sábado, 24 de janeiro de 2009

Victor Giudice e o Cinema Brasileiro


Tive o grande privilégio de ser aluno do escritor Victor Giudice (1934-1997) no Estação das Letras dirigido pela incansável e amável Suzana Vargas, num curso de criação literária. Já os conhecia como organizadores das “Rodas de Leitura” do CCBB, um evento notável que se perdeu por desatino e desatenção da diretoria do Centro Cultural.

As “Rodas de Leitura” faziam com que autores das mais variadas falanges lessem uma parte selecionada de suas obras (tive o enorme prazer e emoção de assistir Jorge Amado lendo um trecho de “Tenda dos Milagres”, dentre outros grandes deslumbramentos) sendo que a platéia acompanhava a leitura através de uma cópia do texto. Ao final abria-se espaço para perguntas e debates que eram sempre interessantes e estimulantes. Lamentavelmente esta idéia simples, mas fundamental, de contacto entre escritores dos mais variados estilos e gêneros com o público (sem precisarmos ir à FLIP...) acabou. Merece voltar urgentemente! Toda semana!Como era em seus primórdios.

Foi com bastante proveito que fiz o curso com Giudice e tive o orgulho de vê-lo ler espantado pela sua contundência dois textos meus, mesmo que não os considerasse grandes contos. Um dos maiores contistas que o país já teve, Giudice era bastante conhecido no Rio e pouco citado em São Paulo. Sua obra se passa de modo geral numa mitológica São Cristóvão que já não existe mais. Curiosamente ganhou o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) com o fundamental “Salvador Janta no Lamas”, que recebeu prefácio do crítico Carlos Alberto de Mattos, ressaltando a alta voltagem cinematográfica de todos os contos. Isto acontece com outras obras dele, também essenciais, obras que de um modo brasileiro lembram Jorge Luis Borges e Júlio Cortázar: “Os Banheiros”, “O Museu Darbot e outros mistérios”, “Necrológio”, “O Sétimo Punhal (esta uma novela), etc.

Victor era bastante crítico dos roteiros do cinema brasileiro. Não suportava a versão tropicalista de “O Alienista” de Nelson Pereira dos Santos, “Azyllo Muito Louco” (“Matou Machado de Assis!”). Um diálogo entre amantes ao telefone de “Faca de Dois Gumes” o incomodava especialmente pelo que considerava uma grossura e inverossimilhança. Ele se referia ao Cinema Brasileiro como o C.B. Chegava ao requinte de destacar uma grande cena de “Proposta Indecente” para mostrar a vulgaridade com que o C.B. a faria. Este lado de Victor eu não gostava e não concordava, pois os defeitos que ele apontava não eram fortes ou nem eram defeitos.

Hoje entendo mais sua birra com o Cinema Brasileiro. Dada a alta voltagem cinematográfica de suas obras, claro que ele deveria ter visto em vida algumas adaptações de trabalhos seus para o cinema, como aconteceu com Rubem Fonseca. O que não ocorreu lamentavelmente. E deveria ainda acontecer!O conto que dá título a “Salvador Janta no Lamas” é puro Roman Polanski em seus grandes ensaios sobre a paranóia, por exemplo. Quem sabe alguns cineastas e produtores descubram o potencial para filmes de suas obras e lhes façam justiça, ainda que póstuma.

Victor era uma criatura humana extraordinária, muito generoso e fazia suas críticas num misto de bom humor e indignação que o tornava único, inconfundível. Para quem quiser saber mais sobre ele mergulhe em suas obras e leia o site http://www.victorgiudice.com/home.html que vale a pena.

Sem entrar no mérito de valores, sempre fiquei intrigado e chateado ao observar que na Folha Ilustrada e no Caderno Mais!, qualquer novidade de Haroldo e Augusto de Campos era ressaltada e eu nunca consegui ler nada sobre Victor naqueles espaços.

Assim não é o só o Cinema Brasileiro que está em dívida com ele, mas a Folha de São Paulo também. Torço para que estas injustiças com um autor tão genial, com vasta erudição (organizava sessões comentadas de Ópera no CCBB, dentre outras atividades) sejam corrigidas.

Em suas aulas Giudice enfatizava a força que a primeira frase deveria ter e que as histórias sempre tinham que ter um momento de transcendência, algo que sempre se observava em suas obras. O conto “O Museu Darbot” merece ser estudado por todos os envolvidos em artes plásticas no Brasil. É de uma ironia devastadora. Sintoniza de forma bem humorada com o trabalho desmistificador necessário que Affonso Romano de Sant'Anna vem fazendo nesta área, questionamentos saudáveis.

Termino este post na esperança de que a obra deste grande mestre seja revalorizada e que eu contribua dentro de meus limites para isto. Como uma provocação a meu querido professor (que teve um fim triste do qual pouparei detalhes aos leitores, só enfatizando que é o retrato do descaso brasileiro com o poder aquisitivo dos idosos neste país.) por gostar muito de “Faca de Dois Gumes” de Murilo Salles, revelo a vocês que no conto “A Música Ruidosa do Medo” enviado num post anterior, que agradou Giudice, eu de uma forma carinhosamente sacana, fiz referência de propósito no desfecho, de uma outra forma, à fala que Victor tanto abominava por achá-la irreal e vulgar ( “vem cá minha putinha”). Eu não achava. Daí meu procedimento antropofágico que ele deve ter percebido e de forma alguma o incomodou pois era de seu temperamento ser bastante sincero. Deve ter rido interiormente.

Ah sim! Kafka é outra das grandes influências de Giudice. À leitura dele pois. Eu ainda me devo a leitura de seu único romance, “Bolero”, o que não fiz, tão encantado estava como leitor atento de seus contos maravilhosos e sempre intrigantes. Puro cinema., grande força literária.Experimentem.

Com sua morte perdi um pai cultural, um ícone que havia encontrado. É uma das grandes perdas de minha vida. Daí a ênfase aqui no culto à sua memória, feito com muitas saudades.
Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelson,
    O livro de contos "Salvador Janta no Lamas" é uma pequena grande obra deste escritor sensacional.

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  2. Que bela homenagem, Nelson. O Victor era um escritor notável e um ser humano fascinante. Nós, que o conhecemos, devemos agradecer à vida por isso.

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