sábado, 31 de janeiro de 2009

Idéias de Tzvetan Todorov Extrapoladas Para o Cinema


No Caderno Prosa e Verso do jornal O Globo de 24 de janeiro de 2009 há uma instigante matéria e entrevista feita por Miguel Conde sobre e com o crítico Tzvetan Todorov, a propósito de seu novo livro, “A Literatura em Perigo” (Editora Difel). As chamadas do Caderno são provocativas: ”Renúncia ao prazer: Em novo livro, Tzvetan Todorov diz que críticos e professores afastam leitores da literatura.” Há também uma ótima e elucidativa resenha de Francisco Bosco. Algumas falas e escritos do ensaísta merecem, dentre outros, ser ressaltados:

“Uma concepção estreita da literatura que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez procura nos livros o que possa dar sentido à existência. É ele que tem razão.”

“Os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem. Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana (...) mas sobre as noções críticas tradicionais ou modernas”.

“Sem aspirar a um modelo ideal, pode-se recomendar que os alunos se tornem conscientes de que a literatura fala da vida deles e que ela tem coisas importantes a dizer. Tal é o horizonte de ensino; quanto à maneira de aproximar-se dele, melhor deixar que o professor escolha livremente”


”A dizer a verdade, não sei o que seria um prazer puramente estético em se tratando de literatura, ou mesmo de pintura, pois a linguagem como a imagem é necessariamente portadora de sentido, e o sentido tem dimensões outras que não são as estéticas: políticas, morais, sociais...Na literatura não vejo como se poderia admirar uma forma se ela não participasse da construção de um sentido”

Todorov, que já foi grande divulgador de teorias estruturalistas, assim vê o ensino de literatura na França, onde a busca por cursos na área tem caído, no que equivale ao nosso vestibular, como um todo, de 33% para apenas 10%. Não sabe ao certo o que se passa em outros países, pois a situação pode variar de um para outro.

Estou muito longe de ter a competência e erudição de Todorov, mas posso falar de minhas experiências. Depois de terminar formação em Engenharia tentei cursar Literatura-Língua Portuguesa na UERJ nos anos 80. Não suportei mais de um ano e meio. A qualidade do ensino nos cursos em que me matriculei era encontrada de forma pontual em poucos professores. Havia a moda exasperante e hegemônica do estruturalismo e meu prazer e tempo para fruir literatura estava escasseando, ainda mais que trabalhava durante o dia. Larguei tudo, reencontrando tempo também para ir ao cinema e passei a estudar autores de forma autodidata.

Tenho amigos professores universitários. Constato muito empenho e dedicação em seus trabalhos. Mas pelas histórias que me contam do dia a dia acadêmico, confirmo o que já sabia: não é este o meio habitat. Tive/tenho de encontrar outros caminhos.

No que diz respeito ao cinema, não posso de forma alguma generalizar, mas encontro aqui e ali algumas manifestações que me incomodam. Cheguei a abandonar um texto sobre “Abril Despedaçado”, um filme que adorei, quando me deparei com “ mais um deslocamento inútil de Walter Salles....”.

Mais recentemente têm surgido ironias a respeito de “O Curioso Caso de Benjamin Button” de David Fincher que seria simplesmente uma cópia de “Forrest Gump” de Robert Zemecks, tendo os dois o mesmo roteirista Eric Roth. A meu ver é um grande equívoco de ordem estruturalista. Um vídeo que circula na internet e que aparece no Blog de Ricardo Calil e da Ilustrada no Cinema como piada é bastante interessante. Mas como “prova” de que os dois filmes são iguais é uma grande falácia.

David não é Robert. Enquanto o filme do primeiro é mais “frio”, distanciado, o do segundo é bastante caloroso. “Forrest Gump” aproxima seu protagonista da História do século XX de uma forma deliciosamente nostálgica e humorística, com toques de “Zelig” de Woddy Allen, com leve traço de melancolia. Já em “O Curioso Caso de Benjamin Button” predomina a melancolia sem cair na autocomiseração e pieguice ao narrar a história de um homem que nasce como um velho e vai rejuvenescendo até encontrar a morte de uma forma peculiar, passando por vários acontecimentos históricos, nos incitando a meditar sobre o poder de erosão do tempo em nossas vidas ( algo que já havia com força em “Zodíaco” do mesmo Fincher), a fragilidade do amor que pode surgir nas relações e os sentidos que a vida e morte têm para nós. Há certa previsibilidade do roteiro neste filme que concorre a 13 Oscars no dia 22 de fevereiro. Mas de forma alguma deve ser descartado por ser uma suposta picaretagem. Vamos fazer humor com os paralelismos, mas desprezar os dois filmes, cada em seu gênero muito interessante,, é se desligar da vida, das relações que as obras de arte têm conosco e confiar demais nos poderes de análises estritamente estruturais.

Leia Todorov, veja os dois filmes, leia textos sobre esta querela nos dois blogs citados com links abaixo e tire suas próprias conclusões. O vídeo que até ontem estava disponível, hoje não está mais. Não gostaria de ver censura na web mas o vídeo realmente soava como manipulação e calúnia. Os produtores devem ter agido diante da agressão. Preferiria que o vídeo continuasse em circulação e outras formas de defesas como contra-ataque fossem feitas.
Ps. 1-O Blog da Ilustrada conseguiu recuperar o vídeo. Já o de Ricardo Calil não. Esta é a situação de sábado à noite.
Ps.2-Arnaldo Block escreveu uma crônica belíssima no Segundo Caderno de O Globo de hoje, 31 de janeiro, inspirada no filme "O Curioso Caso de Benjamin Button", que é "Todo neném é Matusalém". Imperdível.

Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A Suposta Favelização do Cinema Brasileiro


Há quem não suporte mais os filmes brasileiros que de forma direta ou indireta remetem à questão das favelas e suas inúmeras implicações. Na última quarta-feira novamente ônibus foram incendiados, perto do Morro da Mangueira, em protesto dos moradores pela morte de um chefe de tráfico. Enquanto problemas gravíssimos como este continuar existindo aliados com caveirões arrepiantes e sórdidos e domínios tão deletérios como os dos traficantes que são os das milícias, muitas facetas a arte cinematográfica ainda pode explorar. Daria um bom documentário filmar estes incêndios e depois entrevistar as pessoas para entendermos melhor o porquê de suas revoltas. Por que estariam reagindo com mais violência à violência candente que já enfrentam no cotidiano?

“Próxima Parada 174” de Bruno Barreto tem suas deficiências internas com diálogos didáticos demais, ainda que exiba grande eficiência técnica. Mas jamais deveríamos dizer que é um filme que não merecia ser feito, mesmo com a sombra do maravilhoso “”Ônibus 174” de José Padilha pairando sobre ele. Bruno deslocou o olhar deste fato célebre. Daí a sua pertinência. Mesmo com final desastroso e apressado, o mesmo se pode dizer de “Era Uma Vez” de Breno Silveira.

Quando o genial cineasta Elia Kazan fez parte de um Festival Internacional de Cinema com sede no Hotel Nacional de São Conrado (hoje um elefante branco fechado) e viu a Rocinha, ficou espantado de como não tínhamos medo de que o pessoal da favela um dia descesse para “roubar o asfalto”. Via uma violência latente, com toda razão, por mais que saibamos que muitas pessoas honestas ali moram. De lá pra cá a Rocinha cresceu ainda mais.

Agora passamos no Rio de Janeiro, com o novo prefeito, o que se chama “choque de ordem”. Em linhas gerais concordo, mas há detalhes em que se tem que prestar bastante atenção: qual é a qualidade real e humana destes abrigos para onde querem levar os que moram nas ruas (tenho receio que não fujam do horror das Febens que já vimos em filmes como “Pixote” de Hector Babenco e no citado filme de Bruno Barreto); do que viverão os camelôs sem suas atividades ( eu, sem nenhum cinismo, prefiro o incômodo dos camelôs do que eles passando a ser assaltantes......). Aliás, João Estrela, que inspirou “Meu Nome Não é Johnny” levantou uma questão bastante pertinente: em que vão trabalhar muitas pessoas ligadas ao tráfico se este comércio de drogas for legalizado, uma idéia para a qual tenho simpatia e temor?

Enfim temos problemas bastante complexos que merecem muitas análises, estudos e por que não: inspirar filmes ao cinema brasileiro, pois nem toda história já foi contada e podemos encontrar muitos novos ângulos para esta questão atordoante e cotidiana.

Um ponto ainda a ressaltar: mesmo com todos estes “filmes de favela”, no conjunto da retomada do Cinema Brasileiro temos as mais variadas estéticas e tendências para se acompanhar. É um momento muito rico do Cinema Brasileiro, mesmo com as baixas bilheterias que andam acontecendo ultimamente e temos muitos projetos interessantes na gaveta, esperando exibição.

Tenho um poema que expressa minha perplexidade com o que chamam agora eufemisticamente de “desordem”. Vamos ver se vocês gostam.

Divina Encrenca

Adoniram Charutinho,
Estou aqui na rua
Sem teto,
Sem calor,
Sem carinho,
Sem afeto
Sem amor
de qualquer maneira.
Será que Deus
dá mesmo o frio
conforme o cobertor?
Ou isso é uma besteira?
Você, meu querido que está aí....
Pergunte pra Ele porque estou aqui!
Sabe Ele a minha idade?
Sabe Ele o que acontece na nossa cidade?
Lá em cima nos morros,
Cá embaixo nas ruas....
E eu com as minhas carnes
Quase nuas...
Sabe Ele, realmente, o que está fazendo?
Será que Ele sabe do meu corpo de menino doendo?
Será que Ele sabe o que é uma bala perdida?
É Ele mesmo que comanda e escolhe o “álvaro”
da filha da puta?

Adoniram de Saudosas Malocas
Será que seremos sempre porra-loucas?
Pergunte pra Ele, se sabe
O que significa “Tsumani na Alma”...
Aqui Tio Bergman entendia um pouco disso...
Aí Ele deve entender disso demais...
Mas se Ele não responder,
Não o perturbe mais!
Ele pode se irritar!
Garanta aí o seu bem-estar!
Você fez por merecer!
Mas só mais uma coisa:
Sabe que o Trem-das-Onze,
Agora mesmo no século vinte e um
ainda tá cheio de gente sem nenhum...
puto!?

Puta-que-nos-pariu!!!!
Mas chega de luto!
Vamos à luta,
Na dura disputa nossa de cada dia.
“Sorria”
Que estão filmando
E estou me acostumando
Com a vida que ando levando,
Feliz ou infelizmente....
Já nem sei..
Mas Adoniram
Eu não resisto
E insisto:
Só mais umas perguntinhas.

Juro que não são pegadinhas....
Responda você mesmo,
Pra não incomodar o HOMEM!
Eu sei que você é paulista e eu carioca,
a droga é malhada tanto lá como aqui
E eu descascando esse abacaxi.
Pois então me responda,
Tire minhas dúvidas!
A pessoa é realmente pra o que nasce,
Mesmo que às vezes
tenha a força de um pé de alface?
Vale a pena dar a outra face?
Eu mereço?
Nos merecemos?
Por que?
Até quando?
Se não souber
Ou não quiser responder,
Eu não vou me ofender.
Pergunte ao Betinho,
Com jeitinho....
Ao Henfil não,
Pois virá palavrão...

Abraços&Beijos
Lembranças pra Elis.
Mente pra ela que estou feliz...

Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Qual é a essência do Cinema?


A primeira idéia para o nome deste Blog foi “Dodeskaden”. Seria uma homenagem a este filme de 1970 de Akira Kurosawa que tanto me marcou. Dodeskaden é a onomatopéia que um menino que vai da favela para a cidade utiliza imaginando-se num trem. Repete a palavra várias vezes, vibrando com a viagem. É um dos mais pungentes e belos filmes já feitos, com uma fotografia não menos arrebatadora, com seus tons vermelhos e amarelos fortes. Não quis utilizar mais este título porque quis ampliar o escopo do Blog e nem sei se as gerações mais jovens conhecem esta obra-prima e saberiam a que eu estava me referindo.

O filme, no entanto, foi um fracasso de público. Kurosawa não conseguiu mais capital japonês para filmar e tentou o suicídio. Com dinheiro da Mosfilm se levantou fazendo outro filme maravilhoso que é “Dersu Uzala”(1974). O filme foi um sucesso internacional conquistando o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Isto não impediu que o então crítico de cinema (hoje um ótimo tradutor e sonoplasta) Marcos Ribas de Faria cometesse um grande atentado. Além de dar uma bolinha preta inclemente, escreveu no Jornal do Brasil que o filme “é uma bebedeira ecológica” (sic).

Matinas Suzuki Junior, que já foi Editor do Caderno Folha Ilustrada superou Marcos e escreveu uma das maiores barbaridades que já li sobre cinema: depois de “Sonhos”(1990), os japoneses deveriam economizar seus ienes e não investir mais em Kurosawa. Ainda bem “que não foi ouvido” e Kurosowa depois de “Rapsódia em Agosto” (1991), realizou seu belíssimo testamento “Madadayo”(1993), onde um velho professor se despede dos alunos com grande emoção, se aposenta e passa a viver preocupado com seu gato que sumiu.

“Sonhos” incomoda por que transborda de humanidade, com força estética poderosa e isto passa a ser tido como pieguice e passadismo.

“Sonhos” não é o choro pelo leite derramado, mas um poema-pranto pelo leite que não se bebe...

Numa das últimas homenagens que recebeu em vida, Kurosowa afirmou que a essência do Cinema ainda lhe escapava. Isto depois de ter feitos tantos filmes extraordinários. Essa humildade essencial de Kurosawa faz falta no mundo de hoje. Muita gente age e escreve como se conhecesse e detivesse “o que é a essência do Cinema”. Nada mais enganoso e causa de grandes equívocos.

Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Crônicas de Uma Crise Aguda Anunciada


Começa hoje o Fórum Social Mundial em Belém do Pará e amanhã o Fórum Econômico de Davos nos Alpes suíços, cenário celebrizado em “A Montanha Mágica” de Thomas Mann. Este encontro de chefes de Estado em Davos está cercado com arame farpado para coibir manifestações contrárias. Nada como o tempo tempo tempo tempo para se tomar consciência de que a ênfase no social do primeiro era premente em relação à força dada ao meramente econômico do segundo. A crise econômica gravíssima que eclodiu com mais força em 2008, que está provocando alto índice de demissões em massa, que só não previa quem enfiava a cabeça debaixo da areia das conveniências para os absurdos perpetrados pelos mercados financeiros fraudulentos, mostrou que as advertências do Fórum Social quanto à hegemonia desta entidade chamada Mercado em detrimento da força do Estado estavam mais do que corretas. Vamos ver os encaminhamentos que estes Fóruns terão. Será que em Davos vai reinar a máxima do Príncipe Fabrizio Salinas de “O Leopardo” de Giuseppe Lampedusa, filmado à perfeição por Luchino Visconti: “ È preciso mudar para que tudo continue na mesma”?

Vamos aqui elogiar os cineastas que com resultados diferenciados, mas todos intrigantes, não se conformaram com a idéia de mundo que quiseram nos vender nas últimas décadas e trataram estas questões levantadas mais explicitamente, sem pudores e fizeram filmes que já podem ser considerados documentos históricos de uma era (que passará?) independentemente dos resultados artísticos serem aqui ou ali, mais grandiosos ou modestos:

“O Corte” de Costa Gravas

“A Agenda” e "Recursos Humanos" de Laurent Cantet

“O Que Você Faria?” de Marcelo Piñeyro
"Segundas ao Sol" de Fernando León de Aranoa
"O Príncipe" de Ugo Giorgetti

“Mundo Livre” de Ken Loach

“Nação Fast Food” de Richard Linklater

“Fahrenheit 11 de Setembro e "Sicko- $O$ Saúde” de Michael Moore

“Edukators” de Hans Weingartner

“A Questão Humana” de Nicolas Klotz

“Cronicamente Inviável” e “Quanto Vale ou é Por Quilo? de Sérgio Bianchi

“Memória do Saqueio” e “A Dignidade dos Ninguéns” de Fernando Solanas

“Rosetta” e “O Silêncio de Lorna” de Jean-Pierre e Luc Dardenne

Etc.

Aos que acendendo incenso no altar da Arte, surfaram num ideal simplesmente esteticista, torcendo o nariz para muitos destes filmes, o que dizer? Apenas isto: uma lástima!

De minha parte fica aqui registrado um poema contundente sobre como as relações humanas podem ser deterioradas pelo poder corrosivo do dinheiro.

Meu Amor Burguês


Amor me entenda de uma vez!
Chega de pequenez, meu amor burguês,
Chega de ser argentário,
Chega de fazer gente de otário,
Chega de mesquinhez nos salários,
Que você paga aos seus funcionários!
Chega de vender dificuldades facilmente,
Pra ganhar facilidades brutalmente!

Meu amor, como você mente
Pra todo esse contingente
De pessoas extremamente carentes!
Meu amor, eu não agüento mais suas falcatruas!
Eu agora decidi! Vou embora!
Já está mais do que na hora!
Prefiro mendigar pelas ruas
Do que depender da sua grana suja.
Eu vou ser bóia-fria ou acompanhante de falsos cegos
Mas com você meu querido burguês,
Eu não dou mais uma de sonsa coruja
Que tudo vê, sabe, desvenda as suas tramóias e se cala!
Meu amor enquanto eu não lhe ver pelas costas eu não sossego!
Agora é hora de lavar roupa suja...
Eu vou deixar você sozinho na sala,
Com seu jazz, seus CDs pirateados, sua televisão de tela larga.
Você vai me pagar por tudo que me fez!
Eu vou lhe deixar com a boca bem amarga!
Estou vagabundo do seu imundo mundo
Mas agora acabou mesmo!
Não tolero nem mais seus cabelos encaracolados,
Pelos quais tanto me encantei.
Não tem mais, chega de corpos colados!
Minha vontade é cortar meu pau que tanto você gosta
E jogar no seu rosto de fora da lei!
Eu vou dar um jeito na minha sina de viver nas suas costas,
Às suas custas, o que me é tão penoso.
Não quero ver mais seus amigos rangendo dentes pra mim,
Pois para eles eu sou apenas um carrapato
Que passeia pelos seus pelos feitos capim.
Eu vou tirar essa pedra do meu sapato
E não adianta mais me chamar de “meu gostoso”...
Eu vou é cuspir na sua comida, ganhar carta de alforria.
Mas não lhe pagarei nenhum tostão.
Já chega os danos causados ao meu coração.
Não sou mais covarde, adquiri valentia.
Minha alma vendida pra você, seu diabo,
Já está toda derramada, espatifada
Pelo chão onde pisamos,
Onde muitas vezes nos amamos,
Onde eu louco, ejaculava em golfadas,
Que você adorava e agora meu bem chega!
Mais nada! Mais nada! Mais nada!
Eu vou sair porta afora pra ganhar a vida,
Mesmo que seja um pouco desonestamente,
Eu só quero estar longe, bem longe,
Da sua carranca de urubu-rei usurário demente.
Eu quero distância de seus anéis de ouro falso com que me chantageia
Não adianta mais mostrar sua bunda branca,
Eu quero ver com meus próprios olhos as luzes dos dias.
Desta casa, eu vou abrir todas as trancas
E vou buscar em mim perdidas alegrias.
Estou saindo! Tchau! Cuide bem do siamês Pedrinho!
Vou sentir bastantes saudades do carinho do bichinho
E vou ter muita pena dele contigo sozinho.
Ainda bem que ele não entende
Como você é um cara de pau!
E não adianta fazer pra mim essa cara de lobo mau.
Fique aí com seus patuás, seus anjinhos, seus duendes.
Agora vou indo mesmo!
Sem dó nem piedade!
Você que fique na saudade!
Você que imagine meu corpo nu se ensaboando no banheiro,
Eu quero, cara, distância do seu sórdido dinheiro!
E não venha com capangas pra impedir minha fuga
Desse sanatório& prisão&Alcatraz,
Gerenciada por um velhaco capataz.
Meu velho, você não sabe o bem
Que minha decisão agora me faz.
Não tem mais meu bem, meu bem.
Cansei do seu cheiro, seu trapaceiro de marca maior.
Eu quero mesmo que você fique na pior...
E chega! Já vou! Acabou!
Graças a Deus, Amém!
Conte tudo pra Esmeralda também...
Coitada, ela que cuide das suas manias,
Ela que dê leitinho pra sua boca sórdida!
Eu quero derramar todo pus dessa nossa ferida.
Eu quero agora percorrer ruas e avenidas
Cantarolando sobre essa benigna despedida
E não adianta! Pode se ajoelhar,
Que o que você quer eu não vou mais dar...
E nem vou lhe mandar tomar no cu,
Porque sei que você gosta,
Seu calhorda de bosta!
Cara, tomara que um dia lhe peguem!
Só na cadeia você vai me ver!
Eu do lado de fora rindo,
Você trancado, detrás das grades, também sorrindo,
Mas o riso louco que oculta o desespero!
Tchau! Estou indo..indo...indo
Graças a Deus! Graças a Deus!
Adeus..adeus..adeus..adeus!
Fique com seus fraques, suas gravatas italianas
Suas frescurites, suas varizes, seus exageros
Engane os tolos de que você é um cara bacana...
Deite no tapete atrás da porta cinza
Coma comida sem meu querido tempero,
Que eu dissimulado, fazia no fundo pra lhe extorquir
Seu coroa safado, aloprado e ranzinza.
Cansei de ser seu cúmplice, eu vou mesmo é fugir..
Você que fique meu falecido cupincha
Toda noite, toda noite mesmo, só e sem dormir!
Você com sua adiantada idade,
Com sua onipresente maldade,
Não vale uma unha encravada
De meu querido e saudoso Garrincha!
Só esqueci de deixar no banheiro,
Um escrito na toalha assim:”Azar seu!”
Você cavou sua cova, você me perdeu,
Estou indo, fugindo....fugindo...
Deste paraíso do demônio que você construiu pra nós
E eu agora faço questão de ser mordaz, atroz
E antes que eu me esqueça,
Antes que de sua frente eu desapareça,
Você é um executivo-marqueteiro-vendedor-de-falsas-verdades...
Fique aí só, com seu orgulho e suas vaidades....

Tchau!...Tchau!...Tchau!..Tchau
Pode FICAR que a casa é SUA,
Que eu vou ganhar a rua
E mesmo com essa realidade crua,
Vou recuperar, quem sabe?
Minha perdida dignidade,
Nas luzes que ainda cintilam na maravilhosa cidade...

Nelson Rodrigues de Souza

Imagens do Inconsciente Freudiano, Coletivo e do Imaginário Coletivo


Para Federico Fellini, Freud é melhor escritor que Carl Yung, mas a teoria do inconsciente coletivo e da sincronicidade yunguinana o seduziam mais. Quando estava para rodar “E La Nave Va” não havia decidido ainda quem faria o papel de Orlando. Já estava em conversações com o ator Freddie Jones e o levava para o aeroporto sem ter ainda realmente se decidido. Olhou para trás e viu um cartaz enorme com o nome Orlando pelo vidro do carro num painel aos fundos, o que compunha uma sintonia forte com o ator inglês que estava sentado no banco traseiro. Não teve mais dúvidas: havia encontrado o ator que procurava para o papel.

Muitas imagens fellinianas nos tocam especialmente porque parecem fazer parte de um inconsciente coletivo yunguiano que o artista capta e constrói com grande talento e vigor cinematográfico de forma que não mais as esquecemos. Passam a nos impregnar a memória sem muita dificuldade. É com se ele desse forma à aquilo que já estava em nós e só então vendo seus filmes nos damos conta. Não é à toa que Fellini declarou que se o exclui Cinema não existisse, ele o teria inventado, sem nenhum exagero, sem falta modéstia.

O destaque até aqui dado a aspectos yunguianos na obra de Fellini não exclui a noção de que encontramos muitos aspectos do inconsciente freudiano em sua obra. Basta lembrarmos-nos das inquietações existenciais de Guido Anselmi (Marcelo Mastroianni) e suas lembranças que surgem ao sabor do poder do inconsciente em “Fellini 8 e Meio”, culminando no inesquecível carrossel com pessoas que passaram pela vida do personagem cineasta em crise criativa, um dos grandes momentos do Cinema.

De minha parte, sem querer ficar em cima do muro, tenho apreço tanto pelo inconsciente freudiano como pelo inconsciente coletivo de Yung. Nas minhas vivências sinto a força de ambas as componentes. Os sonhos recorrentes que tenho pagam grande tributo às descobertas de Freud, alguns deles decorrentes de traumas recalcados. Encontros mágicos na minha vida, não necessariamente positivos e alegres (com certeza, exemplares) atestam o valor das descobertas de Yung. Lacan se referia ao imaginário coletivo e também não podemos descartá-lo. Muitas coisas do mundo também pertencem a esta ordem e não estou excluído delas. Se pensarmos bem, por exemplo, toda esperança que estamos depositando numa virada histórica mundial com Barack Obama é da ordem do imaginário coletivo, fruto de desejo, que pode não ser saciado.

O que não se pode fazer é agir como se estivéssemos em um campeonato esportivo em que um deles certamente venceria. Por que não podemos aceitar em nossas vidas manifestações destas três ordens, dentre outras, que se completam, se confundem?

Vamos dar um exemplo: estou vencendo minha tendência ao sedentarismo e voltei a dar caminhadas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Lidando com certo mau-humor fui caminhando com passos apressados. Encontrei outro dia os habituas passantes, corredores e ciclistas. Mas o que me marcou mesmo e para sempre foi uma pessoa de corpo amofinado confinada a uma acanhada cadeira de rodas, parada e dormindo tranquilamente numa forma ébria na pequena pista, no meio do caminho. Como chegou ela ali? Quem a abandonou? Por quê? Até que ponto a insensibilidade humana e o descaso com as pessoas podem chegar? Até quando seremos aturdidos pela miséria humana? Existe “choque de ordem” possível, tão em moda no Rio de Janeiro de hoje?

Todas estas questões assomaram de repente na minha mente. Mas este encontro mágico marcou-me profundamente. Como posso eu ter preguiça de dar minhas caminhadas se há pessoas nestas condições neste mundo? Foi Deus que pôs esta pessoa no meu caminho para ressaltar minha fraqueza e me estimular a fazer exercícios? Meu inconsciente culpado está acreditando que Deus pôs esta pessoa no meu caminho? Qual o papel no nosso imaginário, de pessoas sem problemas motores com eu, quando se depara com pessoas com grandes dificuldades?

Como conseguir dar uma resposta definitiva? No fundo não descarto nenhuma delas. São tantos os sonhos intensamente freudianos, os encontros mágicos de sincronicidade yunguiana que tenho vivenciado, as imaginações perigosas e/ou deliciosas que já nem quero pensar muito sobre eles e sim continuar vivendo, sem perder a noção de magia do mundo, da força do nosso inconsciente profundo nem do poder das nossas construções imaginárias em que o inconsciente se estrutura como linguagem, conforme prega Lacan. Quem leu com atenção “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa sabe da força que a linguagem de Riobaldo revela e como expressa seu mundo interior e suas inquietações. Mas este Sertão que também é a nossa alma, também aponta para pactos com o divino, revelando o que pode haver de sagrado nas miudezas.

Hoje tendo a acreditar mais numa visão holística do mundo e tenho mais afinidades com quem assim também pensa. Claro que não sou prepotente para descartar outras vivências e convívios. Mas as minhas experiências na vida (e aqui se inclui também as que as artes me proporcionaram) me conduziram a acreditar que tudo realmente tem a ver com tudo e não se pode segmentar as coisas sem empobrecimento da vida.

No caso do Cinema Brasileiro não podemos esquecer que o mesmo cineasta, Leon Hirschman, que nos trouxe obras-primas de forte visão política e social (“marxista”), sem detrimento do intimismo, como “São Bernardo” e “Eles Não Usam Black-Tie”, foi um daqueles que mais foi aberto aos mistérios do mundo ao realizar o essencial “Imagens do Inconsciente” que aborda as obras e as histórias de pacientes da Dra. Nise da Silveira, aplicada discípula de Yung, no Museu do Inconsciente.Uma das últimas imagens que Leon construiu no Cinema foi a da mitológica “barca do sol” pintada por um dos internos. Parecia uma premonição da morte que esperava o diretor, sendo conduzido à eternidade.

Ingmar Bergman com sua obra imensa e poderosa levou a paroxismos os questionamentos sobre o sentido da vida, da morte, da felicidade escorregadia, a Metafísica, a existência ou não e o silêncio de Deus, aprofundando também como um dos maiores perscrutadores da alma humana, os tortuosos caminhos da dor, do amor e ódio que perpassam as relações, sejam conjugais, familiares e sociais. No entanto este imenso cineasta afirmou que tinha no melhor sentido muita inveja de Andrei Tarkovski, pois não saberia jamais construir imagens como a que este místico russo construiu em suas obras, sendo para mim uma das mais potentes a chuva que ocorre só dentro da dacha quando o filho astronauta se ajoelha diante do pai no final de “Solaris”, num ato de extrema humildade quase como se estivesse diante de Deus.

Fellini dizia que o homem não é apenas um ser social, psicológico e econômico. Era também divino. Comungo muito mais com esta abertura de possibilidades do que com o vazio cinzento de um Samuel Becket que nos mostra eternamente esperando um Godot que nunca chega, com um humor hiper-ácido. Godot já chegou sim. Basta olharmos para dentro de nós profundamente e estarmos atentos ao que ocorre ao nosso redor, para o bem ou para o mal ou ambos imbricados.

Gostaria de rechear minhas argumentações com mais elementos mágicos vivenciados, mas por enquanto simplesmente atesto que os vivi. Tenho a superstição de que se falar muito deles, eles me trairão. Verdade? Mais um fruto do inconsciente e suas culpas? Mais um fruto da imaginação?

É melhor parar por aqui.

Nelson Rodrigues de Souza

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Choro do Pai- Um Conto Semi-Autobiográfico Com as Mentiras Sinceras da Ficção




Por que "Pai Patrão" dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani é "um dos filmes da minha vida". Leia o conto adiante semi-autobiográfico com as mentiras sinceras da ficção e entenda o porquê. Se não viu o filme, o que está esperando? É umas das obras incontornáveis da História do Cinema.


Nelson




O Choro do Pai

A rigor nem o pai de Sérgio sabia por que o estava reprimindo, nem o filho sabia o porquê estava sendo reprimido. Mas o fato é que estava sendo reprimido mesmo. O prazer com que viajava de trem, junto com seu amigo Rodrigo, condução que saia de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, para a capital, para pesquisarem documentos antigos no Arquivo do Estado para o professor de História, era evidente demais para que seu pai não se incomodasse. O operário Onofre estranhava as inquietações intelectuais do filho que tinha tantos diálogos com esse amigo e o professor e quase nenhum com ele. Sérgio nunca apresentara nenhuma namorada em casa nem conversara, em família, sobre que carreira gostaria de seguir, nem lhe era perguntado. A afetividade e a profissão representavam uma intrincada charada quase que metafísica que o devorava. O pai apenas intuía o perigo de ter um filho com o que se rotulava tendências homossexuais e, ainda como se não bastasse, interessado em questões de teor esquerdizante, insuflado que poderia estar sendo por seu professor Horácio, provável comunista que queria os dois rapazes de 16 anos como discípulos.

As idas semanais de Sérgio e Rodrigo a São Paulo possibilitavam evasões e descobertas inacessíveis no interior. Na Rua Augusta, próxima ao arquivo, o Cine Marachá exibia títulos intrigantes: “Um Dia, Um Gato”, “Elvira Madigan”, “Blow-Up-Depois Daquele Beijo”, “Matou a Família e Foi ao Cinema”, etc. Que universo particular seria esse? Que cultos estariam sendo celebrados neste chamado Cinema de Arte? Quem sabe ali estaria escondida alguma faceta da verdade, mais explícita do que ofereciam as páginas de um livro, algo que se opusesse à mentira que Sérgio enxergava em tudo e quase todos.

Numa das vezes em que entrou no Marachá, um quarentão sentou ao seu lado, em uma sessão de poucos espectadores. O susto dos dois foi enorme ao se reconhecerem: o professor Horácio e ele, um dos seus auxiliares. Sérgio estava matando um tempo que deveria estar empregando na pesquisa e cópia de documentos antigos. Depois de certo constrangimento, cumprimentaram-se, assistiram a “Os Inconfidentes” em silêncio, trocaram impressões sobre o que viram (o rapaz quis entender melhor por que crianças aplaudiam o enforcamento de Tiradentes no final) e trataram logo de discutir o andamento das pesquisas.

Em seus momentos de claustrofóbica solidão Sérgio enxergava o bicho homem como uma ilha rodeada de mentiras por todos os lados. As idas para São Paulo repercutiam-lhe como uma salvífica navegação. O amigo subia no trem na Estação de Brás Cubas no quarto vagão. A emoção de Sérgio era forte ao vê-lo entrar nesse vagão de acordo com o combinado e encontrar o amigo com o qual comentava as últimas leituras, amigo que já tinha tido a coragem de enfrentar o tijolaço “A Montanha Mágica”, provocando-lhe uma inveja doce. Perto do companheiro sentia-se forte e protegido para enfrentar a sujeira, a miséria exposta, a ameaça latente de roubos no trem e as paradas enervantes e demoradas entre estações, quando se confrontavam com paisagens hostis, vistas muitas vezes através dos buracos nos vidros quebrados. Sérgio pensava na ironia de que havia quem lhes invejasse a condição de usuários de trens precários e lhes lançasse pedras.

Ao chegar à Estação Roosevelt, no Brás, Sérgio observava o frisson especial dos banheiros públicos, com homens expondo ostensivamente seus pênis em ereção. Faltava-lhe coragem para conversar mais com o amigo Rodrigo a respeito do que aqueles atentados ao pudor representavam. Sérgio enxergava São Paulo e seus oito milhões de habitantes de então, aglomerada solidão, com olhos próximos aos de Fellini chegando de Rimini à sua mítica Roma. A fantasia, graças a Deus, era livre, não lhe custava nada. São Paulo e suas labirínticas possibilidades o deixavam atordoado, num universal e particularíssimo frenesi, ainda que eivado de muitas ingenuidades de quem morava no interior.

O pai só ouvia fragmentos de conversas dos dois amigos. À sua chegada eles se calavam ou mudavam de assunto. Onofre atingiu o seu frágil limite de tolerância, cedendo ao seu temperamento de trabalhador enérgico, sujeito a chuvas e trovoadas que não poderiam cair na linha de montagem em que trabalhava com seus superiores e sim em casa e tomou uma atitude severa: Sérgio não mais poderia viajar a São Paulo (afinal o professor lhe pagava uma ninharia) nem encontrar Rodrigo, esse desocupado que devia estar metendo bobagens em sua cabeça. Deu-lhe o dinheiro com o qual deveria aparecer em casa com o cabelo cortado e avisou-lhe que a mamata iria acabar: Sérgio deveria arrumar um emprego, mas uma coisa séria. O pai lembrou-lhe, como gostava de repetir que “aqui nesta casa não há um prego que não seja meu!” e era verdade. Assim acrescentou: “não quero ter um filho vagabundo!” Passou-lhe uma dica que soou como um ultimatum: na fábrica de tratores Valmet, onde trabalhava, estavam precisando de controladores de qualidade. Aqueles dois boas-vidas já tinham ganhado o segundo grau dos pais, escolaridade que estava no último mês letivo. Agora que tratassem de dar um jeito na vida. Um filho dele não seria como o cabeludo Rodrigo. Se os pais deste não tinham olhos, ele tinha.

Sérgio caiu em si, com infinita amargura, de como ainda era muito dependente economicamente de sua família. A suprema vontade era dar um beijo de despedida na mãe, um tchau para os irmãos e um adeus definitivo para o pai. Mas ir para onde? Não tinha maiores intimidades com os tios. Em São Paulo conhecia apenas uma tia neurastênica e inconvivível. Amigo mesmo só Rodrigo, mas sobre os dois pairava uma aura de grande afeto e afinidades mesclada com um estranhamento que se avizinhava muitas vezes de uma forte agressividade. Só anos depois Sérgio entendeu melhor o contexto nada original de amor e ódio que permeava a relação. Ao contar ao amigo que estavam proibidos de se encontrar, Rodrigo caiu numa gargalhada que disfarçava o forte nervosismo, mas logo se apaziguou com uma serenidade que beirava a frieza e acrescentou que era hora mesmo de largarem o estágio. Considerava os papéis velhos que copiavam muito entediantes (só o professor apreendia-lhes o sentido), estava pensando seriamente em procurar trabalho na fábrica de celulose de Mogi. Sérgio não acreditou que ele estivesse sendo sincero, quis sacudi-lo: ”mas e as leituras todas, para onde vão?” O amigo construiu uma máscara facial de impassibilidade, sugerindo que a pergunta era tola. Os colegas no pátio da escola aproximaram-se num turbilhão e Rodrigo tratou logo de comentar as próximas partidas de futebol que teriam, que seriam as últimas.

Sérgio chegou a procurar o professor Horácio. Sentiu vontade de pedir-lhe ajuda, mas encontrou-o nervoso, estressado, repetindo que precisaria viajar por uns tempos. Já havia colhido muitos documentos e um período longe da cidade permitiria na volta uma análise mais produtiva. Sua mulher apresentava um ar ainda mais indisfarçavelmente sombrio, cuidando com impaciência de suas crianças. No olhar dela Rodrigo captou um ressentimento inexplicável, que lhe era dirigido. A impressão que ela lhe passava era que ele, um simples aluno, era responsável por toda a angústia do professor. Em cima do sofá, um jornal aberto deixava exposta a manchete: “Polícia aperta o cerco a terroristas”. Sérgio sentiu-se diante de um discurso de meias verdades, ensaiou perguntas adicionais, mas conteve-se. Afinal também passara ao professor suas meias-verdades, explicando-lhe o abandono do estágio e sua guerra-fria com o pai com economia excessiva. Será que o professor tinha alguma coisa a ver com os cartazes de PROCURA-SE colados nos postes da cidade, deixando à mostra rostos de pessoas ditas terroristas? Afinal o que era um terrorista? Alguém como o seu pai? Afinal ele estava sentindo o mais profundo terror em casa e a única defesa que vislumbrava era uma greve do silêncio.

Se antes já conversava pouco com o pai, sem afeto que o movesse a chamá-lo de papai, agora não lhe dirigia mais a palavra. O pai entendeu o jogo proposto e também evitava qualquer pergunta, até mesmo doméstica. Tinha os outros filhos para as respostas que queria. Se o filho era orgulhoso, ele era mais. E não seria o enigmático professor que ajudaria o abortado discípulo a resolver o impasse.

Na batalha psicológica que se travou entre pai e filho, a mãe Carmem procurou não tomar partido, até que um dia exasperou-se com a situação e conclamou o filho a buscar com mais afinco um trabalho. O rapaz havia ganhado vários prêmios no ginásio e colegial, mostrados periodicamente com orgulho à vizinhança. Sabendo do valor que a mãe dava aos diplomas de honra ao mérito, dirigiu-se ao seu quarto abriu gavetas do guarda-roupa, pegou uns papéis e rasgou-os diante dela na cozinha. Carmem deixou cair a faca e o tomate no chão, sentou-se trêmula e começou a chorar. O filho percebeu que o pranto da mãe desta vez era de uma dor mais profunda e tratou de desfazer logo sua maldade. Os papeis que rasgara eram outros; os diplomas continuavam intactos.

O filho voltou às suas leituras compulsivas de livros que pegava na Biblioteca Municipal, a mãe a seus afazeres. O almoço foi silencioso. Na mente de Sérgio assomava o que acabara de ler em “O Velho e o Mar”: Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado... Mas afinal o que teria levado Ernest Hemingway ao suicídio? ... A idéia de um trabalho na fábrica, plantada pelos pais, o agoniava. Imagens de um Carlitos aloprado, compulsivamente apertando botões da roupa das mulheres como se fossem parafusos, o acometiam. Tinha vontade de estrangular de vez essa plantinha tenra que queriam regar para ele. Mas teve de engolir, inteirinho, “Um Copo de Cólera” que gostaria de despejar sobre essa Lavoura Arcaica familiar.

Sérgio intuiu que a noite em que se daria a finalíssima do Festival da Record com a consagração de “Ponteio”, “Domingo no Parque”, “Alegria Alegria” e “Roda-Viva” seria uma noite memorável. O pai estava imperturbável em seu desejo de assistir um programa humorístico em outro canal, como fazia toda semana. O filho sentiu a maior vontade de pedir-lhe a mudança de canal. Não teve coragem. Saiu de casa sem dar satisfações e foi ter a uma vizinha, fazendo uma campanha para que ela sintonizasse a Record naquela noite que prometia ser inesquecível e foi. Havia sentido antes o impulso de ir ao distrito perto onde morava Rodrigo, mas andava chateado com piadas que o amigo fazia sobre ele quando em grupo, junto aos colegas da escola, algo bem distante do carinho predominante que mostrava por ele quando estavam a sós. A imagem de Rodrigo junto a amigos, debochando do perna-de-pau que ele se mostrava no futebol o perseguia e o inspirava a uma vingança que não tomava forma clara. Na imagem distante e tão próxima de Caetano Veloso sentiu um modo especial e delicado de ser masculino no mundo que o amigo esboçara, mas traíra. Sérgio sentia-se na vida como Caetano, “caminhando contra o vento, sem lenço sem documento”. Estava completamente só no subúrbio: não tinha modelos positivos. Mas agora, depois dessa noite luminosa, era possível sim sentir Alegria, Alegria. Estava ali a expressão do porvir; vislumbrava ali o requinte “da dor e delicia de ser o que era.” Que só mais tarde se clarearia.

No dia seguinte o pai esboçou o desejo de perguntar aonde o filho tinha ido. Incomodava-o a certeza de que ele havia procurado aquele almofadinha. Sérgio, sentindo a pergunta no ar, teve vontade de responder que fora para um lugar do qual nunca mais voltaria: estava definitivamente fisgado por um anzol, um objeto não identificado. Abraçara o dorso de um tigre galopante e nunca mais desceria nem que quisesse. Sua única saída era encarar de frente a vertigem, seguir adiante com a coragem, apesar do medo.

Numa noite ao sair do quarto para a cozinha, percebeu que falavam dele na sala. O irmão mais velho argumentava que o que faltava no problemático caçula era fazer muitos exercícios físicos, de forma que encarasse o trabalho com mais coragem. O irmão do meio alegou que tentava conversar, mas tratava-se de um bicho arredio e egoísta. Sérgio aborreceu-se com os comentários, foi para o quarto e encostou a porta com força. Queria que soubessem que esteve ouvindo tudo. Carmem foi até o quarto, apagou a luz e disse enérgica, como outras vezes em que ele estava lendo: “Acorde cedo! Apague a luz que nós não somos sócios da Light!” O filho cobriu-se todo com o lençol e tomou-se de uma raiva que lhe contorceu o corpo feito febre.

Depois de mais três meses de greve de silêncio, completando seis meses depois dos desentendimentos e emoções gravadas na alma como se marca gado, que foram as proibições do pai, enfim quando já perfazia meio ano de orgulhos calibrados cotidianamente (o pai com seus programas de TV que o filho desprezava; a mãe com um olho no tricô, outro na novela; os irmãos passeando com suas namoradas; Sandro agarrado com seus livros no quarto, com algodões nos ouvidos para que o som irritante da TV não o desconcentrasse), a casa foi sacudida pela noticia da morte da avó paterna Elza.

Ao aproximar-se do quarto do pai, Sérgio vislumbrou-o chorar pela primeira vez. O choro de inicio tímido tornou-se transbordante. Observou-o a distância com vontade de abraçá-lo, consolá-lo, mas conteve-se. Precisava fruir o belo horrível daquele quadro. Uma estranha satisfação ao constatar que o pai não tinha 100% de ferro na alma, mas uma alquimia de elementos também delicados. À noite do dia seguinte, depois do enterro, quando todos viam televisão, com a cortina bem fechada, para que os vizinhos não comentassem a quebra de luto naquela família, o filho voltou a dirigir palavras ao pai, com certa emoção mesclada de cálculos, quase que inconscientemente estratégicos, até que o tigre o levasse quase que definitivamente para longe da província, por sua conta e risco, alegria,alegria.

Quase... porque voltava a ela nos seus sonhos, pesadelos, escritos, etc. como um ensaio permanente do episódio do filho pródigo.Um retorno que agora é irremediavelmente metafórico ad eternitatus dado que, depois de anos dando volta ao mundo pela Marinha onde se alistara, desligou-se, passou a viver no Rio de Janeiro de traduções e aulas de inglês que o namorado Leandro arrumou-lhe e só voltou a Mogi das Cruzes para o enterro do pai, quando derramou lágrimas bem tímidas, imperceptíveis sob os óculos escuros, que ameaçaram se tornar também transbordantes, mas se calaram para sempre, amém. Para sempre?

Terminando o enterro, jantou com a mãe, os irmãos, as cunhadas que conhecera pela manhã, os sobrinhos e sentiu mais que vontade, uma enorme curiosidade de sair para descobrir o que acontecera com Rodrigo, mas lembrando-se que Leandro estava à solta no Rio decidiu voltar para seu apartamento na cidade que o acolhera, viajando naquela mesma noite sob os protestos tímidos da mãe, que lhe pediu que não demorasse mais tanto a voltar. Não ver mais o amigo de adolescência que soube estar casado, com filhos, era a forma final que a vingança outrora esboçada assumira. Precisava que Mogi das Cruzes, Brás Cubas, o trem não passassem de retratos na parede.. Mas como no poema de Drummond, como doem....

Nelson Rodrigues de Souza.




domingo, 25 de janeiro de 2009

Enfrentando dois fantasmas: o público e a crítica


Conjugando minhas experiências cartesianas, como engenheiro, com especialização em estatística e as mais dionisíacas de estudioso das artes, com ênfase em Cinema, eu ouso afirmar, com pouco medo de errar:

Se você tem idéias e pulsão para expressão em alguma forma artística e consegue os meios de produção para tal, sem nenhuma demora, expresse-se, faça sua obra e não pense de forma alguma nestes dois fantasmas: o público e a crítica”.

Isto não quer dizer que eu despreze o público como receptor de obras de artes nem as reflexões críticas que se fazem sempre necessárias. A questão crucial é que artista, público e crítica têm intenções muitas vezes divergentes e de difícil conciliação. E vamos incluir leitores como também parte desta noção de público.

A História da Arte está coalhada de casos em que o valor de um artista não foi reconhecido pela crítica ou pelo público ou por ambos. Imaginemos se Van Gogh tivesse se deixado abater definitivamente pela sua obscuridade em vida. Não teríamos hoje sua extraordinária obra. Até mesmo Marcel Proust teve o primeiro volume de sua monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” vetado para edição por nada mais nada menos que André Gide! Se todos os editores fossem vetustos neste aspecto como Gide foi, não existiria Proust como hoje o conhecemos. Se o grande cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri tivesse se deixado levar pelas acerbas críticas que recebeu em vida de grande parcela da crítica brasileira, taxado de diluidor tupiniquim de Antonioni e Bergman, não teríamos seu fabuloso legado ao Cinema Brasileiro. E muitos exemplos mais podem ser enfileirados.

Takeshi Kitano levou o Leão de Ouro em Veneza em 1997 com “Hana-bi-Fogos de Artifício”. Depois de mais sucessos como “Zatoichi”(2003), exibiu em 2007 no mesmo festival ”Glória ao Cineasta!”. Chegou-se a conjeturar se Takeshi tinha ficado louco. A profecia de Cazuza, “os fãs de hoje serão os linchadores de amanhã”, havia se cumprido para Takeshi. Numa extraordinária reação Kitano dirigiu o fantástico e genial “Aquiles e a Tartaruga” (2008) visto no Festival do Rio do ano passado. Do que se trata o filme? Misturando com maestria o drama e a comédia temos diante de nós um ser humano com o impulso irrefreável para as artes plásticas desde criança. Depois de intensa repressão na infância e de uma sucessão de encontros mal-sucedidos com um professor e um marchand ele passa a duvidar de sua capacidade artística, mas mantendo sempre o irrefreável impulso de produzir, de uma forma tal que afeta negativamente sua vida e a de sua esposa e filha. Contar mais é estragar o prazer deste grande filme que dado a precariedade de nosso sistema exibidor merece e deve ser baixado pela internet. É uma obra para ser vista e estudada por todos que se interessam por arte, seja de que lado estejam.

Vivemos num mundo em que o clássico muitas vezes é tido como acadêmico, em que se tenta ser moderno a qualquer custo, em que a arte conceitual pós-Duchamp e seus ready-mades virou um campo para muitas mistificações, em que o conteúdo das obras de arte e a relação dela com as pessoas e o mundo passam a ser preteridos por análises de teor simplesmente estético e estruturalista, dentre outras taras. Por outro lado, o público maior muitas vezes está em busca só de entretenimentos fáceis. O que fazer? Expressar-se conforme foi comentado no início do texto.

Com o artista expressando-se de acordo com sua vontade e recursos, os críticos elaborando suas pensatas e o público prestigiando o que quer em diferentes níveis, o mundo da arte segue seu caminho sem que se instale nenhum mal-estar niilista. O que não pode mais acontecer, não tem mais sentido, é alguém deixar de expressar-se seja de que forma for, intimidado por público e/ou crítica.

Tendo eu tanto o impulso criador, o de crítico e sendo público de muitas obras e visto/lido/ouvido coisas inacreditáveis para o bem e para o mal, segundo meu gosto, assumo que este post no fundo é para mim mesmo. Mas tenho certeza que encontrará ecos em muitos leitores. Daí a razão de sua escrita e o fato de não querer guardá-lo só pra mim. Pode até haver aqui uma contradição com o que escrevi no começo, pois o fato é que tive o forte impulso de escrever o post. Os que não concordarem com o conjunto do texto que atirem a primeira pedra pois estou preparado....

Nelson Rodrigues de Souza

sábado, 24 de janeiro de 2009

De Seios e Anseios- Um Conto de Terror


No curso de criação literária que fiz com Victor Giudice (vide post anterior) fomos desafiados a construir um conto de terror. Nunca fui especialmente fascinado pelo gênero. Havia lido pouca coisa neste quesito e até mesmo no Cinema, sempre preferi, o fantástico, o suspense, ao puro terror. Do terror psicológico como “O Bebê de Rosemary” e “O Inquilino” de Roman Polanski, grandes filmes da minha vida, gosto bastante. Mas confesso, sem vergonha, que nunca tive coragem, por enquanto, de encarar os zumbis aclamados de um George Romero por mais que me digam que há fascinantes metáforas políticas ali.

Lembrei-me então que a fome era para quem padece dela, uma grande forma de terror. Assim nasceu o conto adiante, bastante oportuno agora quando se discute o mérito do programa bolsa-família do governo Lula e José Padilha vai exibir o documentário “Garapa” sobre a fome extrema numa mostra paralela do Festival de Berlim este ano. Espero que seja da qualidade do seu extraordinário e fundamental “Ônibus 174”.

Victor leu este conto para todos, visivelmente estarrecido, mas gostou. Cheguei a enviá-lo para a revista Caros Amigos e ele foi recusado, por não suportarem o excesso de ironias. Vamos ver o que acontece com vocês. O conto foi retrabalhado e difere do que foi mostrado a Victor.

O fato central da história é verdadeiro: tirei de uma notícia de jornal. Quando Gabriel Garcia Marquez nos mostra crianças comendo reboco das paredes das casas em “Cem Anos de Solidão”, não é realismo mágico. Isto acontece na América Latina.

Nelson


De seios e anseios

A visita da morte foi marcada para o fim da tarde. Ao meio dia a mãe voltou para o barraco com as mãos vazias de alimentos que trouxessem algum alívio. A competição pelas iguarias do lixão da vizinhança tinha sido acirrada. Voltou para casa apenas com pneus e sapatos velhos, sem valor de troca e de nenhuma ajuda: não conhecia a técnica de cozinhar calçados e comê-los, saboreando inclusive os pregos, ensinada pelo Carlitos de Em Busca do Ouro. A mãe resistiria, provavelmente, até o outro dia; os dois filhos pequenos não: só agüentariam talvez mais seis horas de inanição. Adoentada, não saiu na última quinzena e os mantimentos da cozinha se reduziram a uma caixa de fósforos. Havia encontrado forças para uma odisséia naquela manhã, mas os deuses malditos com que travou contendas foram mais astutos.

A mãe colhia o que plantou, ou melhor, não plantou. Senão, vejamos: nunca se impôs diante do ex-marido que a ameaçava de morte caso exigisse pensão para os filhos; nunca se aventurou a descer do Nordeste para as terras prometidas do Sudeste; nunca se atreveu a juntar-se a manifestantes sem-terra e figurar entre foices e machados de companheiros e as metralhadoras de guardiões da ordem; nunca tomou conhecimento da terceira revolução industrial em curso, não se alistando em aulas de informática; nunca poliu seu analfabetismo hereditário, de forma que fosse bem aceita como empregada em casa de gente-bem; nunca entendeu de que forma o marido poderia ter lhe dado prazeres sem que filhos irrompessem como punição; nunca deu ouvidos aos que lhe sugeriram vencer supostos pruridos judaico-cristãos e vender o que trazia entre as pernas como se vende as mãos e o intelecto ao patrão nosso de cada dia.

Com esse anti-curriculum-vitae aconteceu o inevitável: as crianças não tinham mais forças nem para chorar. A mãe prostrou-se diante delas e resolveu esperar que o destino tecesse delicados anjos de uma inefável sinfonia cósmica. Uma centelha vinda de obscuras regiões a fez envergonhar-se de suas omissões e a moveu a sair em busca de alternativas. Sim, não tinha sido bem sucedida pela manhã, mas afinal aquele campo de batalha não era o único na cidade.

Ao chegar nas proximidades do hospital, reconheceu uma paisagem familiar e regozijou-se: era um território de exploração todo seu. Vasculhou os diversos montes de terra e encontrou apenas seringas, tubos, plásticos e vidros. Já estava quase desistindo quando seus olhos brilharam: um seio estava como que escondido por pequenas folhagens. Agarrou o ouro descoberto com sofreguidão, ergueu-o no ar como se ela fosse um padre com o cálice sagrado na missa e voltou para casa afoita, numa desesperada alegria.

Duas horas antes da morte marcada fez uma boa sopa com o seio, serviu aos rebentos duas porções maiores e ficou com o restinho. Lembrou-se de seus próprios seios a alimentarem os filhos recém-nascidos. Agora era outro seio, anônimo, decepado, que insuflava vida a eles. Emocionou-se ao ver cores surgirem nas faces pálidas das crianças. A epifania, entretanto, foi breve. Logo imaginou o dia seguinte, o que seria? Outra centelha acudiu-lhe. Sim, se havia encontrado um seio por entre os destroços do lixão cirúrgico, por que ali não encontraria outro, o par correspondente, quem sabe? Ou então surpresas de maior vulto...

E assim, tendo ainda uma hora e meia de claridade pela frente, saiu de casa, esbaforida, em direção à sua pessoal maravilha do mundo. Estava tão satisfeita por vislumbrar que tapearia a morte por mais um dia que não quis de forma alguma pensar nos dias seguintes. Seu pensamento se concentrava nos achados que ainda faria naquela tarde. Mas e se outros já tivessem descoberto seu inusitado jardim das delícias? Uma terceira centelha assomou-lhe o espírito, como que advinda de um anjo torto que lhe lembrava como estava sendo gauche na vida, tranqüilizando-a um pouco em sua ansiedade: Mãe sossegue, a vida é isso que você está vendo; hoje come, amanhã não come, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será...

Mas encontrasse o que fosse, não adiantaria: a morte acabou seus trabalhos mais cedo naquela tarde e visitou sua casa no mesmo momento em que ela, ainda que sozinha, quase que surtando, não encontrava nada que se aproveitasse naquele terreno que acabou amaldiçoando com toda a força de suas entranhas.Mas ninguém ouviu seu grito. Ao voltar para casa lembrou-se tarde demais que tinha uma cadelinha. Olhou de início o animal com muita raiva, mas depois se alegrou um pouco: um ser vivo ainda lhe faria companhia. Até quando não sabia. Mas isto não lhe trazia mais nenhuma angústia. Já não estava nem preocupada em dar um enterro digno para os filhos. Simplesmente abraçava o animal sentindo-se quase que vitoriosa. A morte vencera, claro. Mas ela passou a ter a lucidez louca de que tinha feito o que podia. Até riu, nervosamente.


Nelson Rodrigues de Souza

Victor Giudice e o Cinema Brasileiro


Tive o grande privilégio de ser aluno do escritor Victor Giudice (1934-1997) no Estação das Letras dirigido pela incansável e amável Suzana Vargas, num curso de criação literária. Já os conhecia como organizadores das “Rodas de Leitura” do CCBB, um evento notável que se perdeu por desatino e desatenção da diretoria do Centro Cultural.

As “Rodas de Leitura” faziam com que autores das mais variadas falanges lessem uma parte selecionada de suas obras (tive o enorme prazer e emoção de assistir Jorge Amado lendo um trecho de “Tenda dos Milagres”, dentre outros grandes deslumbramentos) sendo que a platéia acompanhava a leitura através de uma cópia do texto. Ao final abria-se espaço para perguntas e debates que eram sempre interessantes e estimulantes. Lamentavelmente esta idéia simples, mas fundamental, de contacto entre escritores dos mais variados estilos e gêneros com o público (sem precisarmos ir à FLIP...) acabou. Merece voltar urgentemente! Toda semana!Como era em seus primórdios.

Foi com bastante proveito que fiz o curso com Giudice e tive o orgulho de vê-lo ler espantado pela sua contundência dois textos meus, mesmo que não os considerasse grandes contos. Um dos maiores contistas que o país já teve, Giudice era bastante conhecido no Rio e pouco citado em São Paulo. Sua obra se passa de modo geral numa mitológica São Cristóvão que já não existe mais. Curiosamente ganhou o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) com o fundamental “Salvador Janta no Lamas”, que recebeu prefácio do crítico Carlos Alberto de Mattos, ressaltando a alta voltagem cinematográfica de todos os contos. Isto acontece com outras obras dele, também essenciais, obras que de um modo brasileiro lembram Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar: “Os Banheiros”, “O Museu Darbot e outros mistérios”, “Necrológio”, “O Sétimo Punhal (esta uma novela), etc.

Victor era bastante crítico dos roteiros do cinema brasileiro. Não suportava a versão tropicalista de “O Alienista” de Nelson Pereira dos Santos, “Azyllo Muito Louco” (“Matou Machado de Assis!”). Um diálogo entre amantes ao telefone de “Faca de Dois Gumes” o incomodava especialmente pelo que considerava uma grossura e inverossimilhança. Ele se referia ao Cinema Brasileiro como o C.B. Chegava ao requinte de destacar uma grande cena de “Proposta Indecente” para mostrar a vulgaridade com que o C.B. a faria. Este lado de Victor eu não gostava e não concordava, pois os defeitos que ele apontava não eram fortes ou nem eram defeitos.

Hoje entendo mais sua birra com o Cinema Brasileiro. Dada a alta voltagem cinematográfica de suas obras, claro que ele deveria ter visto em vida algumas adaptações de trabalhos seus para o cinema, como aconteceu com Rubem Fonseca. O que não ocorreu lamentavelmente. E deveria ainda acontecer!O conto que dá título a “Salvador Janta no Lamas” é puro Roman Polanski em seus grandes ensaios sobre a paranóia, por exemplo. Quem sabe alguns cineastas e produtores descubram o potencial para filmes de suas obras e lhes façam justiça, ainda que póstuma.

Victor era uma criatura humana extraordinária, muito generoso e fazia suas críticas num misto de bom humor e indignação que o tornava único, inconfundível. Para quem quiser saber mais sobre ele mergulhe em suas obras e leia o site http://www.victorgiudice.com/home.html que vale a pena.

Sem entrar no mérito de valores, sempre fiquei intrigado e chateado ao observar que na Folha Ilustrada e no Caderno Mais!, qualquer novidade de Haroldo e Augusto de Campos era ressaltada e eu nunca consegui ler nada sobre Victor naqueles espaços.

Assim não é o só o Cinema Brasileiro que está em dívida com ele, mas a Folha de São Paulo também. Torço para que estas injustiças com um autor tão genial, com vasta erudição (organizava sessões comentadas de Ópera no CCBB, dentre outras atividades) sejam corrigidas.

Em suas aulas Giudice enfatizava a força que a primeira frase deveria ter e que as histórias sempre tinham que ter um momento de transcendência, algo que sempre se observava em suas obras. O conto “O Museu Darbot” merece ser estudado por todos os envolvidos em artes plásticas no Brasil. É de uma ironia devastadora. Sintoniza de forma bem humorada com o trabalho desmistificador necessário que Affonso Romano de Sant'Anna vem fazendo nesta área, questionamentos saudáveis.

Termino este post na esperança de que a obra deste grande mestre seja revalorizada e que eu contribua dentro de meus limites para isto. Como uma provocação a meu querido professor (que teve um fim triste do qual pouparei detalhes aos leitores, só enfatizando que é o retrato do descaso brasileiro com o poder aquisitivo dos idosos neste país.) por gostar muito de “Faca de Dois Gumes” de Murilo Salles, revelo a vocês que no conto “A Música Ruidosa do Medo” enviado num post anterior, que agradou Giudice, eu de uma forma carinhosamente sacana, fiz referência de propósito no desfecho, de uma outra forma, à fala que Victor tanto abominava por achá-la irreal e vulgar ( “vem cá minha putinha”). Eu não achava. Daí meu procedimento antropofágico que ele deve ter percebido e de forma alguma o incomodou pois era de seu temperamento ser bastante sincero. Deve ter rido interiormente.

Ah sim! Kafka é outra das grandes influências de Giudice. À leitura dele pois. Eu ainda me devo a leitura de seu único romance, “Bolero”, o que não fiz, tão encantado estava como leitor atento de seus contos maravilhosos e sempre intrigantes. Puro cinema., grande força literária.Experimentem.

Com sua morte perdi um pai cultural, um ícone que havia encontrado. É uma das grandes perdas de minha vida. Daí a ênfase aqui no culto à sua memória, feito com muitas saudades.
Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cinefilia, Uma Patologia do Colecionador?


Quando fui fazer psicanálise lacaniana pela primeira vez, aturdido pelo governo Collor que ia entrar e por questões também pessoais de ordem profissional, amorosa e religiosa, disse logo que era um cinéfilo. O analista imediatamente falou: “Aqui nada de Glauber Rocha! Tem de ser bem Walt Disney!”. Assim fui me abrindo e perguntei o que era melhor, deitar no divã ou sentar de frente para o analista, como muitos faziam. Como deduzi, deitar no divã era melhor, pois a troca de olhares poderia interferir no discurso dos dois, o que também acontece nos documentários, mesmo aqueles mais complexos e fascinantes como os de Eduardo Coutinho.

Quando minhas sofisticadas incursões cinematográficas estavam sendo cada vez maiores, mas questões pessoais estavam estacionadas ou proteladas, o analista comentou: “o cinema é como uma travessa de arroz doce; comer alguns pratinhos é delicioso, mas comer a travessa inteira enjoa e faz mal.” Nunca mais esqueci esta simples metáfora. Isto não quer dizer que tenha me regenerado totalmente desde então.

Muitos cinéfilos vão ao cinema numa síndrome “A Rosa Púrpura do Cairo”, ou seja, por fuga. Claro que é melhor esta “droga” mais leve (ou menos pesada) do que outras. Afinal angústia contínua leva à depressão e esta continuada leva à demência. Se o cinema com seus dramas, comédias, tragédias, tragicomédias, aventuras, etc....nos tirar desta angústia existencial, ótimo. Mas no fundo acredito que estamos agindo tal e qual Cecília que ao final do filme de Woody Allen, voltando tudo à estaca zero, sem conseguir dar um fim ao seu casamento falido, volta para o cinema para ver o mesmo filme, num final que é quase que de um filme de terror, mesmo com Mia Farrow transitando da melancolia ao sorriso. Nós cinéfilos podemos dizer que somos bem diferentes de Cecília, pois vemos filmes os mais variados, muitos nada água com açúcar, muito pelo contrário. Mas será que somos tão diferentes assim? Tenho receio que não. Desconfio muito de quem diz que viu mais de 200 filmes juntando os festivais do Rio e São Paulo, por exemplo. Será que viram mesmo ou foi apenas uma cascata de imagens que passaram pelos olhos e se constituíram em lenitivos fáceis para questões que não se quer enfrentar?

Assim procuro hoje controlar mais meus impulsos de ir ao cinema. Prefiro conversar por telefone com os amigos, me encontrar com eles, me dar conta de como anda minha vida amorosa e fazer então tudo para não virar um monge no que a isto diz respeito, procurando, tentando ter vida afetiva e/ou sexual. Nada de sublimação com o cinema! Já fiz muito isto em minha vida. Principalmente quando vivi da adolescência para a vida adulta. Sublimação que foi encorpada por estudos pesados de Engenharia. Agora prefiro me voltar à escrita, com todas minhas limitações (algo que sempre me atraiu), ouvir muita música e me dedicar a outras formas de arte, sem me desligar das coisas que acontecem no mundo. Leio três jornais por dia. De jornais televisivos não gosto muito, pois me aturdem com a sem-cerimônia com que passam do trágico, do relevante para o banal e vice-versa. E me dei até ao luxo ultimamente de dar um tempo no cinema e assistir três semanas seguidas, siderado com os ganchos dramáticos, os embates de “A Favorita”, esticando para a minissérie “Maysa-Quando Fala ao Coração”, que vi em boa parte com prazer apesar de todas as limitações tatibitates do texto.

Isto tudo está ficando com cara de receita de bem viver? Pelo amor de Deus! Não é esta minha intenção. Apenas é um relato de como encaro esta questão da cinefilia, o que pode encontrar ecos por aí, com pontos de contacto ou de oposição.

Gosto muito de rever filmes. Muitas vezes descarto novos filmes e revejo alguns que de uma forma ou outra me intrigaram bastante, seja no cinema mesmo ou em DVD. D. H. Lawrence escreveu que era melhor ler poucos livros bem lidos do que ler muitos superficialmente. Se já faço isto em Literatura, passei a adotar este princípio também para o Cinema, dentro de certos limites.

Uma analista lacaniana que tive depois foi mais cruel comigo: “Para que ver tantos filmes assim? O diretor deu o seu recado, está se arriscando... E você que risco está correndo? Mais do mesmo!”.

Por razões que não vou contar aqui por ora, minhas sessões com estas duas pessoas não terminaram bem. Se um casal se desgasta, o mesmo acontece em relações psicanalíticas e estas têm de ter um fim. Meu caso com o analista terminou como um grande filme de Bergman. ”Persona” perde!

Apesar destas rupturas dolorosas, foram duas pessoas que ajudaram a me estruturar, me compreender melhor e me transformaram certamente numa pessoa mais lúcida em sua “loucura particular”. Atualmente estou envolvido em outras terapias. Acredito que minha cota de tributo ao legado de Lacan tenha já terminado.

Não estou aqui recomendando aos leitores cinéfilos que façam psicanálise ou outras terapias, mas apenas desejando que empreguem os conhecimentos adquiridos através dos filmes, das artes em geral e da vivência para observarem mais a si mesmos e aos outros. Nos cinemas durante o ano e nos festivais encontramos muita gente bacana, mas tudo é muito corrido, pois o filme visto tem de ser sobreposto por outro filme ou outro espetáculo e o que poderia ser uma conversa aprazível, generosa e pródiga acaba sendo apenas uma faísca de novidades voláteis e dicas instantâneas.

Para construir meu blog e conseguir dar um tom diferente a ele (o que acredito tenho conseguido) li muitos blogs de cinema, como também os sites eletrônicos da área. Muitos são imperdíveis para o cinéfilo que quer refletir sobre o que viu ou verá. Mas dificilmente conheço pessoas que comentam estes blogs e sites, como também não vejo comentários postados delas. Um dos comentaristas assíduos do Blog do Zanin, mora num local onde filmes comentados pouco chegam. Ele os vê em DVD, quando consegue. Já pessoas privilegiadas que conheço se omitem.

Fui criado numa família que defino como “classe pobre alta” de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Nunca me faltou nada em casa. Mas meu pai era um tanto rígido. Por um bom tempo não me dava dinheiro para as matinês. Não achava que fosse importante. Mas “a gente não quer só comida e água, quer diversão, arte e saída pra qualquer parte”....Cresci vendo outras crianças voltando do cinema e contando filmes que se agigantavam na minha imaginação. Claro que algumas matinês eu peguei. Não tive uma educação tão espartana assim. Mas senti no Nelson adulto compulsivo que ia ao cinema depois que se tornou independente, uma forma de compensar o cinema perdido na infância. Mesmo me dando conta disso, creio que continuei indo bastante ao cinema para provar a mim mesmo que não estava excluído deste mundo que tanto amava e que as carências da infância haviam passado, num jogo que beira o auto-engano, pois no inconsciente não estava havendo esta superação de fato. Hoje controlo mais meus impulsos cinéfilos. Não posso ser escravo da infância depois de um cinqüentenário.

Claro que a paixão pelo cinema também contém fantasias eróticas que clamam por serem satisfeitas. E quem teria o direito de jogar pedras nelas? Quando não estou gostando de um filme, para não me aborrecer indo embora, navego na beleza dos atores e atrizes, mais dos atores que atrizes, evidentemente.

Se estou sendo injusto em detectar aqui certa “patologia do colecionador” que permeia a vida dos cinéfilos, comentem aqui os meus furos. Só espero que num gesto de fuga, após ler esta postagem, vocês não saiam correndo para assistir a um próximo filme...

Nelson Rodrigues de Souza.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Falta transparência em Guantánamo


Em “Caminho para Guantánamo” (Inglaterra/2006) de Michael Winterbottom, profícuo, irregular,versátil e incansável diretor inglês, fomos defrontados com todo horror desta prisão. O filme, que é bom, padece um pouco com o conformismo em criar imagens bastante fortes. Precisava ir além disto. Mas é um documento histórico apreciável.

Leio em O Globo de hoje as primeiras medidas governamentais de Barack Obama. Gostei bastante delas de modo geral, mas uma me desagradou profundamente:

“Determinação do fechamento da prisão de Guantánamo em um ano, mandando suspender os julgamentos por 120 dias”.

Gente, fechamento em um ano? Tinha que ser fechada totalmente imediatamente! Do jeito que está sendo conduzido há margem para queima de arquivos, continuidade de torturas no período de um ano, o que é uma lástima, pois os transgressores canalhas dos direitos humanos direta ou indiretamente têm de ser identificados, detidos e julgados. Ou não?

As medidas de transparência de seu governo são ótimas, mas Obama não teve coragem e força de aplicá-las em Guantánamo...

Nelson Rodrigues de Souza

Essa Mulher, Vera Drake


"Vera Drake (magnificamente interpretada por Imelda Staunton, premiada com a Copa Volpi de melhor atriz em Veneza) pratica o bem sem olhar a quem ou receber qualquer tipo de recompensa financeira.É a imagem da ingenuidade e da bondade vestida em um avental sujo de ovo, fadada a sucumbir sob o peso da truculência das instituições."
Carlos Heli de Almeida –J.B.- Revista Programa, de 3 a 9 de junho de 2005

Essa mulher "de celulóide", que fora do seu trabalho como faxineira, dos cuidados com a mãe já bem velha e a lida com os afazeres domésticos, cuidando do marido e dois filhos, dedica seu tempo restante, sem que a família saiba, durante anos, a fazer abortos clandestinos em mulheres sem a menor condição de arcarem com a responsabilidade de terem filhos (longe dos ricos que compram a cumplicidade de médicos para fazerem esse ato); essa mulher que depois de presa, se entrega totalmente assumindo todas "as culpas" que lhe imputam, deixando um vazio incomensurável na família; essa mulher que era enganada por uma falsa amiga que lhe apresentava mulheres necessitadas de aborto, cobrando sorrateiramente umas libras esterlinas, as quais Vera jamais almejou;....enfim essa mulher (construída esplendidamente pelo diretor Mike Leigh e por Imelda, um personagem já antológico como Cabíria de Giulieta Masina/Fellini, Dora de Fernanda Montenegro/Walter Salles, Adele H. de Isabelle Adjani/Truffaut ,dentre várias) tem uma dignidade que é cada vez mais escassa no mundo de hoje, principalmente, para ficarmos só na Inglaterra, onde Mike concentra a ação de seu filme, quando se compara sua integridade com um poderoso da época em que o filme foi feito como Tony "Atire Primeiro, Pergunte Depois" Blair....

Ainda que em "O Segredo de Vera Drake"(Inglaterra/2004) haja aqui e ali, certo esquematismo ( tornando o filme um tanto previsível e simplificando um pouco uma questão delicada como o aborto, uma decisão de foro íntimo em que ninguém pode legislar negativamente sobre esse direito da mulher, dado que não se impõe fé religiosa a ninguém), ainda que o filme não seja extraordinário, é uma obra obrigatória pois a personagem Vera Drake é uma das criaturas mais comoventes que as telas de cinema já nos mostraram.

A estupefação inicial do marido de Vera e depois sua solidariedade; a rejeição do filho e depois sua aceitação da mãe "delituosa"; o futuro genro que mesmo num Natal tristíssimo, o último antes de Vera ser presa, declara que "este é o melhor Natal que já passei na minha vida" e não está mentindo; o carinho da relação de Vera e seu marido; o semblante atônito de Vera, que está à mesa com familiares comemorando o futuro casamento da filha, ao receber a visita da polícia; a filha tímida que curva ainda mais o corpo depois que se depara com o aflitivo destino da mãe; a revolta da cunhada por não conseguir passar um Natal só, com o marido abastado e que não perdoa Vera por sua "nefasta" atividade; etc., tudo compõe um mosaico de sentimentos que Mike Leigh, generoso, paciente, meticuloso diretor de atores orquestra, algo que faz a grandeza do filme, ainda que este não atinja o status de obra-prima de seu "Segredos e Mentiras".

Pasolini, este artista mais do que libertário (quem duvidar que veja, dentre tantos, o sublime “Teorema”) comprou uma briga feia com as feministas italianas por se mostrar contra o aborto. Para ele que era um homem do sagrado&profano, longe de qualquer ranço democrata cristão, o que odiava, o aborto é conseqüência do fato do ser humano e suas sociedades não discutirem a sexualidade humana em todas as suas manifestações, com toda clareza, sem nenhum pudor e hipocrisia, o que, por exemplo, a Igreja Católica até hoje, ainda impede com todas as suas forças e meios. Para Pasolini em sociedades onde tais discussões se travassem a gravidez indesejada não ocorreria.

A posição de Pasolini é respeitável, mas tem se mostrado utópica. A Igreja Católica com a eleição de Bento XVI, na melhor das hipóteses andou ainda mais para trás, os fundamentalismos religiosos grassam por toda parte e Mike Leigh está coberto de razões em trazer o tema à tona. Seu filme ganhou o Leão de Ouro de Veneza de 2004, mas tinha sido rejeitado no Festival de Cannes do mesmo ano, o que mostra o quanto o tema incomoda e há uma crise de critérios de avaliação.

Com relação à eutanásia, Alejandro Amenábar junto com o estupendo Javier Barden interpretando Ramon Sampedro ( tetraplégico que lutou durante anos para ter o seu direito a uma morte com dignidade, dado que não considerava mais sua vida digna), num nível superior ao de Leigh, com transbordante poesia verbal e visual e uma galeria de personagens fascinantes, também toca num tema espinhoso, que o autoritarismo das sociedades faz com que seres humanos sejam jogados numa encruzilhada, justamente por quererem exercer seu livre-arbítrio. E nunca é demais repetir: ninguém pode impor religiosidade de qualquer seita a ninguém.

Em “Um Assunto de Mulheres”, Claude Chabrol também trata do tema do aborto, mas com um foco bastante diverso de Mike: Isabelle Huppert (mais uma vez com desempenho irretocável ) interpreta uma mulher que tendo seu marido lutando na guerra, se vê obrigada, para sobreviver, a fazer abortos. Isto ela faz com naturalidade, mas sem deixar de carregar certa raiva interna, ao contrário de Vera Drake que sente prazer em ajudar o próximo. A aborteira de Chabrol é presa, condenada à morte e antes do fim, numa das mais impactantes seqüências do Cinema, reza uma Ave Maria negra, trocando bendito fruto por maldito fruto, dentre outras heresias. Chabrol é extremamente fiel à persona da criatura que criou, assim com Leigh ao nos mostrar uma Vera assustada com o que acaba lhe acontecendo mas estóica, firme, uma figura heróica, ao seu modo uma santa profana.

Com iluminação sombria, “O Segredo de Vera Drake”, apesar da solidão, do vazio da família já sem Vera na última cena, é um filme que paradoxalmente ao impasse construído, nos traz luz, muita luz: aquela que irradia dos olhos de Vera ao sentir que está ajudando as pessoas em situações aflitivas. Pode-se contra-argumentar que de boas intenções o inferno está cheio, mas aqui nesse nosso inferno terrestre, de más intenções já estamos muito mais atolados até o pescoço e Deus parece, está esgotado, se cansando do drama de todos nós, como o personagem de “Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues, vivido com maestria por Antônio Fagundes, perfeito ao conjugar enfado, sabedoria, tolerância, impaciência, preguiça e outros sentimentos humanos e divinos contraditórios. Enfim, se de Deus temos especulações, sentimos sua fumaça e deduzimos que há seu fogo, com relação a Vera há uma certeza: é realmente divina.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O "Rosebud" de Cada Um


Quando vi “Cidadão Kane” (EUA/ 1941) com atenção pela primeira vez já tinha visto muitos filmes. Assim o que era revolucionário em termos de inovações formais (a profundidade de campo, os movimentos de câmera ousados, a condensação de vários tempos em uma única seqüência onde se testemunha a deterioração das relações humanas, o documental que se infiltra na ficção, etc...), enfim muitos aspectos inovadores desta obra-prima de Orson Welles eu já tinha visto em outras obras. Claro que sem a mesma potência. Só “O Ano Passado em Marienbad” e “Hiroshima Mon Amour” de Alain Resnais superariam pra mim a grandeza de “Cidadão Kane” com relação à ousadia formal, mas isto não é o que mais me arrebata no filme, obra que revolucionou o cinema e já apareceu em todas as listas mais empenhadas como o melhor filme da História do Cinema. Algo que hoje é questionado. Mas o que não se questiona hoje?

Por que ressalto estas questões? Porque o que mais me impressionou e me tocou em “Cidadão Kane” é o tema da vocação do ser humano, que perpassa o filme o tempo todo e fica mais claro quando descobrimos que o trenó da infância chamado Rosebud, que é queimado, era aquilo de que mais o protagonista Charles Foster Kane tinha nostalgia e saudades. O magnata da imprensa, político fracassado, homem de relações conflituosas com suas mulheres (sendo que com uma delas tentou impor ao mundo uma carreira fake como cantora de ópera), este homem que exerceu muitos poderes, a rigor, era uma pessoa não vocacionada para o poder. Ele foi impelido a buscá-lo. Foram circunstâncias alheias à sua vontade que acabaram mudando e moldando seu destino, ao receber uma herança e o que chamam de boa educação, mas tendo de ficar longe de sua família e de seu trenó....

Este tema da vocação sempre me perseguiu também. Daí minha, nem tão modesta assim, identificação com o drama vivido por Charles Foster Kane. Atualmente este tema é cada vez mais importante e o filme afirma sua grandeza, mesmo que a estética trabalhada não impressione tanto depois de milhares de filmes sonoros que vieram depois.

Por que este tema é atualíssimo? Porque vivemos num mundo e num país em que não há mais escuta para o que deveria ser a vocação de cada ser humano. Poucos acabam fazendo realmente aquilo pelo qual tem paixão. Como ganhar dinheiro se transformou num fim, não num meio, há muita gente por aí que nem questiona mais se a atividade em que está trabalhando, formal ou informal, realmente é aquela que lhe daria mais prazer e felicidade. Por exemplo: o número de pessoas que procuram estudar ciência da computação, num nível menor ou mais elevado, é impressionante. O pior é que muitos estudarão o que não gostam profundamente e o mercado cruel é capaz de não lhes absorver, pois até mesmo esta área está tendendo à saturação.

O Brasil num aspecto (façamos justiça...), depois da eras FHC/Luis Inácio está cada vez mais moderno com certeza....O que encontramos por aí de motoristas de táxi que são advogados, engenheiros, administradores de empresa, arquitetos, etc....é impressionante!....Não é um luxo??? Outro dia olhei para um taxista e nos reconhecemos mutuamente. Ele, bastante sem graça, lembrou que era um dos subgerentes da agência do Itaú com a qual lido e que por questões de salário deficiente tem de fazer uns bicos semanalmente no trânsito para sobreviver, pagando pensão à ex-mulher e ajudando uma mãe com rala aposentadoria. Detalhe: o Itaú que agora comprou o Unibanco faz parte de um dos setores que mais teve ganhos nos últimos anos com a elevada taxa de juros...

Quantos de nós estamos também sofrendo pelo Rosebud perdido? O pior são aqueles que quando se derem conta disto será tarde demais e só lhes restará derrubar o globo de vidro no chão e balbuciar “Rosebud”, como último suspiro, conforme faz o Cidadão Kane.

O “idiota da objetividade”, criação de Nelson Rodrigues, aquela criatura que só acredita piamente nos dogmas da ciência tem sérios motivos para não gostar em parte de “Cidadão Kane” e considerar que a obra tem um sério erro de lógica no roteiro.

Senão vejamos: o filme é todo estruturado nas buscas que um jornalista faz para entender porque Charles teria dito “Rosebud”. Afinal qual o sentido desta palavra? Que força simbólica ela teria? A questão é que vemos numa das seqüencias iniciais Charles na cama derrubando o globo no chão ritualisticamente, espatifando-o e dizendo “Rosebud” sem que haja uma testemunha sequer! Quando a empregada entra no quarto, isto já foi dito...Se ninguém testemunhou o que o protagonista disse no leito de morte, como isto é um motivo de pesquisa para o jornalista?

O crítico Luiz Nazário que levantou esta questão nos dá a chave estética e emocional para compreendermos este “erro de lógica” que escandaliza o personagem rodrigueano: nós espectadores ouvimos o que o Cidadão Kane disse como última palavra e isto é feito de uma forma sensorial tão forte, com o globo contendo a casa de infância, que basta. Somos imediatamente tomados pela magia/energia desta palavra! Assim acreditamos cinematograficamente na busca do jornalista na sua decifração. Que ninguém saberá a resposta sobre o que é Rosebud, só nos espectadores, é mais um dos grandes sortilégios da História do Cinema que o filme traz. Que este mistério resolvido pra nós esteja associado com este tema crucial da condição humana que é a realização de nossas vocações, sem que sejamos levados pela roda-viva “que carrega o destino pra lá”, desprezando nossa “voz ativa que quer no destino mandar” é muito comovente. Assim mais do que todas as inovações estéticas de “Cidadão Kane”, o que mais me desnorteia na obra é esta aflição, esta angústia da vocação perdida, que consumiu a vida de Charles Foster Kane e se bobearmos pode consumir a nossa.

Nelson Rodrigues de Souza

A Música Ruidosa do Medo- Um Conto Inédito


Ficar em casa sábado à noite, ouvindo música ao sabor das afinidades eletivas, é o paraíso e, no entanto, Marcelo Camargo não resistiu à idéia de sair, em busca de acasos felizes. A boate em Copacabana que freqüentava certamente o aturdia com o bate-estaca incessante de impiedosos DJs. A fantasia renovada de um imperdível grande encontro o movia, apesar de a memória reter várias noites perdidas, em que nem havia sido contagiado pelo som pop e caído na dança sob os estroboscópicos refletores, nem vencera o jogo eterno reinante de caras e bocas, em busca de um obscuro objeto do desejo, vislumbrado, a rigor, apenas nos filmes apoiados no glamour de astros e estrelas. Um desafio adicional se impunha: resistir ao canto de sereias fáceis capazes de colocar soníferos em sua bebida, o que otimizaria possíveis pilhagens a domicilio, dentre outras perversidades.

Marcelo entrou no 212 na Praia do Flamengo com destino ao ponto final em Copacabana, escolheu um lugar mais asseado que não lhe prejudicasse os cuidados que tivera ao vestir-se e evitou lamentar a falta que o carro roubado lhe fazia. Era 23:30 e a condução não estava cheia. A expectativa de uma longa noite de aventuras o animava a vencer o desconforto. Quando dois policiais entraram no ônibus, vencido o Túnel Novo, Marcelo quase se arrependeu de ter sido pão-duro e não ter pegado um táxi. Lembrou-se das economias que fazia para completar o que o seguro lhe pagou, imaginou-se dentro de um carro zerinho e acalmou-se.

Quando o 212 chegou à Rua Raul Pompéia, próxima ao ponto final e da boate, os guardas perceberam um assalto no ônibus em frente. “Motorista, segue este ônibus!” – ordenou um deles. Os oito passageiros deitaram no chão, atrás dos bancos. A rádio-patrulha improvisada passou a perseguir o veículo; o motorista dividiu-se entre o terror e o orgulho pela missão; os guardas, de armas em punho, ajoelhados na frente do ônibus, miraram assaltantes que se confundiam com usuários. Na cabeça dos afoitos patrulheiros assomaram imagens de Velocidade Máxima 1, Máquina Mortífera, Robocop e O Exterminador do Futuro 1 e 2, Duro de Matar 1, 2 , 3 , Rambo 1, 2, 3 e 4, Desejo de Matar 1, 2, 3, 4 e 5... Mas as emoções da vida real os faziam confundir as façanhas de Keanu Reaves, Mel Gibson, Bruce Willis, Stallone, Schwarzeneggger e Charles Bronson. Agora não importava os mestres, importava saber aplicar as lições aprendidas através de histórias contadas num ritmo eficiente e vertiginoso. Os passageiros, figurantes involuntários, conformados com o risco e a fragilidade das divisórias-anteparo, rezaram com angustiada devoção o que suas igrejas lhes ensinaram e fizeram uma rápida e urgente contabilidade para saberem se haviam pagado todas as prestações para um cantinho junto a Deus.

Marcelo Camargo, sentindo nojo da roupa amassada e suja, descobrindo-se sem certeza de ser aceito do lado de lá (Dante reservou-lhe um dos círculos mais profundos do Inferno), preferindo morrer, se for o caso, nos braços de um anjo exterminador com seus ardis do que num vulgar chão imundo de um sórdido veículo, levantou-se e resolveu agir com o poder das palavras, sua única e última arma, gritando, encarando os guardas:

- Seus filhos da puta! Os senhores não têm o direito de arriscar as nossas vidas, são uns irresponsáveis! Eu quero descer! Eu quero descer! Eu quero descer!

Um dos guardas olhou Marcelo de cima até embaixo, apontou-lhe a arma, mandou calar-se. Marcelo e o guarda se encararam com ódio mútuo e infinito. O passaporte para o outro lado não seria dado nem pelo anjo, nem por assaltantes armados, mas por um clone gestado pelo choque cultural entre uma suposta vida das telas e o brasilian-way-of-death. Marcelo enquanto recebia os raios raivosos que cintilavam dos olhos do policial, não sabia se esperava a morte gritando ou em um respeitoso silêncio. O outro guarda o salvou do impasse. Sentindo uma acutilante solidão, vendo o companheiro distraído com um inimigo menor, gritou-lhe para que olhasse para frente e ordenou ao motorista que parasse. Os figurantes desceram na Praça General Osório em Ipanema, transcorridos quatro intermináveis minutos de filme desde a seqüência do vislumbre do assalto. A viatura seguiu em frente na sua missão e ficou no ar, entre passageiros aturdidos, limpando as roupas como era possível, examinando Marcelo com olhares gratos e desconfiados, a idéia de que sempre pode surgir um chato para lembrar que a vida é um pouquinho diferente do que se vê com freqüência nas telas.

Marcelo tomou um táxi direto para casa e menos um astro brilhou na dança da solidão, naquela boate, na madrugada de domingo. Ao chegar teve o impulso de fazer uma ligação erótica, ouviu um desconhecido repetir algumas vezes “vem cá meu putinho” e foi dormir, experimentando um gosto estranho de herói anônimo, sentindo-se um sobrevivente resgatado de um mar de fantasias precárias.

Nelson Rodrigues de Souza

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Respeito Muito Minhas Lágrimas


A gente pensa o que sente ou sente o que pensa? Parece um pergunta boba, mas não é. Eu pelo menos prefiro sempre pensar o que sinto. Acredito que as emoções, os sentimentos chegam por um misterioso atalho, antes que os pensamentos se formem. Desta forma os filmes que me emocionam, sutil ou desbragadamente têm minha grande admiração. Não que não chegue a admirar obras mais intelectuais solidamente construídas (como o maravilhoso “O Ano Passado em Marienbad” de Alain Resnais), mas lido no campo das artes com outras veredas também.

“Cazuza- O Tempo Não Para” (Brasil/ 2004) de Sandra Werneck se eu disser que não gostei muito estarei mentindo. Por mais que detectasse omissões fundamentais ( descartou-se a importância que Ney Matogrosso teve na vida e na carreira de Cazuza; Maria Zilda é colocada como uma coadjuvante sem maiores expressões) nunca chorei tanto num filme! Foi sem exagero: do começo ao fim! A magia de estar assistindo a uma interpretação mediúnica de Daniel de Oliveira (fantástico!) e o pulso narrativo, sem quedas, me mantiveram ligado o tempo todo no filme, sem tréguas para as emoções deixarem de ser transbordantes.

Caetano Veloso escreveu que o filme era um grande musical do Cinema Brasileiro, gênero desprezado no país. Não chego a tanto. Acredito que quando derem chances à incansável dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho, de tanto espetáculos sensacionais no Teatro (como o despojado, comovente e imperdível “Beatles Num Céu de Diamantes”), de trabalhar também em Cinema, teremos obras memoráveis (onde estão os produtores brasileiros de Cinema que não procuram estes “meninos”?).

Racionalizações a posteriori à parte, não posso deixar de ressaltar que assistir a “Cazuza-O tempo Não Para” foi uma das grandes experiências cinematográficas da minha vida, por mais imperfeições que o filme tenha. Podem dizer que há identificações pessoais. E terão razão. Mas porque desprezar estas projeções e identificações se elas fazem parte da vida?

Em 1987 assisti a uma montagem bastante cerebral de “Encontro de Descartes com Pascal” de Jean Claude Brisville com Ítalo Rossi e Daniel Dantas, no Teatro da Aliança Francesa de Botafogo. Descartes queria que Pascal fosse seu discípulo e continuasse avançando com suas especulações filosóficas, sendo o último bem mais jovem. Pascal queria agradar o velho mestre não porque se identificasse com suas idéias mas porque queria que ele com seu prestígio intercedesse para salvar um amigo jansenista preso. A peça é um embate de idéias, mas não isenta de uma emoção delicada, pois consegue de fato criar personagens e não meros portadores de conceitos.

Saí do teatro e caminhei pela Rua Muniz Barreto aos prantos. A peça havida tocado num nervo exposto em mim: um engenheiro que só sabia ganhar dinheiro com esta atividade e um amante inveterado das artes. Ou seja, havia cotidianamente um Pascal brigando com um Descartes dentro de minha cabeça. Hoje sou muito mais Pascal: acredito piamente que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Li “Pensamentos” de Pascal com total fascínio ainda que tenha me assustado ao saber que Pascal ao dar aulas no interior da França se açoitava porque não podia sentir prazer com o que fazia de coração aberto sem esperar recompensas.....Mas de qualquer forma acredito muito mais no “Sinto,logo existo” do que no “Penso, logo existo”. Claro que não abdicarei jamais da necessidade de pensar. Este texto é uma das provas disto. Mas sempre estou atento ao poder dos sentimentos e emoções. “A Troca” de Clint Eastwood em cartaz me levou às lágrimas ao final. Posso negligenciar isto na avaliação do filme? Jamais. Claro que existe a emoção interior que não se traduz em lágrimas e também é bastante nobre. Mas de qualquer forma acredito que a emoção seja de que forma vier precede à razão.

Em homenagem a Cazuza, vai adiante um poema que fiz inspirado nele, com as minhas recorrentes citações à poética da MPB:


"Enquanto houver burguesia, não pode haver poesia”
Cazuza


Cintilação

Cazuza
Minha cabeça pode estar confusa.
Você daqui partiu para um lá
Que não sei em que lugar está.
(Será que está entregue ao Deus-Dará?)
Você muito amou, muito viveu,
Muito en-cantou, muito acertou
Em seus tirocínios,
Em seus vaticínios.
Mas num ponto meu amigo,
Eu não concordo contigo!
Você errou redondamente,
Perdidamente...
A burguesia insiste, resiste,
Fede, fede, fede, fede, fede ...
Mas Cazuza,
Me ouça com atenção,
Como se fosse uma bela canção:
Eu te amo muito ainda!
E graças a Deus,
É infinita, bem vinda,
A poesia que sempre existiu,
Existe, existirá, resistirá,
Mesmo depois que você se mandou
Pensado que deu pra nós um adeus,
Pra não sei onde...
(Cara, onde você se esconde?)

Eu sei que aqui sua aura não se esmaece,
Mesmo com todo esse inverno de desesperança,
Todo esse inferno que nos alcança...
E saiba meu querido amigo,
Que ainda persiste
Gente como eu, carente de afeto e sexo,
Andando tonta, alucinada,
Pelas ruas, botecos, bares, boates,
Pelas vielas, encruzilhadas,
Pelas saunas, aterros, arpoadores,
Pelos bate-papos nos computadores
Também exagerada,
Em busca de amores,
Catando a poesia que você camarada,
Generoso como sempre foi,
Entornou de propósito no nosso chão,
Chão este onde sempre pisamos,
Distraídos, iludidos....
E sonhamos, sonhamos...

Um abraço, um beijo mordido,
É muita sorte nossa você ter existido.
.
Nelson Rodrigues de Souza