domingo, 25 de janeiro de 2009

Enfrentando dois fantasmas: o público e a crítica


Conjugando minhas experiências cartesianas, como engenheiro, com especialização em estatística e as mais dionisíacas de estudioso das artes, com ênfase em Cinema, eu ouso afirmar, com pouco medo de errar:

Se você tem idéias e pulsão para expressão em alguma forma artística e consegue os meios de produção para tal, sem nenhuma demora, expresse-se, faça sua obra e não pense de forma alguma nestes dois fantasmas: o público e a crítica”.

Isto não quer dizer que eu despreze o público como receptor de obras de artes nem as reflexões críticas que se fazem sempre necessárias. A questão crucial é que artista, público e crítica têm intenções muitas vezes divergentes e de difícil conciliação. E vamos incluir leitores como também parte desta noção de público.

A História da Arte está coalhada de casos em que o valor de um artista não foi reconhecido pela crítica ou pelo público ou por ambos. Imaginemos se Van Gogh tivesse se deixado abater definitivamente pela sua obscuridade em vida. Não teríamos hoje sua extraordinária obra. Até mesmo Marcel Proust teve o primeiro volume de sua monumental obra “Em Busca do Tempo Perdido” vetado para edição por nada mais nada menos que André Gide! Se todos os editores fossem vetustos neste aspecto como Gide foi, não existiria Proust como hoje o conhecemos. Se o grande cineasta brasileiro Walter Hugo Khouri tivesse se deixado levar pelas acerbas críticas que recebeu em vida de grande parcela da crítica brasileira, taxado de diluidor tupiniquim de Antonioni e Bergman, não teríamos seu fabuloso legado ao Cinema Brasileiro. E muitos exemplos mais podem ser enfileirados.

Takeshi Kitano levou o Leão de Ouro em Veneza em 1997 com “Hana-bi-Fogos de Artifício”. Depois de mais sucessos como “Zatoichi”(2003), exibiu em 2007 no mesmo festival ”Glória ao Cineasta!”. Chegou-se a conjeturar se Takeshi tinha ficado louco. A profecia de Cazuza, “os fãs de hoje serão os linchadores de amanhã”, havia se cumprido para Takeshi. Numa extraordinária reação Kitano dirigiu o fantástico e genial “Aquiles e a Tartaruga” (2008) visto no Festival do Rio do ano passado. Do que se trata o filme? Misturando com maestria o drama e a comédia temos diante de nós um ser humano com o impulso irrefreável para as artes plásticas desde criança. Depois de intensa repressão na infância e de uma sucessão de encontros mal-sucedidos com um professor e um marchand ele passa a duvidar de sua capacidade artística, mas mantendo sempre o irrefreável impulso de produzir, de uma forma tal que afeta negativamente sua vida e a de sua esposa e filha. Contar mais é estragar o prazer deste grande filme que dado a precariedade de nosso sistema exibidor merece e deve ser baixado pela internet. É uma obra para ser vista e estudada por todos que se interessam por arte, seja de que lado estejam.

Vivemos num mundo em que o clássico muitas vezes é tido como acadêmico, em que se tenta ser moderno a qualquer custo, em que a arte conceitual pós-Duchamp e seus ready-mades virou um campo para muitas mistificações, em que o conteúdo das obras de arte e a relação dela com as pessoas e o mundo passam a ser preteridos por análises de teor simplesmente estético e estruturalista, dentre outras taras. Por outro lado, o público maior muitas vezes está em busca só de entretenimentos fáceis. O que fazer? Expressar-se conforme foi comentado no início do texto.

Com o artista expressando-se de acordo com sua vontade e recursos, os críticos elaborando suas pensatas e o público prestigiando o que quer em diferentes níveis, o mundo da arte segue seu caminho sem que se instale nenhum mal-estar niilista. O que não pode mais acontecer, não tem mais sentido, é alguém deixar de expressar-se seja de que forma for, intimidado por público e/ou crítica.

Tendo eu tanto o impulso criador, o de crítico e sendo público de muitas obras e visto/lido/ouvido coisas inacreditáveis para o bem e para o mal, segundo meu gosto, assumo que este post no fundo é para mim mesmo. Mas tenho certeza que encontrará ecos em muitos leitores. Daí a razão de sua escrita e o fato de não querer guardá-lo só pra mim. Pode até haver aqui uma contradição com o que escrevi no começo, pois o fato é que tive o forte impulso de escrever o post. Os que não concordarem com o conjunto do texto que atirem a primeira pedra pois estou preparado....

Nelson Rodrigues de Souza

8 comentários:

  1. Tudo o que você diz é compreensível e aceitável, mas... sou daqueles que considera Kitano um cineasta supervalorizado, e entre muitos que não suportam o Walter Hugo Khoury, daí que seus argumentos, para este leitor em particular, pecam pelos maus exemplos. Obviamente um artista deve pautar sua obra na sua técnica de expressão e no que quer exprimir, sem pensar no público e na crítica. Depois, deve ter paciência para merecer os reparos de ambos. Obviamente, se ele não é um artista, caso de 99% dos cineastas de Hollywood, tudo que importa é o público, e a crítica em medida muito menor, digamos uns 15%. Pergunta por Ron Howard e assemelhados... Mas, talvez, o que voc~e queira dizer é que o artista, no caso o cineasta, independentemente do retorno público/crítica, deve ser fiel ao seu programa artístico, e nisso reside o problema de sua argumentação. Muitas vezes, ambos ajudam o "artista" a alterar sua rota, reconhecer seus erros, reparar seus conceitos, em suma, lapidar sua obra, se isso for possível, ou simplesmente mudar completamente sua perspectiva e, se for o caso, até abandonar a carreira. O que não sei se seria justo com o cineasta Kitano, mas com o Kitano pintorm certamente...

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  2. Terminei de ler recentemente o livro "Entrevista com Woody Allen" - (definitivamente meu diretor predileto). O tom de todas suas respostas é quase sempre o de uma de suas afirmações"(...) faço os filmes que quero fazer, sem me preocupar se eles serão ou não populares". O único compromisso dele é com a vontade, com sua necessidade de expressar, de construir uma obra a partir de uma idéia que pode surgir de qualquer situação, de qualquer leitura. Esse é um dos motivos de minha extrema admiração. Acredito realmente que esse é o caminho da arte. Eu, como público, como alvo, posso ou não aderir, gostar, admirar...e por aí afora.

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  3. Ficarei muito feliz se algum distribuidor comprar "Aquiles e a Tartaruga", já que é um dos melhores filmes entre os exibidos no último Festival do Rio. Ser um filme de um grande diretor contemporâneo, como é o Takeshi Kitano, já há muito tempo não é garantia de distribuição. E como as distribuidoras lançam filmes ruins "tirados não sei de onde", sem a menor referência! Quem são esses compradores? Se diretores que tinham uma penetração bem melhor no mercado brasileiro, como Tarantino e Ang Lee têm seus filmes mais recentes comprados há quase dois anos e até então não foram exibidos em circuito, poucas esperanças eu tenho que essa obra-prima do Kitano seja exibida. Muito boa a lembrança do Nelson sobre a ótima abordagem do filme na relação artista/crítica/público. Quem tiver oportunidade, baixe na Internet! Luciano Rosa

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  4. A livre expressão é um direito de todos, inalienável. Defendo que ninguém deva se sentir tolhido e deixar de produzir por receio da crítica(que também merece ser criticada) ou da opinião do público. Mas, quanto a essa produção ser considerada arte, aí a discussão já se torna mais complexa. Teríamos que refletir sobre os muitos conceitos de arte. Vou lançar apenas um deles para o debate: " Uma obra é arte, e só, se provoca nas pessoas uma emoção estética"(Clive Bell).
    Abraço. Gina

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  5. Gina,

    Concordo com você que nem tudo que se exprime livremente,sem preocupação com o público e a crítica é arte. Mas que autoridade vai dar o veredito definitivo do que é ou não arte?

    O que é "emoção estética"? Pra mim é aquilo que uma obra de arte provoca. Assim a "definição" de Clive Bell ficaria assim:"Uma obra é arte, e só, se provoca nas pessoas aquilo que uma obra de arte provoca". Assim estamos no terreno da tautologia! Uma coisa é uma coisa porque é uma coisa...

    Pra mim, muitos dos trabalhos dos internos do Museu do Inconsciente da Dra. Nise da Silveira me provocam emoção estética. Para outros não, não seria arte. Por outro lado um quadro do celebrado Barnett Newman totalmente monocromático, com um linha vertical que divide o quadro assimetricamente ou não, não me provoca emoção alguma a não ser aquela de indignação por aquilo ser considerado arte.O que fazer? Muito ainda temos que discutir. De tudo fica a certeza de que quem tiver idéias para se expressar e meios de produção para tal, deve logo se expressar, independentemente do que pode achar o público e a crítica. No mínimo ficará feliz com sua expressão. Compreendida ou não é outra história.
    Abraços,
    Nelson

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  6. Nelson,
    Citei o conceito do Clive Bell para polemizar. Também acho que as teorias formalistas, que analisam a arte apenas sob o prisma da "forma significante", ou seja, a partir da emoção estética que a obra provoca no sujeito que a aprecia, são insatisfatórias. Assim como o são teorias do século XIX, que conceituam a arte como expressão (dos sentimentos e emoções do artista), e também aquelas, bem mais antigas, que a definem como representação e ponto final.Para Platão, por exemplo, a arte era tida como imitação - cópia do mundo empírico que por sua vez copiava o mundo ideal.
    É uma discussão sem fim. Eu fico com a constatação, simples e que evita definições "engessadas", de Gombrich: " a arte pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes". Acredito que um conceito sobre arte precisa contemplar três vértices: o estímulo criador, a obra em si e a sua recepção, situada em determinado tempo e espaço.
    Abraços.
    Gina

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  7. Colocando mais elementos sobre a questão de qual "autoridade" determina o que é arte ou não e seus níveis de qualidade, me atrevo a postar aqui um texto de Inácio Araújo sobre a obra de Wong Kar-wai logo adiante que merece reflexão. Inácio é um dos mais conceituados e atuantes críticos brasileiros há anos e tem uma escrita admirável, conseguindo o prodígio de também ser tido como um mestre pela crítica mais jovem. No entanto o que ele diz sobre a obra de Wong Kar-wai pode ir contra ao que muitos pensam e sentem. Ele admite isto. Eu que amo especialmente "Amor à Flor da Pele" e num tom menor "Felizes Juntos", sinto grande estranhamento com o que ele escreve. Inácio oferece com sucesso um curso de História do Cinema em vários planos. Imaginemos Wong Kar-wai como aluno deste curso.....


    Eis o texto:

    São Paulo, sexta-feira, 06 de fevereiro de 2009
    Crítica
    Wong Kar-wai repete temas em "Beijo Roubado"
    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    Não é certo dar o estatuto de ciência a nossas idiossincrasias. Eu, por exemplo, não gosto dos filmes de Wong Kar-wai, cujo mais recente exemplar é "Um Beijo Roubado" (TC Premium, 22h; não indicado a menores de 12 anos). Não foi por falta de esforço, diga-se: uma vez cheguei a seguir uma retrospectiva de seus filmes em Paris, e a visão em sequência dos filmes nos facilita a visão de suas virtudes (ou defeitos).
    Permaneci indiferente. Como se aquilo não chegasse à minha sensibilidade, mas eu compreendesse que outros possam reagir diferentemente. Mesmo o seu filme que mais me interessou, "Amor à Flor da Pele", um amigo me lembrou que, quando o vi, saí por meia hora para fazer um lanche.
    Desta vez Kar-wai está no Ocidente, mas sua questão, a do amor e seus mistérios, continua a agir na personagem feminina. Vale dar uma espiada, é decente e tal. Mas eu vou é rever "Anatomia de um Crime" (TCM, 0h45; classificação indicativa não informada), um Otto Preminger imbatível.

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  8. A questão de valorização de uma obra de arte ( ou sobre arte) está cada vez mais intrincada. Vejamos a polêmica sobre o livro de Affonso Romano "O Enigma Vazio: Impasses da Arte e da Crítica" , criticado por Marcelo Coelho na Folha de São Paulo. Admiro muito o trabalho dos dois. Mas me dá uma certa angústia vê-los em embates como este que vai adiante.
    Nelson

    Folha de São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2009


    Réplica

    Comentários de Marcelo Coelho fazem pensar que, se ele leu todo o livro, leu mal
    AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    Estava eu fora do país quando a Folha publicou uma resenha de Marcelo Coelho a propósito de "O Enigma Vazio: Impasses da Arte e da Crítica" (Rocco). Tal texto pode ser dividido em duas partes: na primeira faz uma paráfrase de informações que estão no meu livro, sem citar a fonte; na segunda pretende emitir comentários críticos sobre a obra.
    E aqui o problema maior. Ou ele não leu todo o livro, ou, o que leu, leu mal. 1. Acusa-me de "impaciência" diante dos autores analisados. E me pergunto: "Impaciência"? Estou estudando essa questão há décadas, três livros meus anteriores prepararam-me para este, fiz não sei quantas viagens a museus e bibliotecas, testei minhas análises em inúmeros cursos e conferências, submeti o texto a vários leitores especializados dentro e fora do Brasil. Portanto, se há alguém "impaciente", não sou eu.
    2. A seguir, diz, sem demonstrar, que expulsei "o ator de cena para tomar a palavra". Ao contrário. Usando instrumentos da filosofia, retórica e linguística, enfrento o problema da linguagem e a linguagem do problema, desfaço a "estratégia da indecisão" e o "double bind" linguístico e ideológico por meio do desmonte intertextual das falácias de Duchamp, Paz, Barthes, Derrida, Jean Clair e outros.
    3. Estranha ainda é a observação de que eu deveria ter "bom-humor e ironia neste livro". Aí, fiquei sem saber se ria ou se chorava. Releia o ensaio "Na Sapataria de Jacques Derrida". Aí, entro na linguagem do filósofo sofista, jogo o jogo que ele joga, parodisticamente, desconstruo a desconstrução do criador do desconstrucionismo apontando seus equívocos na polêmica com Heidegger, Meyer Schapiro e F. Jameson. E, se você não achar humor e ironia nas alucinações críticas de Barthes sobre Cy Twombly, que remeto gostosamente para "O Homem que Confundiu a Mulher com o Chapéu", de Oliver Sacks, aí, meu caro, o mal-humorado não sou eu.
    4. A coisa se agrava. Marcelo se entusiasma e, uma vez mais sem dar exemplos, acusa-me de "amadorismo", de "falta de ruminação acadêmica", e de fazer "citações de segunda mão". Exclamo: "Jesus Christ!". Estou trazendo uma bibliografia transdisciplinar nunca operacionalizada para estudar a questão da arte contemporânea; estou revendo a teoria do caos, a questão da entropia e certos conceitos de física quântica em função da arte; estou trazendo a neurociência para tratar epistemologicamente da agnosia visual e mental; estou mostrando detalhadamente como pensadores notáveis cometem notáveis equívocos; estou operacionalizando o "paradoxo do mentiroso" e a "argumentação em declive" para desarmar as armadilhas duchampianas; esmiúço as homonímias, paranomásias e anfibologias em Derrida, Barthes ou Duchamp; enfim, estou mostrando que o rei não só está nu, mas está vestido pela linguagem alheia, que é preciso ultrapassar os oxímoros paralisantes que coagularam a arte e a filosofia, e o comentarista da Folha não percebeu nada disso.
    De resto, Marcelo diz que há uns erros de revisão. Sempre os há, qualquer autor sabe disso. Se quiser anotá-los, eu os passarei à editora. Mas preferia discutir ideias.

    AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA é escritor e crítico, autor de "O Enigma Vazio: Impasses da Arte e da Crítica" (Rocco).

    Folha de São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2009

    COLUNISTA AVALIOU OBRA COMO REGULAR

    No último dia 3 de janeiro, a Ilustrada publicou, sob o título "Autor usa estratégia inteligente, mas é traído pela impaciência", uma crítica do colunista da Folha Marcelo Coelho sobre o livro "O Enigma Vazio: Impasses da Arte e da Crítica", de Affonso Romano de Sant'Anna.
    Na ocasião, Coelho avaliou o livro de Sant'- Anna como regular.

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