sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Cinefilia, Uma Patologia do Colecionador?


Quando fui fazer psicanálise lacaniana pela primeira vez, aturdido pelo governo Collor que ia entrar e por questões também pessoais de ordem profissional, amorosa e religiosa, disse logo que era um cinéfilo. O analista imediatamente falou: “Aqui nada de Glauber Rocha! Tem de ser bem Walt Disney!”. Assim fui me abrindo e perguntei o que era melhor, deitar no divã ou sentar de frente para o analista, como muitos faziam. Como deduzi, deitar no divã era melhor, pois a troca de olhares poderia interferir no discurso dos dois, o que também acontece nos documentários, mesmo aqueles mais complexos e fascinantes como os de Eduardo Coutinho.

Quando minhas sofisticadas incursões cinematográficas estavam sendo cada vez maiores, mas questões pessoais estavam estacionadas ou proteladas, o analista comentou: “o cinema é como uma travessa de arroz doce; comer alguns pratinhos é delicioso, mas comer a travessa inteira enjoa e faz mal.” Nunca mais esqueci esta simples metáfora. Isto não quer dizer que tenha me regenerado totalmente desde então.

Muitos cinéfilos vão ao cinema numa síndrome “A Rosa Púrpura do Cairo”, ou seja, por fuga. Claro que é melhor esta “droga” mais leve (ou menos pesada) do que outras. Afinal angústia contínua leva à depressão e esta continuada leva à demência. Se o cinema com seus dramas, comédias, tragédias, tragicomédias, aventuras, etc....nos tirar desta angústia existencial, ótimo. Mas no fundo acredito que estamos agindo tal e qual Cecília que ao final do filme de Woody Allen, voltando tudo à estaca zero, sem conseguir dar um fim ao seu casamento falido, volta para o cinema para ver o mesmo filme, num final que é quase que de um filme de terror, mesmo com Mia Farrow transitando da melancolia ao sorriso. Nós cinéfilos podemos dizer que somos bem diferentes de Cecília, pois vemos filmes os mais variados, muitos nada água com açúcar, muito pelo contrário. Mas será que somos tão diferentes assim? Tenho receio que não. Desconfio muito de quem diz que viu mais de 200 filmes juntando os festivais do Rio e São Paulo, por exemplo. Será que viram mesmo ou foi apenas uma cascata de imagens que passaram pelos olhos e se constituíram em lenitivos fáceis para questões que não se quer enfrentar?

Assim procuro hoje controlar mais meus impulsos de ir ao cinema. Prefiro conversar por telefone com os amigos, me encontrar com eles, me dar conta de como anda minha vida amorosa e fazer então tudo para não virar um monge no que a isto diz respeito, procurando, tentando ter vida afetiva e/ou sexual. Nada de sublimação com o cinema! Já fiz muito isto em minha vida. Principalmente quando vivi da adolescência para a vida adulta. Sublimação que foi encorpada por estudos pesados de Engenharia. Agora prefiro me voltar à escrita, com todas minhas limitações (algo que sempre me atraiu), ouvir muita música e me dedicar a outras formas de arte, sem me desligar das coisas que acontecem no mundo. Leio três jornais por dia. De jornais televisivos não gosto muito, pois me aturdem com a sem-cerimônia com que passam do trágico, do relevante para o banal e vice-versa. E me dei até ao luxo ultimamente de dar um tempo no cinema e assistir três semanas seguidas, siderado com os ganchos dramáticos, os embates de “A Favorita”, esticando para a minissérie “Maysa-Quando Fala ao Coração”, que vi em boa parte com prazer apesar de todas as limitações tatibitates do texto.

Isto tudo está ficando com cara de receita de bem viver? Pelo amor de Deus! Não é esta minha intenção. Apenas é um relato de como encaro esta questão da cinefilia, o que pode encontrar ecos por aí, com pontos de contacto ou de oposição.

Gosto muito de rever filmes. Muitas vezes descarto novos filmes e revejo alguns que de uma forma ou outra me intrigaram bastante, seja no cinema mesmo ou em DVD. D. H. Lawrence escreveu que era melhor ler poucos livros bem lidos do que ler muitos superficialmente. Se já faço isto em Literatura, passei a adotar este princípio também para o Cinema, dentro de certos limites.

Uma analista lacaniana que tive depois foi mais cruel comigo: “Para que ver tantos filmes assim? O diretor deu o seu recado, está se arriscando... E você que risco está correndo? Mais do mesmo!”.

Por razões que não vou contar aqui por ora, minhas sessões com estas duas pessoas não terminaram bem. Se um casal se desgasta, o mesmo acontece em relações psicanalíticas e estas têm de ter um fim. Meu caso com o analista terminou como um grande filme de Bergman. ”Persona” perde!

Apesar destas rupturas dolorosas, foram duas pessoas que ajudaram a me estruturar, me compreender melhor e me transformaram certamente numa pessoa mais lúcida em sua “loucura particular”. Atualmente estou envolvido em outras terapias. Acredito que minha cota de tributo ao legado de Lacan tenha já terminado.

Não estou aqui recomendando aos leitores cinéfilos que façam psicanálise ou outras terapias, mas apenas desejando que empreguem os conhecimentos adquiridos através dos filmes, das artes em geral e da vivência para observarem mais a si mesmos e aos outros. Nos cinemas durante o ano e nos festivais encontramos muita gente bacana, mas tudo é muito corrido, pois o filme visto tem de ser sobreposto por outro filme ou outro espetáculo e o que poderia ser uma conversa aprazível, generosa e pródiga acaba sendo apenas uma faísca de novidades voláteis e dicas instantâneas.

Para construir meu blog e conseguir dar um tom diferente a ele (o que acredito tenho conseguido) li muitos blogs de cinema, como também os sites eletrônicos da área. Muitos são imperdíveis para o cinéfilo que quer refletir sobre o que viu ou verá. Mas dificilmente conheço pessoas que comentam estes blogs e sites, como também não vejo comentários postados delas. Um dos comentaristas assíduos do Blog do Zanin, mora num local onde filmes comentados pouco chegam. Ele os vê em DVD, quando consegue. Já pessoas privilegiadas que conheço se omitem.

Fui criado numa família que defino como “classe pobre alta” de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Nunca me faltou nada em casa. Mas meu pai era um tanto rígido. Por um bom tempo não me dava dinheiro para as matinês. Não achava que fosse importante. Mas “a gente não quer só comida e água, quer diversão, arte e saída pra qualquer parte”....Cresci vendo outras crianças voltando do cinema e contando filmes que se agigantavam na minha imaginação. Claro que algumas matinês eu peguei. Não tive uma educação tão espartana assim. Mas senti no Nelson adulto compulsivo que ia ao cinema depois que se tornou independente, uma forma de compensar o cinema perdido na infância. Mesmo me dando conta disso, creio que continuei indo bastante ao cinema para provar a mim mesmo que não estava excluído deste mundo que tanto amava e que as carências da infância haviam passado, num jogo que beira o auto-engano, pois no inconsciente não estava havendo esta superação de fato. Hoje controlo mais meus impulsos cinéfilos. Não posso ser escravo da infância depois de um cinqüentenário.

Claro que a paixão pelo cinema também contém fantasias eróticas que clamam por serem satisfeitas. E quem teria o direito de jogar pedras nelas? Quando não estou gostando de um filme, para não me aborrecer indo embora, navego na beleza dos atores e atrizes, mais dos atores que atrizes, evidentemente.

Se estou sendo injusto em detectar aqui certa “patologia do colecionador” que permeia a vida dos cinéfilos, comentem aqui os meus furos. Só espero que num gesto de fuga, após ler esta postagem, vocês não saiam correndo para assistir a um próximo filme...

Nelson Rodrigues de Souza.

6 comentários:

  1. Ando refletindo muito sobre esse tema. Além da 'coleção mental', que tento manter acessível quase todo o tempo (o que é desgastante), já não sei o que faço com as coleções físicas: filmes, livros, cds e revistas. Aos poucos tenho conseguido até emprestar..kkkkk...outras, doar, mas outras tantas (diria 98%) ainda falta desapegar.
    Fora isso, seu questionamento sobre a quantidade de filmes é muito pertinente.
    Eu ainda vejo 'trocentos' filmes, 'trocentas' séries, revejo os filmes, revejo as séries (novas e antigas), releio livros, leio gibis.
    Vou para a academia, encontro os amigos, vou para o trabalho...Acho que o comentário do meu mais recente amigo, psicólogo como eu, foi certeiro: "Você tá fazendo tudo isso para não ter tempo com você mesmo." E eu pensei q ele tem razão. Não me dou um minuto de folga. Não paro de jeito nenhum. Tenho a sensação de que não terei tempo na vida p ver, ler e fazer tudo que já quero ( o que está por vir nem me fale, aí é loucura branda).

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  2. Querido Nelson,primeiro é um prazer imenso ver seu Blogg saindo do berçario.Textos inteligentes,enfim, valeu esperar.Comentarei e indicarei aos meus amigos.Adorei o texto Cinefilia onde você com muita propriedade define bem os motivos que levam uma pessoa a transformar esse Hoby tão saúdável numa patologia.Ana

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  3. Caro Nelson,

    Vi seu comentário no blog da Ilustrada no cinema, e vejo que talvez você não tenha percebido bem, ao menos meus comentários anteriores. Disse que os filmes estrangeiros vencedores do premiozinho eventualmente são bons, e você citou justamente esses filmes. Os de Hollywood são fiasco após fiasco. Não dá para "colecionar" os recentes, a não ser por perversão (quer dizer, vamos colocar no canto um instantinho só o fato de que colecionar é uma forma, como diria para ser moderno, "derivativa", de perversão). E acho que a vida fica sem graça, sim, quando estamos diante de bombas como Australia ou A Troca. Aí a escolha fica entre matar o diretor, o roteirista, o produtor ou os atores, e melhor ainda, todos eles juntos. Mas o fotógrafo (e toda a equipe técnica, por extensão) não: o coitado não tem culpa.

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  4. Confesso que sempre gostei de colecionar. Quando criança colecionava álbuns de figurinhas. Depois vieram os livros, recortes de jornais, revistas, cadernos,cartas, cartões postais, fotografias. Papel e mais papel. Acho que, temendo que um dia as árvores desaparecessem do planeta(em parte por minha culpa), resolvi diversificar minhas "coleções" incluindo som e imagem. Aí começaram a se acumular os lps, fitas-cassete, cds e dvds - que não aboliam, na verdade, o papel, presente nas caixas e encartes.
    Uma vez escrevi que essa compulsão frenética de nos apossarmos dos registros impressos ou imagéticos tem relação íntima com o desejo de aprisionar o tempo, manter viva a memória. Nos dias de hoje, em que as horas parecem passar mais depressa e a quantidade de informação chega a ser assustadora, creio que a vontade de abarcar o mundo, de não "deixar nada passar" pode virar neura.Por isso tenho, assim como você, Nelson, me tornado cada vez mais seletiva. Já desisti há muito tempo de "dar conta de tudo". Procuro descobrir o que é essencial pra mim. Mas, nem sempre é fácil "descartar", abrir mão daquilo que, no fundo, não nos acrescenta nada. Trata-se de um aprendizado, cotidiano.
    Abraços.
    Gina

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  5. Nelson,
    Sobre as considerações que voce faz sobre o acúmulo das imagens cinematográficas também servem para qaulquer outro segmento das artes. Eu particularmente tenho a necessidade de refletir sobre o filme visto, o livro que estou lendo, a música que estou ouvindo. Penso que a arte existe para reflertir e não para acumular.

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  6. De Souza, sob a luz dos olhos seus, a cinefilia fica, digamos, levinha, levinha, bem levinha ... Não consigo interpretar minha cinefilia como uma sucessão de atos de colecionador. Creio que a vida nossa de cada dia - no atacado e no varejo - não é uma coleção. É um arquivo. Talvez mais arquivo que coleção. Explico-me. A coleção resulta de um ato consciente de quem reúne algo e forma um acervo com isso. O arquivo resulta dos nossos atos mais diversos, inclusive dos inconscientes. Forma-se, digamos, "naturalmente". A coleção, ao contrário, é sempre arbitrária, artificial. Minha correspondência com meus amantes não forma uma coleção. É parte do meu arquivo. Quando, porem, reúno cartas de amor das minhas tias, tios, amigos ou desconhecidos porque simplesmente gosto desse gênero de correspondência, formo uma coleção. Enfim, por isso tudo, creio que a vida é mais arquivo do que coleção. Minha cinefilia é arquivística. Minhas fotos de Paris em preto & branco, produzidas por distintos fotáografos , são, porém, uma coleção. Sim, seja como for, no final, tudo pode ser patrimônio afetivo.

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