terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Imagens do Inconsciente Freudiano, Coletivo e do Imaginário Coletivo


Para Federico Fellini, Freud é melhor escritor que Carl Yung, mas a teoria do inconsciente coletivo e da sincronicidade yunguinana o seduziam mais. Quando estava para rodar “E La Nave Va” não havia decidido ainda quem faria o papel de Orlando. Já estava em conversações com o ator Freddie Jones e o levava para o aeroporto sem ter ainda realmente se decidido. Olhou para trás e viu um cartaz enorme com o nome Orlando pelo vidro do carro num painel aos fundos, o que compunha uma sintonia forte com o ator inglês que estava sentado no banco traseiro. Não teve mais dúvidas: havia encontrado o ator que procurava para o papel.

Muitas imagens fellinianas nos tocam especialmente porque parecem fazer parte de um inconsciente coletivo yunguiano que o artista capta e constrói com grande talento e vigor cinematográfico de forma que não mais as esquecemos. Passam a nos impregnar a memória sem muita dificuldade. É com se ele desse forma à aquilo que já estava em nós e só então vendo seus filmes nos damos conta. Não é à toa que Fellini declarou que se o exclui Cinema não existisse, ele o teria inventado, sem nenhum exagero, sem falta modéstia.

O destaque até aqui dado a aspectos yunguianos na obra de Fellini não exclui a noção de que encontramos muitos aspectos do inconsciente freudiano em sua obra. Basta lembrarmos-nos das inquietações existenciais de Guido Anselmi (Marcelo Mastroianni) e suas lembranças que surgem ao sabor do poder do inconsciente em “Fellini 8 e Meio”, culminando no inesquecível carrossel com pessoas que passaram pela vida do personagem cineasta em crise criativa, um dos grandes momentos do Cinema.

De minha parte, sem querer ficar em cima do muro, tenho apreço tanto pelo inconsciente freudiano como pelo inconsciente coletivo de Yung. Nas minhas vivências sinto a força de ambas as componentes. Os sonhos recorrentes que tenho pagam grande tributo às descobertas de Freud, alguns deles decorrentes de traumas recalcados. Encontros mágicos na minha vida, não necessariamente positivos e alegres (com certeza, exemplares) atestam o valor das descobertas de Yung. Lacan se referia ao imaginário coletivo e também não podemos descartá-lo. Muitas coisas do mundo também pertencem a esta ordem e não estou excluído delas. Se pensarmos bem, por exemplo, toda esperança que estamos depositando numa virada histórica mundial com Barack Obama é da ordem do imaginário coletivo, fruto de desejo, que pode não ser saciado.

O que não se pode fazer é agir como se estivéssemos em um campeonato esportivo em que um deles certamente venceria. Por que não podemos aceitar em nossas vidas manifestações destas três ordens, dentre outras, que se completam, se confundem?

Vamos dar um exemplo: estou vencendo minha tendência ao sedentarismo e voltei a dar caminhadas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Lidando com certo mau-humor fui caminhando com passos apressados. Encontrei outro dia os habituas passantes, corredores e ciclistas. Mas o que me marcou mesmo e para sempre foi uma pessoa de corpo amofinado confinada a uma acanhada cadeira de rodas, parada e dormindo tranquilamente numa forma ébria na pequena pista, no meio do caminho. Como chegou ela ali? Quem a abandonou? Por quê? Até que ponto a insensibilidade humana e o descaso com as pessoas podem chegar? Até quando seremos aturdidos pela miséria humana? Existe “choque de ordem” possível, tão em moda no Rio de Janeiro de hoje?

Todas estas questões assomaram de repente na minha mente. Mas este encontro mágico marcou-me profundamente. Como posso eu ter preguiça de dar minhas caminhadas se há pessoas nestas condições neste mundo? Foi Deus que pôs esta pessoa no meu caminho para ressaltar minha fraqueza e me estimular a fazer exercícios? Meu inconsciente culpado está acreditando que Deus pôs esta pessoa no meu caminho? Qual o papel no nosso imaginário, de pessoas sem problemas motores com eu, quando se depara com pessoas com grandes dificuldades?

Como conseguir dar uma resposta definitiva? No fundo não descarto nenhuma delas. São tantos os sonhos intensamente freudianos, os encontros mágicos de sincronicidade yunguiana que tenho vivenciado, as imaginações perigosas e/ou deliciosas que já nem quero pensar muito sobre eles e sim continuar vivendo, sem perder a noção de magia do mundo, da força do nosso inconsciente profundo nem do poder das nossas construções imaginárias em que o inconsciente se estrutura como linguagem, conforme prega Lacan. Quem leu com atenção “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa sabe da força que a linguagem de Riobaldo revela e como expressa seu mundo interior e suas inquietações. Mas este Sertão que também é a nossa alma, também aponta para pactos com o divino, revelando o que pode haver de sagrado nas miudezas.

Hoje tendo a acreditar mais numa visão holística do mundo e tenho mais afinidades com quem assim também pensa. Claro que não sou prepotente para descartar outras vivências e convívios. Mas as minhas experiências na vida (e aqui se inclui também as que as artes me proporcionaram) me conduziram a acreditar que tudo realmente tem a ver com tudo e não se pode segmentar as coisas sem empobrecimento da vida.

No caso do Cinema Brasileiro não podemos esquecer que o mesmo cineasta, Leon Hirschman, que nos trouxe obras-primas de forte visão política e social (“marxista”), sem detrimento do intimismo, como “São Bernardo” e “Eles Não Usam Black-Tie”, foi um daqueles que mais foi aberto aos mistérios do mundo ao realizar o essencial “Imagens do Inconsciente” que aborda as obras e as histórias de pacientes da Dra. Nise da Silveira, aplicada discípula de Yung, no Museu do Inconsciente.Uma das últimas imagens que Leon construiu no Cinema foi a da mitológica “barca do sol” pintada por um dos internos. Parecia uma premonição da morte que esperava o diretor, sendo conduzido à eternidade.

Ingmar Bergman com sua obra imensa e poderosa levou a paroxismos os questionamentos sobre o sentido da vida, da morte, da felicidade escorregadia, a Metafísica, a existência ou não e o silêncio de Deus, aprofundando também como um dos maiores perscrutadores da alma humana, os tortuosos caminhos da dor, do amor e ódio que perpassam as relações, sejam conjugais, familiares e sociais. No entanto este imenso cineasta afirmou que tinha no melhor sentido muita inveja de Andrei Tarkovski, pois não saberia jamais construir imagens como a que este místico russo construiu em suas obras, sendo para mim uma das mais potentes a chuva que ocorre só dentro da dacha quando o filho astronauta se ajoelha diante do pai no final de “Solaris”, num ato de extrema humildade quase como se estivesse diante de Deus.

Fellini dizia que o homem não é apenas um ser social, psicológico e econômico. Era também divino. Comungo muito mais com esta abertura de possibilidades do que com o vazio cinzento de um Samuel Becket que nos mostra eternamente esperando um Godot que nunca chega, com um humor hiper-ácido. Godot já chegou sim. Basta olharmos para dentro de nós profundamente e estarmos atentos ao que ocorre ao nosso redor, para o bem ou para o mal ou ambos imbricados.

Gostaria de rechear minhas argumentações com mais elementos mágicos vivenciados, mas por enquanto simplesmente atesto que os vivi. Tenho a superstição de que se falar muito deles, eles me trairão. Verdade? Mais um fruto do inconsciente e suas culpas? Mais um fruto da imaginação?

É melhor parar por aqui.

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelson, quando você fala do seu apreço às teorias do Inconciente, definidas por Freud e as do Inconsciente Coletivo de Jung, você faz referencia ao que se entende, hoje,por alguns de que o Homem é um Ser Holistico.
    Isso quer dizer que o Homem é um Corpo Material atuante,presente mas que possui: mente/espirito e um corpo fantástico de emoções em Sincronicidade com oUniverso.
    Assim,ele permanece e vive interagindo com tudo e todos, ou seja, somos seres em Sincronicidade e Sintonia com oUniverso.
    Observei o seu relato da Caminhada na Lagoa e seu encontro"casual"com a pessoa que lá estava, em sua cadeira de rodas, relaxada em seu Universo Individual, buscando o encontro com sua essência e o Cosmos mostrando-se, prazeirosamente, entregue...
    Estava é provável muito mais feliz do que você que estava ,ali, relutante por poder andar,livremente...
    O Universo se encarregou de promover esse encontro e o bem que fez à você, levando-o a refletir ,fazendo com que valorizasse as coisas boas que existem em sua vida e a sua volta...FANTÁSTICO!!!!
    Essa pessoa que, de forma Mágica, fez renascer em você a vontade de mudar seus hábitos sedentários estava, inconscientemente, feliz por transmitir essa lição de vida a você e a quem mais precisasse...
    Foi um Mestre mesmo sem saber...anônimo, de certo,é a sua Missão Espiritual.
    Nada é por acaso ,inclusive, a forma como nos conhecemos ,lembra????
    Casualidade, não existe!Me disseram uma vez.
    O que efetivamente existe é a Sincronicidade.
    Sim, é a Lei da Atração e o principio da troca.
    Aprendi quando estudava O Poder dos Cristais que, quando vamos à uma loja comprar um Cristal, temos a ilusão de que o escolhemos.
    Na verdade, eles nos escolhem ou seja nos atraem e nós nos sentimos atraidos por ele.
    Se formos consultar as propriedades que ele tem, é incrivel, sempre é o que estamos precisando e que ,muitas vezes, racionalmente nos negamos a ver e crer. Enfim,Freud,Jung,Felline,Nelson,o Homem Desconhecido da Lagoa, enfim, Mentes Brilhantes, Mestres em Sincronicidade, em situações e épocas diferentes, mas, como disse antes, ACASOS não existem porque afinal tudo é Energia,Movimento,Som.... e todas as formas se transformam em LUZ!!!!

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  2. Em poucas palavras, muito bom! E pensar na especulação existencial oriunda de uma caminhada da Lagoa!

    Coincidentemente, revi "Morangos Silvestres" há não muito tempo, e me impressionei com a cena do sonho do professor (da qual já tinha me esquecido).Lembrei dela quando li o trecho de tua postagem em que falas sobre o cineasta.

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