve ser intensiva, ostensiva e abrangente. O Brasil deveria ser laico (o que na prática não é) e os fundamentalistas religiosos, sejam católicos ou evangélicos,etc, devem ser afastados o máximo possível com energia destas questões, não lhe dando ouvidos. Um papa que é contra o uso de camisinha não pode ser levado a sério (mesmo depois de ter constatado a gravidade do estado da população pobre africana!). Segundo Padilha com as famílias que trabalhou não encontrou impedimentos de ordem moral e religiosa, mas sim muita ignorância: questionada por Padilha, Robertina despreza qualquer método de prevenção de gravidez e diz que quando se tem que engravidar não há como evitar (sic). 

Para Padilha um dos problemas da fome é o da representação. Se encontrarmos um menino de rua desconhecido passamos batido. Se for conhecido tenderemos a ajudar. A base eleitoral de Barack Obama não tem nada a ver com a fome na África: se Obama fizer muito neste sentido ( uma utopia), nem por isso tende a aumentar seu capital eleitoral. 

A arte, um filme como “Garapa” muda o mundo? Para Padilha o filme sozinho não tem este poder, mas junto com artigos sobre o filme e junto a outras obras pode-se formar um caldo cultural propício a mudanças reais e concretas. Sua visão sobre o problema da fome mudou totalmente ao fazer este filme dolorido, de uma beleza terrível, necessário. Ver “Garapa” não é uma experiência fácil. O desalento e a desesperança reinam. Até um gatinho que surge em cena está magérrimo. Mas tomar o filme com base para debates para se pensar em soluções concretas, assim como foi feito no encontro com os debatedores é um alento. Que o filme (com lançamento no Brasil no dia 29 de maio) tenha reflexos aqui e no exterior à altura da grandeza generosa de sua proposta, por mais que surjam as vozes discordantes como aconteceu com a crucificação mais do que injusta de Padilha, por certos setores, ao fazer o ótimo “Tropa de Elite”. 

A falta de ações concretas e decididas para acabar com a miséria no mundo que o filme evidencia com sua atemporalidade e maleabilidade geográfica possíveis traz água no moinho para que se tenha um título para o post como o que foi feito. Machado de Assis, tomado de forma enviesada, é mais atual do que nunca. 

Se não é difícil acabar com a fome assim, por que não surge vontade política neste sentido? Aqui vale lembrar Brecht e “Mãe Coragem e Seus Filhos”: mesmo numa situação de miséria extrema há sempre alguém que lucra com isto. 

http://www.movieyou.com.br/wp-content/uploads/2009/04/garapa.jpg 

http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/foto/0,,20159814,00.jpg 

http://cinema.cineclick.uol.com.br/galeria/images-imagem/id4086img2.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson Rodrigues de Souza26 de junho de 2009 às 07:44

    Eles venceram.
    Nelson

    CLÓVIS ROSSI

    Sexta-feira, 26 de junho de 2009
    Quebraram. Mas ganharam

    BASILEIA - Lembra-se dos velhos tempos em que os bancos quebraram, os governos do mundo correram para socorrê-los com uma catarata de dinheiro e dez de cada dez analistas diziam que nunca mais o sistema financeiro seria o mesmo? Se você se lembra, melhor esquecer. Está tudo começando a voltar ao que era antes, do que dão eloquente testemunho textos de anteontem no "Financial Times" e de ontem no "Guardian".
    "A comunidade financeira de Londres está sacudindo a poeira e voltando ao negócio de fazer dinheiro", diz o "Guardian". Tanto que, nos escritórios da Goldman Sachs, o pessoal já foi avisado para esperar um dos anos mais lucrativos de todos os tempos.
    O Barclays, só neste mês, está pagando algo em torno de 730 milhões (R$ 2,4 bilhões) em bônus para cerca de 410 empregados. O "Financial Times" vai na mesma direção: "Investidores e grupos de serviços profissionais britânicos se dizem preocupados com a possibilidade de que mercados de ações bombando permitirão à City londrina contornar as consequências da crise financeira global sem fazer mudanças fundamentais".
    Enquanto isso, em "O Globo", lia-se que "a indústria financeira dos países desenvolvidos recebeu em um ano quase dez vezes mais recursos do que todos os países pobres em quase meio século, segundo análise feita por especialistas da Campanha da ONU sobre as Metas do Milênio". Em números: US$ 2 trilhões em 49 anos para os pobres, US$ 18 trilhões nos 12 meses mais recentes para os bancos.
    Ah, ainda tem a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) avisando que, com magro 1% da catarata de dinheiro alocada para o sistema financeiro, daria para alimentar todos os famintos do mundo. Os "brancos de olhos azuis" ganharam de novo.

    crossi@uol.com.br

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