segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O Coração Dizendo “Bata!”, a Cada Bofetão do Sofrimento


Há filmes que ambicionam desconstruir completamente a narrativa clássica tradicional (“O Signo do Caos” de Rogério Sganzerla), atingir patamares elevados de ousadia estética ( “2046” de Wong Kar-wai), expandir aos extremos recursos expressivos como o plano seqüência ( “Ninguém Pode Saber” de Hirokazu Kore-Eda), criar alegorias sobre a vida política de um país ou continente (“Terra em Transe” de Glauber Rocha), dar vida a universos pessoais só cabíveis no mundo do cinema ( “A Noiva Cadáver” de Tim Burton), funcionar como uma máquina do tempo e nos transportar para uma época especial da História ( “Barry Lyndon” de Stanley Kubrick ),etc...

Os caminhos do cinema são infinitos e à priori não há restrições a fazer. Importa o resultado que os filmes atingem. Há filmes, entretanto, em que os realizadores não têm grandes ambições formais, ainda que em outras ocasiões façam obras com propostas bem diversas. Querem se apoiar num tema forte e desenvolver este até suas maiores profundezas (são filmes de “escafandristas da alma humana” em primeira instância e o aspecto formal têm sua importância claro, mas não é o que fica mais evidente). São filmes como “O Quarto do Filho” de Nanni Moretti, “Cenas de Um Casamento” de Ingmar Bergman, “Irmãos” de Patrice Chéreau, “Os Últimos Passos de Um Homem” de Tim Robbins ( obra que segundo o diretor “abre janelas para onde as pessoas não querem mais olhar”), etc.

Numa era de computação digital, efeitos especiais avançadíssimos, câmeras cada vez mais sofisticadas e ágeis, experimentações de fotografia das formas mais diversas e inusitadas, etc... filmes como os já citados, com grande vigor, têm sido raros. O que é uma pena. Pois fazem parte também deste “Infinito Cinema”.

É nesta última linhagem que se pode incluir “As Chaves de Casa”( Itália/2004) de Gianni Amelio, uma obra de contundência e beleza quase que indescritível. O que se pode dizer sobre o filme levanta fantasmas de suspeição: pode-se contar uma história como ele se propõe, sem sentimentalismo barato, emoções prêt-a-porter? Amelio consegue com louvor esta proeza, trabalhando no fio da navalha. Há uma nobreza extraordinária que perpassa todas as seqüências, longe de um senso de observação frio, tanto quanto de uma adesão fácil.

Gianni (Kim Rossi Stuart, formidável) vai com o filho de 15 anos Paolo (Andrea Rossi) de trem, de Milão para Berlim, onde anualmente este último faz exames e treinamentos devido a deficiências cerebrais e motoras, oriundas de um parto onde a mãe morreu e ele sobreviveu retirado à fórceps. Seu desenvolvimento físico é limitado, parecendo mais jovem. O pai o vê pela primeira vez, pois se afastou por não suportar a dor de ter como filho uma criança deficiente, sendo esta criada pelos tios. A ida de Gianni à Berlim deve-se à idéia de melhorar a auto-estima de Paolo, que sempre soube que quem cuidava dele eram os tios e não os pais. Trata-se de uma viagem iniciática de descobertas mútuas. No hospital de Berlim conhecerão Nicole (Charlotte Rampling), que há vinte anos cuida de sua filha com problemas ainda mais graves que os de Paolo. Este alterna momentos de grande lucidez, bom humor e perspicácia com outros em que se mostra ausente, repetitivo e infantil. Ele precisa de um andador numa das mãos para se locomover. O encontro de Gianni e Nicole será um jogo de espelhamentos e refrações. Ela se mostra serena, com uma sofrida sabedoria. Ele (conforme ela detecta) a princípio, cheio de culpa e vergonha.

O desenvolvimento exemplar deste filme, cuja direção pressupõe-se deve ter sido muito difícil e árdua, com Amélio “descobrindo” seu filme à medida que o fazia (daí ter colocado seu nome Gianni como o do pai: os dois são desbravadores de territórios desconhecidos) é, mais do que dos cortes precisos e seqüências longas de acuradas observações e emoções, dependente de grandes interpretações dos atores. Andrea Rossi ( magnífico) tem histórico de vida diferente de seu personagem ( segundo o diretor foi criado com muita sensibilidade e inteligência por seus pais que sempre o incentivaram a não cair nas armadilhas da autocomiseração) mas tem deficiências parecidas. Isto confere ao filme um inquietante caráter que nos remete ao documental, com cenas onde improviso e planejamento se tornam indistinguíveis. Kim Rossi cria com acuidade e delicadeza um jovem pai aturdido, comovido e que num ambiente onde a língua lhe é estranha (acentuando suas barreiras) tenta construir uma rede de afetos à qual se furtou durante quinze anos. Charlotte Rampling (ainda mais soberba do que em “Sob a Areia” e “Swimming Pool-À Beira da Piscina” de François Ozon, dentre outros) constrói uma Nicole de nuanças extraordinárias (há um longo plano em seu rosto, com suas mutações de estado de espírito que nos lembra o melhor de Bergman com suas atrizes fetiches). Seu personagem é de aparente fácil apreensão, mas capaz de nos reservar grandes surpresas.

Em meio a tantas tempestades emocionais interiores há uma particular e belíssima cena de banho de pai e filho numa banheira que nos transmite uma alegria de viver, rara de se ver no cinema contemporâneo. Esse diferencial seria porque Amelio é da estirpe dos grandes cineastas tidos como humanistas, palavra hoje considerada um palavrão, por certa (ou grande ?) parte da crítica cinematográfica?

Em “As Portas da Justiça” um juiz (Gian Maria Volonté) move mundos e fundos para que um homem truculento que matou o patrão que tinha um caso com sua esposa, não seja condenado à morte, ainda que seja hostilizado e desafiado pelo próprio assassino, durante o período do fascismo italiano. Em “América- O Sonho de Chegar”, albaneses fogem de uma Albânia em colapso social e econômico e tentam atingir a Itália com a mesma sofreguidão com que muitos imigraram foram para os EUA. Junto a “As Chaves de Casa” temos diferentes abordagens de um tema recorrente: a necessidade de valorizar ainda mais a vida humana em situações limites. Há quem não acredite que o cinema tenha a capacidade de mudar o mundo (a reeleição de Bush apesar do estardalhaço do documentário de maior público da história do cinema que é “Fahrenheit 11 de setembro” de Michael Moore, é citada como um exemplo), mas no fundo o cinema (e a arte de modo geral) acaba provocando mudanças insondáveis no ser humano e indiretamente no mundo. Sem a arte certamente teríamos um mundo asfixiante e estaríamos longe de “um mundo menos pior”. Amelio com seus filmes nos incita a sermos bem mais tolerantes com os que nos rodeiam. Não é uma façanha pequena.

Em “As Chaves de Casa, ”Deus do Fogo e da Justiça”, cantada por Virgínia Rodrigues como fundo em uma das últimas seqüências e durante os letreiros finais passa um sentimento de altivez, orgulho, resistência, afirmação de vida, mas não deixa de trazer também uma carga de melancolia ancestral: é uma música fruto da herança afro-brasileira que gerou o candomblé praticado no Brasil, dentre outras particularidades, mas que tem que sobrepujar a angústia histórica que vem do tráfico de escravos, a insalubridade e horror dos navios negreiros, a escravidão, o banzo capaz de matar, as tentativas de fuga, os pelourinhos, os castigos aplicados pela Casa Grande à revolta das Senzalas. Essa música é emblemática do filme, pois por mais que os personagens procurem lidar com o inexorável, as imperfeições cruéis que podem se apossar das existências, suas fortalezas que tentam construir como escudos contra o sofrimento, são também eivadas de melancolias. Isso fica mais evidente num desabafo atordoante de Nicole.


Depois do já citado trabalho de Nanni Moretti e do assombroso e atordoante ritual de perda da inocência de “Eu Não Tenho Medo” de Gabriele Salvatores, bem como de “Novo Mundo” de Gabriele Crialese, “As Chaves de Casa” desponta como um dos grandes (e raros) filmes italianos lançados no Brasil nos últimos anos, à altura do prestígio histórico da cinematografia italiana, que para quem escreve, é ainda, provavelmente, a mais fértil e poderosa da história desta arte. O cinema italiano é repleto de obras primas imprescindíveis de numerosos grandes mestres que poderiam ter se dedicado unicamente às Artes Plásticas, à Filosofia, ao Teatro, à Literatura, à Ópera, etc... mas se renderam à expressividade da chamada sétima arte. O instigante cinema contemporâneo que nos vem de cinematografias de paises asiáticos, em seu conjunto, ainda tem “muito chão pela frente” para poder estar à altura deste legado já eternizado do Mediterrâneo.

Nelson Rodrigues de Souza

3 comentários:

  1. Nelson,
    Belo texto!
    Embora admire experiências estéticas inovadoras e a busca de novas linguagens, para mim elas se tornam muito melhores quando não deixam de lado esse mergulho na alma humana. E, para ser sincera, quando é possível aliar forma e conteúdo, ótimo! Mas, caso contrário, dou mais valor a um bom conteúdo do que a uma boa forma - e isso vale pra tudo na vida!
    Gianni Amelio é um grande artífice da delicadeza no cinema. Assisti a um outro filme dele no Festrio que gostei muito: "A Estrela que não é" - título em português. O personagem interpretado por Sergio Castellitto empreende uma jornada(também de autoconhecimeto) China adentro em busca de uma máquina defeituosa vendida pela indústria italiana aos chineses. Como chefe de manutenção da indústria, que sabe que o equipamento já causou na Itália a morte de um operário, ele vai tentar evitar outros acidentes. Uma história aparentemente improvável nos dias de hoje, de extrema crença no ser humano.
    Grande abraço.
    Gina

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  2. Gina,

    Acho um absurdo que Gianni Amelio, um dos grandes cineastas do cinema italiano contemporâneo tenha filmes como "A Estrela Que Não É" exibido apenas em festivais. As distribuidoras e os exibidores de programação alternativa deveriam estar atentos a isto. Se fosse exibidor, manteria contactos frequentes com as distribuidoras mencionando os filmes que desejaria exibir. Dizem que as coisas não funcionam assim. Mas por que não pode haver uma mudança???Vários outros grandes cineastas como Theo Angelopoulos e Tsai Ming-Liang têm carreira descontinuada no país. Isto deseduca os cinéfilos e joga água no moinho dos que apelam a pirataria.
    Abraços,
    Nelson

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  3. Encontrei o seu blog hoje via Ana Maria. Passei só para te dizer que adorei o nome do blog. Com certeza ficarei fã. Abraços e sucesso
    Lucimar

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