segunda-feira, 23 de maio de 2011

Encontros e Fugas, Fugas e Encontros






















Encontros e Fugas, Fugas e Encontros

(Os textos contém alguns spoilers, ou seja, alguns detalhes são adiantados para a análise pretendida)

1- “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” (Brasil/2008) de Domingos Oliveira

Mesmo Domingos Oliveira tendo feito sucesso condizente com suas ambições e orçamentos, com os filmes de sua retomada particular no Cinema Brasileiro a partir de “Amores” e sendo então uma adaptação de uma peça sua de bastante sucesso no Teatro, feita em parceria com o psicanalista Alberto Goldin, com base nas cartas que recebe e responde na Revista de O Globo aos domingos, “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” de 2008 só encontrou espaço para exibição agora em maio de 2011.

Projetos para o cinema não faltam a Domingos (uma peça sua que se bem adaptada daria ótimo filme seria “No Brilho da Gota de Sangue”, um policial brasileiro singular, por exemplo). Assim, mesmo com sua pessoal e generosa proposta do BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral), com filmes bastante interessantes e que dificilmente não vão se pagar, Domingos encontrou forte dificuldade para colocar nas telas, uma obra que sem abrir mão da inteligência que lhe é habitual, tem possibilidades de dialogar com grandes plateias, conforme deixa antever o amplo circuito em que agora é lançado, deixando patente que o maior entre os maiores problemas do Cinema Brasileiro é o gargalo na exibição. Já citei medidas de proteção de telas e acompanhamentos em outro post. Não vou aqui repeti-las.

Para quem não conhece, recomendo o trabalho em imprensa de Alberto Goldin. O esquema é simples. Pessoas mandam cartas a ele relatando problemas sentimentais e sexuais das ordens mais variadas nas mais diversas idades. Ele, como todo bom psicanalista, não diz o que a pessoa deve fazer, mas sim escreve numa linguagem em que a psicanálise arguta, a sabedoria dos anos e certa poética levantam aspectos para serem refletidos e daí sim, a pessoa aflita possa tomar decisões, que a rigor, são por sua conta e risco. Não poderia ser de outra maneira.

Como os textos de Goldin, “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” narra histórias de questões afetivas e sexuais de forma completamente desabrida e não preconceituosa. A grande diferença é vemos os personagens tomarem decisões “certas” ou “erradas”, diante dos dilemas com os quais se defrontam, pois se trata aqui de dramaturgia e não de coluna em revista. Tudo temperado por muito humor, que é instilado na plateia, por mais que nos reconheçamos aqui e ali em alguma situação narrada nas cinco cartas, um prólogo e um epílogo que compõem o filme.

Pedro Cardoso, Claudia Abreu, Priscilla Rozenbaum, Orã Figueiredo, Paloma Riani, Ricardo Kosovski se revezam em vários papéis, mas quem predomina nos episódios, mostrando o grande ator cômico que é, com o tempo certo para não perder o time das situações e insinuações, enfatizando que se ele é um ideólogo bastante discutível do senso de oportunidade da nudez no cinema, como ator é irrepreensível e o esteio do filme.

Entre os episódios, Domingos Oliveira com seu adorável jeito gauche de se apresentar/falar comenta temas ligados ao filme junto com seu grupo de atores amigos (uma característica do artista é trabalhar com amigos, como John Cassavetes, uma das formas possíveis de se fazer arte, o que com ele funciona muito bem, pois os amigos são realmente talentosos, não havendo nepotismo). Com a mulher Priscilla já fez trabalhos memoráveis como “Separações” e o pouco visto “Carreiras”, sensacional e ácida adaptação da peça “Corpo a Corpo” de Oduvaldo Vianna Filho, de uma atualidade impressionante (que vi numa extraordinária montagem do Grupo Tapa de Eduardo Tolentino, numa interpretação arrasadora de Zécarlos Machado). Priscilla Rozenbaum não fica atrás e em “Carreiras” tem seu melhor trabalho no cinema, ao retratar o ódio que uma mulher acostumada a um alto cargo na televisão, passa a sentir quando descobre sua perda de status na carreira, afogando-se em mágoas e muito fel destilados e carreiras de cocaína, até um final redentor, mas amargo.

Em “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” temos o casal que entra em crise depois que a mulher descobre que teve uma relação sexual fantástica com o marido, mas ele estava utilizando viagra; o casal puritano que resolve expandir o prazer praticando swing; o farmacêutico que conversa com a colega o tempo todo sobre sexo, mas não pode encostar-se a ela sem estrilos; o casal que estabelece contacto pela internet mas só se encontra no escuro até que um dia a luz de uma geladeira aberta escancara a imagem de um ao outro, trazendo crises; o casal que se desfaz e tenta se refazer depois que o marido descobre os prazeres do sexo anal, vivenciando relações homoeróticas. E um epílogo decidido depois de muitas dúvidas sobre como acabar o filme.

“Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” inclui cenas teatrais da peça, seja em exibições por teatros do Rio ou encenados para o filme no Teatro Dulcina, em muitas continuidades de interessante efeito dramático em que a mudança de tom, mais do que causar estranhamento, é reveladora do que estas duas formas de arte podem ter de semelhanças e distanciamentos, num jogo insinuado propositadamente em todo o filme, em que o cinema homenageia o teatro e vice-versa.

“Todo Mundo Tem Problemas Sexuais” não é o máximo da comédia, mas muito provavelmente é muito mais instigante e inteligente do que muita coisa que se apresenta como comédia nas telas e só os trailers já denunciam a infantilidade, quando não, a mesmice, para cortejar adolescentes pouco exigentes e adultos infantilizados.

2- “Caminho da Liberdade” (EUA/2010) de Peter Weir

O título em português não seria o clichê que é se o título original fosse mantido, “O Caminho de Volta”, que tem muito mais a ver com a essência do filme. Baseado numa história real que hoje é até contestada, o que importa mesmo nesta volta de Peter Weir ao cinema, de tantos grandes sucessos de público e crítica (“A Testemunha”, “Sociedade dos Poetas Mortos”, “O Show de Truman” etc.) é que “Caminho da Liberdade”, embora aqui e ali desafie nossas noções de verossimilhança quanto à capacidade dos personagens vencerem fortes barreiras para sobreviver, no conjunto é um filme muito bem dirigido, onde a câmera sempre da a saudável impressão de que está onde melhor poderia se localizar (o que é uma ilusão, pois as opções são inúmeras, mas uma ilusão prazerosa), além de ter um conjunto homogêneo de convincentes performances dos atores.

Januz (Jim Sturgess) tem sua mulher torturada na Polônia dominada pelos russos, o que o faz tornar-se um espião, condenado a ser enviado para a Sibéria. A única forma de fazer com que a mulher que sabe estar viva, liberta, perdoar-se, é reencontrando-se com ela, o que o faz ter a maior vontade de abandonar o inferno gelado construído pelo stalinismo. Vlaka (Colin Farrell, cada vez melhor ator) é um russo prisioneiro manda-chuva do campo que chega até mesmo a matar colega para ficar com seu casaco que não lhe foi entregue “por espontânea” vontade.

Numa primeira parte “Caminho da Liberdade” não economiza no retrato do horror que é um campo de trabalhos forçados na Sibéria, onde “a paisagem em torno, seria a maior inimiga” e moradores nestes domínios entregariam por boa recompensa os fugitivos que encontrassem.

Sete presos iniciam um projeto de fuga pelas regiões geladas, dentre eles Januz (uma espécie de guia que sabe entender a orientação dos pontos cardeais), Sr Smith (Ed Harris, num personagem que cresce com o tempo) e até mesmo Vlaka, pois este detém um recurso essencial para a longa travessia e sobrevivência de todos: uma faca. Ao grupo irá se juntar mais tarde Irena (Saoirse Ronan) que conta de início fortes mentiras para provocar piedade nos colegas fugitivos, com medo de ser um empecilho e ser descartada. O frio congela literalmente um dos fugitivos, provocando a primeira baixa.

Em “O Show de Truman”, Peter Weir nos mostra um homem (Jim Carrell, numa grande composição) que desde bebê é criado numa cidade toda controlada em que até mesmo “seus pais” estão representando, sendo sua vida um show que as pessoas, num misto de tédio e falta do que de melhor ter a fazer, acompanham como se fosse uma longuíssima novela. Até que um dia o jogo começa a virar, quando Truman desconfia que haja algo errado com a cenografia em que está mergulhado.

“O Show de Truman” em 1998, ao seu modo, antecipou a febre de realities shows que passou a assolar o mundo e no Brasil parece ter uma resistência maior em suas várias formas de sobrevivência: uma delas o BBB da Rede Globo. Tenho a maior admiração pela cultura, inteligência e sensibilidade de Jean Wyllys. Votei nele para Deputado Federal pelo PSOL (como ele ainda acredito numa forma de socialismo que deve mais ser repensada, democrática e sem autoritarismo, pois tanto eu como ele, não temos o pecado original do stalinismo, do castrismo etc.). Mas depois de tantas edições de BBB, nas poucas vezes em que tentei assistir ao programa me deu mal-estar profundo, pois se a pessoa que estiver imersa na casa não tiver cuidados, pode ver despertada em si o pior: egoísmo, exibicionismo, ociosidade, arrivismo, dissimulações várias, desprezo pelo outro etc. Continuo achando que Jean Wyllys é uma das poucas flores que nasceu deste lodo em que vejo o talento de Pedro Bial se perder em frases bombásticas sobre a “jornada dos heróis”.

Como vivemos num mundo em que para cada ideia há sempre uma contra-idéia, há quem considere “O Show de Truman” ultrapassado pela realidade dos realities shows, numa atroz inversão de valores, quando o filme se antecipou à esta apoteose de comercialização e espetacularização de tudo, até mesmo da intimidade das pessoas, sendo uma crítica sagaz em tom de fábula ácida a este estado de coisas que já era crítico e se acirrou.

Em “Caminho da Liberdade” tudo se passa como se Peter Weir dissesse: “É reality show que o público quer, então me deixem dar-lhe um jogo de vida e morte como poucos!”. Assim a jornada que vai da Sibéria ao Tibet, depois à Índia e por fim de volta à Polônia (onde teremos uma síntese da história polonesa nos últimos anos, culminando com comovente encontro, deixando para o passado, os que mudaram de caminho ou morreram numa luta contra a fome, o frio, as miragens enganosas ou reais, a falta de água (onde a presença de uma cobra pode trazer alegria por conduzir aonde tenha água), além do grande cansaço físico e vontades de desistência, tudo filmado de forma belíssima conjugando seres humanos consumidos pela dor e paisagens ora hostis, ora favoráveis) é algo que não se esquece.

“Caminho da Liberdade” não tem a força e contundência de “O Sobrevivente” de Werner Herzog, num tema correlato, com Christian Bale em mais um dos seus grandes trabalhos camaleônicos, mas é um filme estimável que se não tem a grandeza dos ápices que Peter Weir já atingiu, merece ser visto e prestigiado.

Em “Sociedade dos Poetas Mortos” o professor ensina aos alunos que poesia não se apreende cartesianamente com gráficos. Em “Caminho da Liberdade” se extrai poesia até mesmo da oportunidade de ser dono de uma faca redentora e dos embates da vida constantemente ameaçada pela morte.

3- “Chuva” (Argentina/ 2008) de Paula Hernandéz

Bastante significativo da atual parvoíce que assola a distribuição e exibição cinematográfica no Brasil, é que até mesmo o Cinema Argentino contemporâneo que tinha tido maior acolhida nos últimos anos nas telas, agora desapareceu (com raras exceções) e um filme, no mínimo tocante, como “Chuva”, demora este tempo todo para chegar e só encontra espaço na grade do Arteplex-RJ numa única sessão por dia.

Numa Buenos Aires em que chove bastante durante três dias de forma contínua, Roberto (Ernesto Altério) foge de umas pessoas e refugia-se no carro de Alma (Valeria Bertuccelli) num congestionamento. A princípio assustada como o intruso, passa até a ajudá-lo num ferimento que tem nas mãos. Os dois farão revelações mútuas paulatinas. Mas o que fica claro desde o inicio é a insatisfação em que estão com suas vidas.

O melhor momento do Cinema, que conheço, em que há um encontro temporário que merecia ser permanente, mas os personagens não conseguem quebrar seus grilhões e ter coragem suficiente para mudanças é na obra-prima “Desencanto” (1945) de David Lean ( mostrando que o mestre dos épicos não era fantástico apenas nesta seara, mas também nos dramas intimistas sem grandes ambições visuais) . Laura (Celia Johnson) e Alec (Trevor Howard) compondo o casal que poderia ter sido e não foi, formam uma das grandes histórias de amor no Cinema, em que predomina o espírito de “Noites Brancas” de Dostoiévski, filmado magnificamente por Luchino Visconti: “Não serão alguns momentos de felicidade o suficiente para iluminar toda uma vida?”

Num grau menor, com esta temática da possível efemeridade de um grande encontro, em que decisões cruciais precisam ser tomadas em pouco tempo, temos “Na Cama” e “A Vida dos Peixes” do chileno Matias Bize. “Chuva” é mais um filme desta falange, mas que não deixa de manter sua singularidade. O curioso é que os personagens protagonistas de “A Vida dos Peixes” se sentem como peixes aprisionados num aquário.Já os de “Chuva” seriam peixes tolhidos pela chuva, solidão e indiferença da cidade grande diante de seus pequenos dramas.

Numa caixa de fósforos deixada no carro, Alma descobre o hotel onde Roberto está hospedado, o que lhes proporcionarão novos encontros, mas todos eivados de desconfianças até que não mais resistam à atração mútua e escolhas fortes tenham de ser feitas.

Alma num impulso fugiu de casa e do marido, passando a morar no carro. Roberto tem mulher e filha em Madri e veio a Buenos Aires para um acerto de contas com o pai agora doente, um músico que o abandonou e à mãe quando ele tinha seis anos. Só lhe resta dar um destino aos bens paternos, incluindo um bastante simbólico piano que os carregadores num primeiro momento não conseguem carregar, deixando-o confrontar-se com o que há de mais representativo do pai, agora quando ele morre sem que tenham sequer conversado.

Unindo, contando e dividindo suas dores para as verem mitigadas, Alma e Roberto tem o incômodo da chuva que não para, por outro lado, a seu favor, pois há como que uma suspensão do tempo normal para fazê-los pensar e agir, como que num ritual de purificação, muito bem filmado por Paula Hernandéz, onde a beleza de Buenos Aires ainda fulgura mesmo embaçada pela água que cai.

Para um filme assim estruturado ser tão interessante teria de contar com ótimos atores e grandes sutilizas, o que temos de sobra em Ernesto Altério e Valeria Bertuccelli.

Se os amantes terão destinos próximos ao dos personagens dos filmes citados ou não, uma visão deste filme que cativa e se explica com paciência e flashbacks pertinentes, vai elucidar. Quem se dispuser a este passeio com os personagens vai sentir que a rigor acontece algo como num título de Bergman que não vi, mas não esqueço: Chove sobre nosso amor. Para o bem e/ou para o mal.

4- “Ato de Comunhão” de Lautaro Vila, performance e direção artística de Gilberto Gawronski, com co-direção de Warley Goulart- Galeria do Teatro Sérgio Porto-RJ

Na magnífica “Na Solidão dos Campos de Algodão” de Bernard-Marie Koltès, encenada no Sérgio Porto, Gilberto Gawronski e Ricardo Blat, em primorosos, vigorosos e exasperantes desempenhos, já tinham nos transmitido paroxismos da solidão ao darem vida a dois personagens em que há uma negociação mercantilista em jogo, mas não sabemos de quê: seria drogas, o próprio corpo, passaporte falso etc.?

Agora no monólogo do argentino Lautaro Vila temos a solidão em seu mais alto grau, escudada inicialmente no mundo virtual, com base na impressionante história verídica ( enfatizando a ideia de que a realidade pode engendrar histórias ainda mais incríveis que a mais sagaz imaginação) do engenheiro alemão Armim Meiwes, condenado à prisão perpétua por ter devorado um homem que conheceu pela Internet. Detalhe: houve consentimento por parte do ser canabalizado. Segundo conversa que tive com Gawronski após o espetáculo, ao ser colocada explicitamente a proposta na Internet apareceram 490 pessoas dispostas a serem devoradas. Uma delas foi a escolhida.

O que faz a grandeza do espetáculo é que além da poesia crua que Lautaro cria para seu texto, temos aqui um ator maduro que é Gawronski numa composição minuciosamente bem construída, em que chega em alguns momentos a silenciar, para dar vez à sua voz gravada e depois continuar o texto de um determinado ponto num mesmo tom de voz distanciado, frio, cirúrgico, de forma que ainda que se mostre uma situação de romantismo in extremis, não há fetichização laudatória ou caudatária, mas sim um espírito crítico aguçado, composto com a inclusão de interessantes projeções nas paredes, que fazem da peça, encenada numa galeria adquirir ares de uma instalação.

“Ato de Comunhão” narra momentos da infância de Armim quando ele se decepciona na perda de jogos de corrida em computador, bem como um significativo momento em que ao mesmo tempo em que vivencia o funeral de sua mãe, percebe a frieza burocrática do mundo até mesmo neste momento de grande dor. Mas aqui temos um caso em que “Freud não explica”. Estes fatos narrados que antecedem o ritual requintado de antropofagia (com direito a vinho e receita detalhada de temperos, que começou por uma filmagem do homem a ser devorado narrando sua espontânea vontade de estar ali para aquela situação para uma câmera armada, sendo seu pau, significativamente, a primeira parte de seu corpo a ser cortada), enfim, estes antecedentes expostos com incômoda força poética, não explicam este “ato de comunhão” que temos por fim.

Imagens de Francis Bacon, pintor de “pedaços de carne” e outras fantasmagorias humanas, bem como as que a internet e suas câmeras criam, são inspiradoras do cenário instalação, havendo projeções literais de quadros do artista. Um dos belos momentos da peça se dá quando uma projeção de Bacon reflete-se no rosto de Gawronki, ensanguentando-o. Mesmo com toda a elegância e sutileza com que o que poderia ter sido escabroso, mas é tornado cênico, já houve quem desmaiasse no espetáculo só pelo que ele sugere pelas falas, pois não há nada explicitado. Não estamos aqui num filme (e aqui não entra nenhum juízo de valor) de Peter Greenaway.

Para o protagonista o que fez foi um ato de generosidade, pois sua vítima desejava morrer. Não quer ser tido como insano, desejando um julgamento normal. Sabe que sua história se transformará num filme, mas quer ter ingerência no roteiro para não haver, segundo sua ótica, desvirtuamento. Não quer continuações para sua história. Não é Hanibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”. Quer John Malkovich para representá-lo. O refinamento com que o canibal faz a embalagem de seus horrores é sintomático de um mundo que nos sufoca escudado friamente em teorias pretensamente bem construídas. A nós resta reagirmos ou sermos devorados.

5- “Duas Histórias” – “Um Conto Nefando?” (adaptado de um conto de Sérgio Sant’Anna) com Felipe Rocha; “Alcubierre”, texto e interpretação de Alex Cassal; direção de Felipe Rocha e Clara Kutner- Grupo Foguetes Maravilha- Teatro Sérgio Porto

Do Grupo Foguetes Maravilha já foi comentado em blog anterior o instigante “Ninguém Falou Que Seria Fácil”, então em cartaz no Teatro do Planetário-Maria Clara Machado. Agora numa ocupação do Teatro Sérgio Porto temos mais duas peças em cartaz, além desta que lhes deu maior prestígio. A anterior “Ele Precisa Começar” e uma que estreou em maio de 2011: “Duas Histórias”.

“Um Conto Nefando?” percorre os sentimentos de um jovem que com ciúmes de sua mãe que tem um namorado jovem, vai progressivamente se envolvendo com ela, numa relação incestuosa narrada com densa delicadeza, espanto e um trabalho interno posterior para que isto não se transforme numa experiência traumática. Felipe Rocha desenvolve os meandros poéticos do texto com sutileza e aproveita sua experiência na Intrépida Trupe e como dançarino para espantosas evoluções coreográficas no palco que ressaltam o estado de espírito de inquietação do personagem. A mãe, cúmplice no que seria o ato nefando só lhe pede para que goze fora.

O melindroso tema do incesto foi magnificamente trabalhado em “Sopro no Coração” de Louis Malle e em “La Luna” de Bernardo Bertolucci. Aqui pelas limitações do curto monólogo, temos mais um sopro poético do que uma noção maior de desenvolvimento. Não deixa de ter seu incômodo, mas também encantamento, por mais arriscado que seja o tema tabu.

“Albierre” com esplêndido trabalho de Alex Cassel, num cenário em que alguns dos pequenos elementos vão ganhando significado aos poucos, é centrado nas inquietações de um jovem de 12 anos que fala sobre passado, presente e futuro, primordialmente sentado numa cadeira diante de uma mesa, aonde chega a refletir até mesmo sobre jogadores de um time de Porto Alegre formados por bonequinhos. A mistura de um ar infantil com reflexões de um adulto, que se alternam, chegando até a momentos em que o jogo teatral é quebrado com referências metalinguísticas ao ambiente em que se está se dando o espetáculo, produz um alinhavamento de situações lúdicas em que é preciso perícia e talento do ator para não se perder na perda a que se propõe. Esta experiência teatral que temos em “Albierre” é radicalizada em “Ele Precisa Começar” que comentaremos adiante.

6- “Ele Precisa Começar”- texto e atuação Felipe Rocha- direção de Felipe Rocha e Alex Cassal- Grupo Foguetes Maravilha- Teatro Sérgio Porto.

Felipe Rocha faz um autor de 35 anos, fechado em um hotel que quer contar uma história ainda a ser descoberta. Sua primeira fala é bastante significativa de seu impasse criativo: Ele precisa começar. Ao mesmo tempo em que é narrado o que o autor pretenderá narrar, isto também é mostrado pela voz do autor, num jogo de entra e sai do personagem constante, em que pessoas da plateia são convidadas a participar, principalmente na representação de Fátima que insiste em entrar no hotel e vai desencadear histórias ainda mais imprevisíveis.

“Ele Precisa Começar” é um ensaio aberto de dramaturgia, mas ao mesmo tempo tem seu rigor interno, pois caso contrário Felipe Rocha se perderia em sua proposta. Há momentos em que comenta como a dramaturgia contemporânea tem seus truques, em outros explica como quem quiser ir embora por não estar gostando do espetáculo pode sair do teatro, desde que os outros não o censurem. Só que ao sair do teatro encontrará o autor e Fátima e a história tomará outro rumo imprevisível.

O jogo de ficção e realidade (a pessoas da plateia é pedido que em dado momento cubram os personagens com um lençol, o qual servirá depois para um exame proctológico que faz parte de uma maratona a procura de uma história que a alinhave) é constante, havendo aqui também a realidade na ficção.

Como em “Ninguém Falou que Seria Fácil” e “Uma História Nefanda?”, Felipe Rocha além de uma interpretação bastante delicada onde os momentos de explosão como o que tem com a “burrice” do corretor automático do Word são potencializados, se vale um precioso trabalho corporal com evoluções rápidas no palco que ampliam a angústia criativa do autor à procura de histórias.

Numa matéria de capa do Segundo Caderno de O Globo de 17 de maio último, o dramaturgo e diretor Roberto Alvim, em cartaz no Rio de Janeiro com “45 Minutos”, monólogo com Caco Ciocler e em São Paulo com “Pinokio”, comenta a necessidade de se ter uma nova dramaturgia que capte as grandes transformações rápidas por que é perpassada a contemporaneidade. Em nome deste ideal, cai em exageros como afirmar que Shakespeare ou um Tennessee Williams, por exemplo, não dariam conta mais dos problemas contemporâneos, o que subestima bastante o que estes autores como tantos outros captaram da condição humana, da luta pelo poder e seus estratagemas, da solidão inerradicável do ser humano etc. e a transformaram em clássicos, que comentam qualquer época em que vivamos.

De qualquer modo, quem estiver com esta ânsia de contemporaneidade, mas sem afetação no discurso teórico, não perca os trabalhos do Foguetes Maravilha que ficam no Sérgio Porto até dia 29, sendo quinta próxima o último dia de “Duas Histórias”, de sexta a domingo as encenações finais de “Ninguém Disse que Seria Fácil” e domingo a última de “Ele Precisa Começar”. Não representam a forma de dramaturgia a ser seguida, algo paradigmático a captar nossas atuais confusões existenciais, mas uma forma de dramaturgia aliciante e que arrebata para quem se dispuser a entrar nos jogos cênicos plenos de criatividade e élan vital.

7- Um Tanto de MPB

7.1- “Peixes Pássaros Pessoas” de Mariana Aydar

A avalanche de novas cantoras que tem surgido na MPB contemporânea é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que atesta a sua vigorosa vitalidade, cria uma dispersão muito grande que acredito nem críticos musicais que estejam recebendo os CDs com regularidade, estejam com tempo suficiente para uma avaliação mais consequente, pois a música, mais até que outras formas de arte, exige várias audições para ser plenamente fruída. Assim se dissermos a alguém que precisa ouvir com urgência, por exemplo “10 cantoras novas aqui”, ele pode nos perguntar se já ouvimos ’10 cantoras novas ali”.

A falência das gravadoras e o salve-se quem puder dos downlouds grátis aumenta ainda mais a confusão. Sou tanto a favor que se reveja e analise melhor o potencial do Creative Commons, como de um controle pelo MINC do ECAD, de cabo a rabo, pois não é de hoje apenas que artistas se sentem lesados pelo órgão. Agora, cabe à classe artística se organizar bastante, discutir bem o que quer, os meios disponíveis. Enfim se politizar mais. Na ditadura militar “o inimigo” era claro e óbvio. Os artistas fizeram bem a sua parte para detoná-la. Agora há que se dar mais tratos à bola para saber melhor o que querer, fazer e reivindicar. Em boa hora a Ministra Ana de Hollanda colocou estas questões para discussões. Mas e se Juca Ferreira tivesse continuado no cargo, tudo continuaria como antes? Já estava tudo resolvido em termos de direitos autorais na Era Lula de 8 anos? Onde esteve a classe artística que agora apoia Ana, neste tempo todo do governo passado? Tinham se conformado em perder direitos autorais? Quanta alienação e despolitização! Muitos artistas assinaram manifestos para a candidatura Dilma e outros foram ao Teatro Oi Casa Grande para prestar solidariedade a esta campanha. E no entanto no que diz respeito a algo básico que é a sobrevivência ( “Não me peçam para dar de graça, a única coisa que tenho a vender”- disse Cacilda Becker) estava muito mal resolvido, sem maiores reações. Estas chegam agora a reboque da ousadia de Ana de Hollanda.Algo que não se previa. O que se esperava era a continuidade, “lenta e gradual”.

Maria Gadú é grande compositora, cantora e intérprete de músicas alheias. Seus trabalhos até aqui tem mostrado isto. Mas por que, dentre tantas outras grandes cantoras ela foi eleita pelo público para ter sua carreira rapidamente alavancada desde um show que começou timidamente no Cinematéque de Botafogo? Será por seu visual moleque que supre, em parte, a saudade de Cássia Eller? Será por sua bela voz que remete um pouco a Marisa Monte que resolveu levar a carreira em fogo brando enquanto curte mais os filhos que teve crescerem? Enfim, no fundo é um mistério.

Na enxurrada de cantoras que neste caso, por indicação de O Globo, chegou às minhas mãos, está o trabalho extraordinário da não menos extraordinária Mariana Aydar, condensado no CD “Peixes Pássaros Pessoas” ( 2009), num formidável repertório de inéditas em que se destaca Duani, dentre Kavita, Nuno Ramos e outros. Aguardei o maior sucesso depois. E , a rigor, pouco aconteceu. Pelo menos que fosse à sua altura. Nunca consegui ver show dela no Rio de Janeiro. Ela ficou como um peixe mergulhado neste mar de cantoras que surgem a todo o momento. E merece muito mais do que isto, pois tem tanto domínio para os grandes sambas como para criações arrojadas como a faixa “Peixes” de Nenung, onde a fragilidade da condição humana é exposta com candente crueza e um desfecho que arrepia ainda mais.

Mariana Aydar se sente como quem fez o CD que quis, com grandes músicos, onde também se destaca Duani, em vários instrumentos. Um samba interpretado junto a Zeca Pagodinho (“O Samba Me Persegue”) é irresistível, pois aqui ela entra na seara dele e leva toda sua sofisticação à espontaneidade cativante de Zeca.

A poética singular que as letras nos trazem não é menos admirável:

“Cesso este tormento/ E enxugo todo o seu pranto/ Com a força e o sentimento/ Que carrego no meu canto”; “Eu me entendo escrevendo/ E vejo tudo sem vaidade/ Só tem eu e este branco/ Ele me mostra o que eu não sei”;”É nosso sol/ É nosso ardor/ É nosso tanto de calor/ Que vem, que vai/ Inunda o céu de cor”; Tu já é de casa/ Te conheço a tanto tempo/ Sei de tudo/ Leio até teus pensamentos”; “Fui viajar/ Pra ver o sol morrendo no mar”; “Eu abri meu salão/ Pra estas folhas secas do chão/ E deixei todo o vento entrar/ Saía do meu pulmão”; “Peixes, Pássaros, Pessoas/ Nos aquários, nas gaiolas/ Pelas salas e sacadas/ Afogados no destino/ De morrer como decoração das casas”; “Não vê que eu/ Nasci aqui/ Da minha voz?/ De todos nós/ E todos nós/ Do mesmo pó das estrelas”; “Vivendo a liberdade/ Atrás de muros cercados na solidão/ Sem falar que isto é para poucos/ Pois a maioria não tem opção”; “Já cantei em francês, fiz som moderninho/ Mas volto pro mesmo lugar/ O samba me persegue/ E eu não vou negar”;”Teu amor é pouco/ E eu preciso mais/ Me cansei,não volto atrás/ Se é por falta de adeus/ Já pode ir em paz”; “Pega o que trago no bolso/ Notas, poeira. tabaco/ Nem mesmo sei o endereço do seu número novo/ Eu te dou esta poeira, esse vácuo”

Esta mostra destacada nem sempre é a mais interessante das letras. Há outras, mas são bem longas. Ficam para quem quiser ouvir a voz singular de Mariana Aydar, um peixe saboroso que merece ser degustado em meio a este mar revolto, estimulante, inevitável e bem vindo, mas que pode trazer confusões e indiferenças. Não há bônus sem ônus na vida.

7.2 “Dois de Fevereiro”- Mateus Sartori interpreta Dorival Caymmi

Ao contrário do que deveria acontecer com outros grandes compositores brasileiros, Dorival Caymmi tem inúmeros trabalhos dedicados só a sua obra, desde um show inesquecível de Mônica Salmaso que merecia ser transformado em CD, passando por “Gal Canta Caymmi”, “Mar de Algodão” de Olivia Hime e trabalhos de Nanna Caymmi e irmãos. Pensando bem: não são tantos assim; Caymmi merece bem mais.

Um tributo pouco comentado e desconhecido é o de Mateus Sartori em “Dois de Fevereiro”, com sua voz potente, quente e belíssima, na contra-corrente do que se convencionou chamar o estilo João Gilberto ( nada contra isto, mas tudo contra hegemonias redutoras). Em “ O Quilombo” de seu CD “Todos os Cantos” há um dueto dele com Renato Braz , com ambos impecáveis, sem desnível.

Caymmi é um compositor único da MPB. A ele só Noel Rosa lhe pode “fazer sombra”, se que pode. Mas enquanto Noel descuidou-se da vida, morrendo cedo, por não ouvir conselhos médicos, compondo sem parar de uma forma auto-destrutiva, Caymmi como se não bastasse a grandeza da obra em que tudo que fez é um clássico, soube bem aproveitar a vida e não teve pressa para fazer suas músicas. Levou anos para considerar acabada “Sargaço Mar”. Quanto a terminou nos legou mais uma obra-prima. Mateus Sartori a interpreta com grande emoção (com alías em todo o CD) que não deixa nada a dever a outras gravações, no melhor estilo “solto a voz nas estradas/já não posso parar”, sem receio de se aproximar do excesso mas ( como nas outras faixas que cobrem fases diferenciadas de Caymmi) jamais soando over, apenas mostrando a bela voz e a extensão que tem, o que pode soar antiquado a alguns ouvidos modernos fanáticos pelo cool , que se esquecem que assim como as canções, os artistas devem se abrir às maiores diversidades, que é o que realmente faz a riqueza da MPB. Há lugar para Fernanda Takai com sua delicada e tênue voz homenageando Nara Leão, como para Mateus mostrar a grandeza de Caymmi, com voz poderosa. Dizem que o melhor intérprete de Caymmi é ele próprio. Mas esta é uma grande lacuna minha. Conheço pouco Caymmi cantor. Mas de qualquer modo, Mateus Sartori faz uma homenagem ao mestre, neste CD de 2007, que veio para ficar.

Para quem ainda não abdicou de admirar o trabalho gráfico de um CD, o projeto neste sentido de Mateus é primoroso e as fotos de Jorge Beraldo criam um ótimo clima possível para a obra de Caymmi. Para alguns pode soar como obviedades candomblecistas, mas é bom lembrar que uma coisa é ter uma proposta como “Cidade Baixa” de Sérgio Machado (mostrar uma Bahia desconhecida), outra é se dispor a “ilustrar” Caymmi.

Como de hábito, destaco versos de Caymmi, para ressaltar que além de grande melodista, ele também era um grande poeta de simplicidade desconcertante.

“Acaçá de milho bem feito/ E o jeito?/ E o modo dela mercar?/ Sorrindo com dentes alvos/ A bata caindo do ombro/ Caindo pro peito”; “Rosa Morena/ Onde vais morena Rosa/ Com essa rosa no cabelo/ E esse andar de moça prosa/ Morena, morena Rosa”; Quando chegar seu dia/ Pescador “véio” promete/ Pescador vai lhe levá / Um presente bem bonito/ Para Dona Yemanjá”; “Os clarins da banda militar/ Tocam para anunciar: / Sua Dora, agora vai passar!/ Venham ver o que é bom!”; “Aqui o teu corpo nos meus braços/ Nossos passos pela estrada/ Nossos beijos pela noite./ E a lua, pelos campos, minha amada/ Pelos bosques, pelas águas/ Acompanha o nosso amor”; “Doralice, eu bem que lhe disse/ Amar é tolice, é bobagem, ilusão/ Eu prefiro viver tão sozinho/ Ao som do lamento do meu violão”; “A onda do mar leva/ A onda do mar traz/ Quem vem pra beira da praia, meu bem/ Não volta nunca mais”; “A jangada saiu com Chico Ferreira e Bento/ A jangada voltou só/ Com certeza foi lá fora, algum pé de vento/ A jangada voltou só”; “Sargaço mar, sargaço ar/ Deusa do amor, Deusa do mar/ Vou me atirar, beber o mar/ Alucinado, desesperar/ Querer morrer para viver/ Com Yemanjá”; “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é/ Ou é ruim da cabeça, ou é doente do pé”; “Ah, insensato coração/ Porque me fizeste sofrer/ Porque de amor para entender/ É preciso amar, porque”;”O presente que eu mandei pra ela/ De cravos e rosas vingou/Chegou, chegou, chegou/ Afinal o dia dela chegou”;”Valerá a pena viver sem você?/ Para que passar a vida sem carinho/ Quando alguém amar você sinceramente/ Seguirá o seu caminho indiferente”; “Tudo tudo na Bahia/ Faz a gente querer bem/ A Bahia tem um jeito/ Que nenhuma terra tem”.

Pode e deve haver outros tributos à obra imensa (em todos os sentidos) de Dorival Caymmi. O de Mateus Sartori não é inexcedível. Sempre pode haver superações. Mas é certamente inesquecível e indispensável. Bem como acompanhar novos trabalhos deste grande cantor, neste país em que se diz que novos grandes cantores não aparecem mais. Só cantoras. Desinformação.

Ps. Mateus nasceu em Franca, interior de São Paulo e aos 14 anos foi morar em Mogi das Cruzes (SP). Participou do projeto Barroco (2009)-Proj. Vila de Sant´anna, com músicas só de compositores de Mogi. Detalhe: é a cidade onde nasci, de onde guardo relações de amor e ódio...Mas esta é outra história, uma música em que ora desafino, ora canto bem.Depende do meu estado de espírito. (http://www.mateussartori.com.br/br/biografia.php )

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Nelson Rodrigues de Souza

domingo, 15 de maio de 2011

Procura, Luto, Vingança, Trapaça, Subterfúgio, Inadequação e Outras Circunstâncias Humanas, Demasiadamente Humanas













































Procura, Luto, Vingança, Trapaça, Subterfúgio, Inadequação e Outras Circunstâncias Humanas, Demasiadamente Humanas

(Os textos contém alguns spoilers, ou seja, detalhes de narrativas são revelados para a análise pretendida)

1- “Não se Pode Viver Sem Amor” (Brasil/2010) de Jorge Durán, com roteiro de Dani Patarra e Jorge Duran


Num dia 23 de dezembro, Roseli (Simone Spoladore) vai o Rio de Janeiro com seu filho de 10 anos Gabriel (Victor Navega Motta, sensacional, num dos grandes trabalhos de criança do Cinema Brasileiro) à procura do pai que os abandonou há alguns anos. Na grande cidade, em suas buscas, se cruzam com o pesquisador universitário Pedro (Ângelo Antônio, confirmando que é um dos grandes atores de Cinema Brasileiro contemporâneo). João (Cauã Reymond, ator em ascensão) é um advogado com canudo, mas desempregado, que está apaixonado pela dançarina de cabaré Gilda (Fabíola Nascimento), mas para tirá-la deste mundo, “ganhando seu amor”, se desespera e passa a fazer assaltos perigosos, aonde tenta preservar certa humanidade inextirpável, apesar desta condição de marginal. Um dos primeiros assaltados é Pedro no taxi do pai que morreu e ele, atônito não sabe ainda o que faz. Os caminhos de Roseli e Gabriel se cruzarão com todos, revelando-se então mais um filme de estrutura coral, como os de Iñárritu/Arriaga, dentre outros, o que a princípio não seria um problema mas uma opção narrativa.

O grande problema de “Não se Pode Viver Sem Amor” é que apesar dos personagens interessantes que cria, bem como da ótima seleção de atores feita, ele patina justamente aonde menos se esperaria, dado a grande experiência de Durán com roteiros ótimos para projetos pessoais (“A Cor do Seu Destino”, “É Proibido Proibir) e para outros, como ( “Pixote, a Lei do Mais Fraco” de Hector Babenco, “Nunca Fomos Tão Felizes”, obra-prima de Murilo Salles em que Durán contou com a co-colaboração de Alcione Araújo).

Gabriel tem poderes mágicos como fazer surgir temporais, ventanias, chuvas e até ressuscitar mortos. Isto é algo muito difícil de utilizar num filme em geral realista, pois pode cair na gratuidade e facilidade. Vittorio De Sica faz isto magistralmente ao final de “Milagre em Milão”, onde os miseráveis da favela voam em cabos de vassoura em direção aos céus num grande emaravilhamento poético e apoteótico.

Já nesta obra de Durán, o mágico ora é bem poético como na chuva criada em que Gabriel, Roseli e Pedro acabam dançando num ato de purificação, ora é desastroso e falso, principalmente quando forjado para se chegar à conclusão do título de que “não se pode viver sem amor”, num dos happy ends mais discutíveis já vistos, diante de tudo que já tinha sido exposto.

O roteiro tem ainda alguns furos dignos de um queijo suíço: a volta de Pedro para resgatar Roseli e Gabriel de um maníaco pária que queria estuprá-la e o filho lança-lhe magicamente fogo é um deles. A grande demora de Pedro em dar um funeral e enterrar o pai (Rogério Fróes em pequena, mas significativa aparição, que é quem fala a frase título) é outro. O raio cair duas vezes no mesmo lugar e João tentar assaltar de novo o mesmo Pedro, depois em sua casa, soa como mais uma forçação de barra. E aqui não se tem a magia do menino... Ela vem depois. Desastradamente.

O título do filme ainda que justificado por uma fala já descrita e pelo final forçado é, a rigor, muito cafona remetendo a fotonovelas e congêneres. O cartaz do filme com desenhos bastante acadêmicos dos rostos também não ajuda muito. Resultado: lançado na sexta-feira passada no Estação Sesc-Botafogo-RJ 1 em várias sessões, por provável público reduzido, já no sábado emigrou para a pequena sala 3 e foi aonde assisti o filme com plateia bem reduzida. Temos aqui um filme que tentou se comunicar mais com o público e o tiro saiu pela culatra.

Mas Jorge Durán tem histórico para dar a volta por cima e criar/expor projetos muito mais bem interessantes, com resultados bem satisfatórios e belos.

2- “Cinco Dias Sem Nora” (México/2008) de Mariana Chenillo

O humor cáustico judaico no cinema não é uma patente exclusiva de Woody Allen. “Cinco Dias Sem Nora” nos mostra que até onde se imagina que a comunidade judaica seja relativamente pequena (num país hoje bastante católico, com sincretismos que remetem à ancestralidade asteca, que entrou em cisma com o Vaticano depois da sua revolução, terra que muito apropriadamente foi chamada por Arnaldo Jabor como “o oriente do ocidente”), este humor peculiar pode comparecer com grande folga e perspicácia. É o que acontece saborosamente aqui neste filme.

Nora, separada do marido, morando num apartamento em frente ao dele, depois de anos de tentativas sucessivas de suicídio, faz uma despedida da vida em grande estilo mostrando que mesmo após morrer pode ser bastante controladora. Ele ingere altas doses de remédios, mas antes deixa instruções ao ex-marido José (Fernado Luján, em grande desempenho tanto em suas tiradas certeiras, como em seus silêncios maliciosos) para ser enterrada com num ritual judaico que mereceria. Ao mesmo tempo deixa bilhetes em ingredientes na geladeira para que a empregada faça comidas típicas para um belo ritual de passagem.

Um velho rabino aconselha José a mentir sobre a causa mortis da ex-mulher para que ela possa ter um enterro judaico segundo a tradição. Os suicidas, por misericórdia são enterrados próximos aos muros. A rigor, deveriam ser enterrados perto dos muros do lado de fora, mas o coração humano tem suas bondades...Um rabino bem mais jovem é plantado dentro do apartamento para acompanhar a evolução dos fatos, pois o primeiro impulso de José é dar um enterro cristão logo a Nora sem rituais, o que não acaba fazendo, pois ainda tem a oposição do filho que demorará para chegar, com problemas de passagem e em aeroporto. Com outros problemas de data de rituais acaba-se tendo que ficar com o cadáver insepulto de Nora por cinco dias, conservado por gelo. Com este tempo, segredos descobertos vão causar ciúmes tardios e irremediáveis em José.

“Cinco Dias Sem Nora” é um filme que se resolve muito mais na mise-en-scène, na montagem e trabalho dos atores do que num roteiro que fosse bastante inspirado. Um pouco mais de dialética entre a cultura cristã que José quer impor à mulher e a cultura judaica, sem transformar a obra em um filme tese, faria bem ao filme, salvando-o de certas recorrências. A referência a uma excessiva tentativa de suicídios de Nora dá razão a um personagem que diz que ela deveria ter sido internada, o que mataria a base do filme. Enfim, mesmo numa comédia, como nos mostra o gênio de Woody Allen, alguns toques de mais realismo dão mais força ao delírio cômico. Mas como é raro uma comédia realmente boa em cartaz, “Cinco Dias Sem Nora” é um programa imperdível.

3- “Os Catecismos Segundo Carlos Zéfiro”, texto e direção de Paulo Biscaia Filho

Para gerações brasileiras dos anos 50/60/70 em que não havia filmes pornôs, seja em DVD, VHS ou nos cinemas, nem revistas de nus explícitos, os chamados catecismos de Carlos Zéfiro, na realidade Alcides Caminha, eram com seus hoje ingênuos nus e cenas de sexo explícito, uma verdadeira aula de vida na iniciação sexual, algo proibido durante a ditadura militar mas muitos jornaleiros pelo país vendiam de forma furtiva a uma clientela crescente de forma a esgotar edições. Eu mesmo cheguei na adolescência em formação a ter contato com estes literalmente deliciosos catecismos, com balões com explosões de sentimento de gozo as mais variadas, sendo passado de mão em mão entre colegas do ginásio, nos deixando excitados. O fato de fazer algo tido como proibido ampliava mais o prazer.

A peça de Paulo Biscaia se concentra mais na busca da verdadeira identidade de Carlos Zéfiro no início dos anos Collor, empreendida pelo jornalista/editor de uma revista masculina e então comentarista esportivo na TV Juca Kfouri (Leandro Daniel Colombo, excelente, melhor ator em cena) do que na personalidade singular de Alcides (Rafa de Martins). Se ela também em paralelo desenvolvesse mais o rico personagem Alcides seria melhor. De qualquer forma é um espetáculo irresistível com suas projeções de obras de Carlos Zéfiro, enquanto atores como Marina Gallarza e Jandir Ferrari evocam de forma explícita, sem pudor, ”diálogos eróticos” de catecismos, dentre outros jogos cênicos. Se a peça se valesse de pudores nestas falas, soaria como traição a Zéfiro. Projeções também são bem elaboradas para ambientar as cenas seja de uma banca do jornaleiro ícone (Marino Rocha, ótimo) ou quando anos depois este é dono de um sebo, condição na qual Juca o encontra e procura elos para chegar à identidade secreta desejada.

Alcides é mostrado como funcionário público durante o dia que acaba varando madrugadas em sua prancheta desenhando suas ansiadas “sacanagens gráficas”. O personagem nos é mostrado a maior parte do tempo calado, apenas com gestos, assim interagindo com a esposa (Mariana Consoli), que coloca em xeque o marido quando descobre o que ele faz secretamente, mas depois passa a admirá-lo. Alcides tem uma amante na qual se inspira para criar os traços de mulheres de seus catecismos. Esta fica furiosa quando descobre que muita gente se masturba com “sua imagem”.

“Os Catecismos Segundo Carlos Zéfiro”, sendo ainda mais bem elaborado, tem potencial para se transformar num ótimo roteiro cinematográfico e se bem dirigido num belo filme. Contando-se a história de Zéfiro/Alcides que quando descoberto por Juca está aposentado e tem medo de perder a ninharia que ganha se for “descoberto”, conta-se a história de gerações. No final tonalidades de melancolia tingem a peça, mas no conjunto predomina o bom humor de uma história bem brasileira, que pode atingir tons até fellinianos no cinema.

O espetáculo estreou em março no CCBB-RJ. Pelo sucesso obtido continuou carreira no Solar Botafogo. Vi a peça no último dia neste novo local. A produção e os atores merecem encontrar novos espaços, seja no Rio em continuidade ou num temporada em São Paulo e/ou outras cidades. É uma peça que em nada “revoluciona” o Teatro Brasileiro, mas dá grande prazer a quem se dispuser a assisti-la e nos faz pensar em outras histórias subterrâneas da vida brasileira, mas importantes, que estão ainda por serem contadas.

O CD “Barulhinho Bom” de Marisa Monte onde se trabalha desenhos de Zéfiro, inclusive na capa, foi o estopim para que Paulo Biscaia tivesse a ideia de levar adiante o projeto. É curioso observar que ainda que na capa de CD haja apenas uma mulher nua desenhada, isto foi o suficiente para ela ter sua venda proibida/censurada nos EUA. Com este puritanismo, mas fortíssima “libertinagem” na exposição de cenas de violência, não é à toa que os EUA é um dos países mais violentos do mundo, violência que é imposta ao mundo. O Brasil mesmo com o que se vê nos dois “Tropa de Elite” e aconteceu em Realengo fica atrás. Pelo menos não tem potencial imperialista para exportar sua violência para o mundo.

4- “Reencontrando a Felicidade” (EUA/2010) de John Cameron Mitchell, com roteiro de David Lindsay-Abaire, baseado em roteiro de sua própria peça.

Becca (Nicole Kidman, mais uma vez a diva com excelente trabalho) e Howie ( Aaron Eckahart, sempre surpreendente e ótimo nos mais variados papéis) perdem o filho pequeno, quando este vai à rua atrás de seu cachorro e é atropelado, sem que o jovem motorista Jason (Miles Teller) tenha qualquer culpa.

Quando o filme começa observamos pouco a pouco as inquietações crescentes do casal já tendo decorrido oito meses depois da tragédia. Becca está com bloqueios e não consegue voltar às relações sexuais com o marido, procurando tirar vestígios da casa que a lembre do filho perdido. Howie numa atitude oposta gosta de ver vídeos do filho, inclusive alguns gravados por celular.

Os dois passam a frequentar um grupo onde casais sofreram perdas parecidas. Ao ouvir uma pessoa referir-se de uma forma conformada que Deus veio buscar um anjo, Becca se rebela e lamenta “Mas por que Deus não criou outro anjo para ir buscá-lo?”. Sentindo que ali lhe falta o clima adequado a seu estado de espírito, ela pede ao marido para ir embora. Ele a repreende depois por sua fala.

Enquanto Howie se aproxima de Gaby (Sandra Oh, muito bem também no excelente “Sideways-Umas e Outras” de Alexander Payne e de olhar triste e compreensivo aqui), de quem se torna confidente, sendo que o marido desta a abandona, Becca numa tentativa quase que desesperada de manter um elo enviesado com o filho morto, se aproxima do jovem Jason, o atropelador involuntário do filho, que escreve uma história em quadrinhos, “A Toca do Coelho” ( Rabbit’s Hole) que era o título que o filme deveria ter recebido no Brasil e não o piegas e propaganda enganosa “Reencontrando a Felicidade”. Os quadrinhos remetem a uma história de alguém que se perde e é emprestado a Becca.

A irmã de Becca fica grávida de um negro que está em processo de separação e vão os dois morar com a mãe das duas, Nat (Dianne Wiest, agora uma excelente atriz já bem senhora, longe da beleza e de sua grandeza em “Hanna e Suas Irmãs” de Woody Allen, mas mantendo o brilho no olhar). Nat gosta de insistir a Becca que superou a morte do filho de overdose de drogas aos 30 anos. Becca rechaça a comparação, pois sua perda foi por um acidente que a toma de culpa, por ter comprado um animal, por não ter se dado conta que o filho correria para a rua etc.

Quando Becca apaga o conteúdo de imagens do filho, do celular do marido, segunda ela involuntariamente, Howie explode com a esposa, tirando a capa de ira contida que trazia até então.

Enfim como no extraordinário “O Quarto do Filho” de Nanni Moretti, Palma de Outro em Cannes, temos “a perda com ela é”, sem lenitivos fáceis, o filme com que este mais tem identidade, ainda que as abordagens sejam bastante distintas.

Há quem veja no final uma possibilidade imediata de superação. Eu enxerguei o contrário: quando Howie imagina a festa que darão no dia seguinte já antevê o fim, de uma forma neurótica, sem pensar no prazer em si que o evento pode lhes trazer, com todos já tendo ido embora e eles tendo de encarar mais uma vez a solidão e o fantasma onipresente do filho morto. Daí a forte inadequação do título brasileiro “Reencontrando a Felicidade”. Quando o filme acaba a felicidade ou momentos felizes ainda estão por serem construídos e o afastamento do fantasma do filho morto ainda pesa e algo por se conquistar.

Com trabalhos primorosos dos atores principais, bem coadjuvados pela inigualável Diane Wiest, “Reencontrando a Felicidade”, uma obra de 2010 dos EUA, chegando ao Brasil com atraso, é muito superior aos aclamados “O Discurso do Rei” e “A Rede Social”. E John Cameron Mitchell mostra-se um ótimo diretor (principalmente de atores), aqui num registro bastante diverso de seu ousadíssimo e extraordinário “Shortbus”, onde traça um panorama da sexualidade amedrontada da era pós-Aids, com belas cenas de sexo explícito, dentro ou fora do clube de orgias Shortbus. Só a melancolia e confidências de um ex-prefeito de NovaYork voyer, já é um elemento forte a se reter. Mal lançado no Arteplex-RJ, numa semana em que reinava absoluto o Festival Internacional de Cinema do Grupo Estação ( onde tem a tradicional Mostra Mundo Gay), Shortbus, de grande potencial de público, principalmente do pessoal GLBT, não foi descoberto e saiu rápido de cartaz, sendo queimado.

Realizador também do sucesso “Hedwig-Amor e Sedução” sobre um personagem que tem uma operação de mudança de sexo mal sucedida e tem de dar a volta por cima, John Cameron Mitchell diz que o que une os três filmes é o tema da perda, cada um tratando-a do seu modo.

Com a morte da grande estrela Elizabeth Taylor, o cinema não está órfão nesta seara: Nicole Kidman que com outros produziu este filme, tem todos os atributos de uma grande diva do cinema: é belíssima, bastante sensual (o que Kubrick explorou mais em “De Olhos Bem Fechados”) e uma grande atriz, que já se arriscou com maestria nos mais variados personagens.

Uma curiosidade: quando lhe foi sugerido o nome de John Cameron Mitchell para diretor de sua produção, Nicole assistiu “Shortbus”, mas não fez nenhum comentário sobre o filme. Mas aceitou o diretor para o seu trabalho. Consciente ou inconscientemente entendeu que por trás do transgressivo “Shortubs”, que tem até uma curiosa auto-masturbação com a boca e jorro explícito de sêmem, havia um grande diretor, captando a solidão do seres numa grande metrópole, com seus bloqueios amorosos e sexuais, cidade vista com rapidez nos letreiros com eloquentes e ágeis efeitos de computador e/ou maquetes.

Como abordagem do luto, “Reencontrando a Felicidade” é um filme notável como é o já citado “O Quarto do Filho”. Temos também o muito bom e pouco visto “Vida que Segue” de Brad Silberling, com um Jake Gyllenhaal estalando de novo e “Entre Quatro Parede” de Todd Field com Tom Wilkinson e Sissy Spacek se consumindo vendo o assassino do filho único à solta. Mas como bem me lembrou o psicanalista e crítico de cinema Luiz Fernando Gallego, o filme que vai mais fundo no tema é “A Liberdade é Azul” do grande mestre Krzysztof Kieslowski, com Juliette Binoche em mais uma de suas sublimes interpretações.

Que o filme em questão produzido por Nicole, em meio a tantos filmes sobre luto, tenha sua forte singularidade na abordagem, mostra sua grandeza. Imperdível.

5- “Como Arrasar Um Coração” (França /Mônaco/2010) de Pascal Chaumeil

Uma franca comédia pode ter liberdades que não comporta a um drama. Mas para ser forte não pode abrir mão de criar personagens protagonistas consistentes. É o que vemos, por exemplo, nos clássicos “Quanto Mais Quente Melhor” de Billy Wilder e “A Dança dos Vampiros” de Roman Polanski ( neste incorporado com muita graça e criatividade o gênero terror, se transformando no mais sofisticado terrir da História do Cinema, um gênero muito caro a Ivan Cardoso, quando filmava e não apenas reclamava...

“Como Arrasar Um Coração”, a rigor, não tem sequer um personagem bem construído. Sua montagem sempre acelerada, para não se deter mais em suas situações criadas e mostrar facilmente suas fragilidades, é algo que cansa, quando não irrita.

Alex (Roman Duris) e sua irmã Mélanie (Julie Ferrier) são especializados em separar pessoas prestes a se casarem a pedido de um dos futuros cônjuges ou de terceiros. Um dos truques é criar uma falsa comoção, um choro e abraçar e beijar a “vítima” para criar factóides. O pai de Juliette (Vanessa Paradise) quer separá-la de um casamento com Jonathan (Andrew Lincoln). Alex finge-se de guarda-costas dela e a confusão está armada até um desfecho convencional como as mais recorrentes comédias românticas americanas....ruins, pois há as boas.

O filme para ambicionar ser um sucesso de bilheteria francês mimetiza filmes americanos descartáveis, mas vai ser refilmado nos EUA. Assim temos um filme francês que ambiciona ser americano que se transformará num filme americano que ambiciona ser francês... Empreitadas que, de modo geral, soam a engodo, equívoco. A se lamentar o desperdício de um grande ator como Roman Duris de filmes memoráveis como “De Tanto Bater Meu Coração Parou”, “Paris”, “Exílios”(este extraordinário), “Em Paris”, dentre outros.

6- Mostra “Odete Lara- Uma Atriz de Cinema”- curadoria de João Juarez Guimarães, coordenação editorial do crítico Leonardo Luiz Ferreira- CCBB-RJ ( de terça 10 de maio a domingo 15 de maio); CCBB-BR ( de terça 17 de maio a domingo 29 de maio); CCBB-SP ( de quarta 1 de junho a domingo 12 de junho). Há ainda alguns debates com pesquisadores, críticos, cineastas, atores, amigos que podem ter a presença de Odete Lara, se restrições médicas não a impedirem.

6.1 “Copacabana Me Engana” (Brasil/1968) de Antônio Carlos Fontoura

Ainda que se possa apontar defeitos aqui e ali de quebra de ritmo, trata-se de um clássico do Cinema Brasileiro, onde um dos temas mais candentes em jogo trata-se de “Como evitar que nossa vida se torne medíocre, anódina, principalmente vivendo num país como o Brasil onde as armadilhas sociais e existências são muitas?”. É uma questão urgente e deve-se travar uma luta cotidiana contra esta mediocridade que pode nos afogar e nos transformar em personagens de Tchekhov, aqueles que querem todo o tempo mudar de vida, se sentindo fracassados, mas não conseguem dar um passo realmente significativo para tal. Jean Paul Sartre tem uma frase genial sobre isso: ”Não importa o que fizeram com você, mas o que você pode fazer daquilo que fizeram de você”.

Mais uma vez confirmo como é ótimo rever filmes, principalmente aqueles que a gente viu lá pelos 20/25 anos. Além de termos depois uma experiência de vida que muda nossa visão/percepção dos filmes, tem a questão da memória. Eu não guardei ainda o número do meu celular direito, mas, modéstia à parte, tenho memória afetiva de elefante. Mas mesmo assim, rever "Copacabana Me Engana" foi como assistir um filme feito hoje. Com tantos filmes e eventos culturais, além das leituras, que vi/fiz depois, nem lembrava de Carlos Mossy e Odete Lara juntos. O que vi agora é um filme atualíssimo, com questões que se eternizam e estão mais criticas seja em Copacabana, uma também “aglomerada solidão” (segundo Tom Zé, se referindo a São Paulo) ou fora dela. Rio de Janeiro Me Engana. Brasil Me Engana. Mundo Me Engana.

Marquinhos (Carlos Mossy), por volta dos vinte anos, vive em bebedeiras com amigos, participa de arruaças e traquinagens, não estuda e não tem trabalho. Não sabe o que quer fazer da vida, mas sabe bem o que não quer dela: ter uma vida com empreguinho, casado e com filhos como os pais, num cotidiano que considera uma vidinha. O pai (Ênio Gonçalves) o admoesta, a mãe (Lícia Magna) põe panos quentes e o ajuda até a tirar a roupa, bêbado que está, ofendendo o pai. O irmão médico que dá plantões ( Cláudio Marzo) é mostrado como exemplo. O pai admite a farra na juventude, mas arremata lembrando que não se deve em paralelo descuidar do futuro.

Marquinhos observa pela janela a vizinha muito gostosa Irene (Odete Lara). Instigado pelos zombeteiros amigos, principalmente um vivido por Joel Barcellos, aproxima-se de Irene e esta acaba sendo conquistada pelo rapaz nos seus 20 anos que tem uma beleza exuberante de rosto e corpo ( isto numa era em que não havia a uniformizadora malhação), bem como certa inocência de ar quase poético, em meio à sua inadequação para a vida e gosto pela ociosidade e hedonismo.

Os dois passam a namorar. O ex-marido surge na pele de Paulo Gracindo ( sempre preciso nas suas falas, aqui urbanas, longe dos personagens rurais que fez na TV). Este e Marcos acabam se aproximando, de início com reticências e certo rancor. Mas um clima de camaradagem se instala. O ex-marido diz a Marcos que Irene está interessada em seu corpo jovem, não o ama, o que ele vai confirmar numa sequência em sua casa em que ele flagra Irene aos beijos com seu irmão e só lhe resta acatar, vivenciando um belo ménage a trois muito bem editado: nem puritano, nem explícito demais.

Com roteiro de Antônio Carlos Fontoura (a partir de argumento de Armando Costa, Leopoldo Serran- grande roteirista do Cinema Brasileiro, hoje injustamente esquecido, merecendo uma Mostra com seus trabalhos- e Antônio Carlos Fontoura), “Copacabana Me Engana” encanta do começo ao fim, ainda que um grande travo de melancolia acompanhe as meditações dos pais ao final. Um filme de porte médio feito com muito talento que se faz pouco hoje, a não em projetos como “A Casa de Alice” de Chico Teixeira e poucos outros, um dos caminhos comunicativos que o Cinema Brasileiro deveria trilhar mais.

A equipe técnica/artística é um luxo só: fotografia de Afonso Beato, câmera de Jorge Bodansky, montagem de Mário Carneiro etc.

Acho muito importante lamentarmos que um Rogério Sganzerla não tenha levado adiante muitos projetos escritos e outros que tinha em mente. Ao mesmo tempo acredito que Bressane deveria ser melhor distribuído. Mas é de se lamentar também bastante que um cineasta tão talentoso como Antônio Carlos Fontoura, depois do bastante interessante “Espelho de Carne” tenha feito só mais quatro longas metragens, nenhum com grande desempenho artístico ( que eu saiba) como o filme em questão e “A Rainha Diaba” que analisaremos mais adiante.

6.2 “A Estrela Sobe” (Brasil/ 1974) de Bruno Barreto

Bruno e eu temos a mesma idade. Em 1974 em que entrava no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) contava com 20 anos incompletos e foi com esta idade que Bruno, muito bem assessorado por grandes nomes do Cinema Brasileiro, realizou esta obra-prima inesquecível, um filme que sonhei ter feito, muito mais do que ter logrado a façanha de ter entrado na escola mais difícil em termos de prova de admissão do país. Mesmo assim pelas condições que expus no filme anterior estava com certo receio de rever o filme, para não perder a magia que pairava em minha mente. Revê-lo agora mostrou que meu medo era infundado. “A Estrela Sobe”, mesmo que seja uma obra em que a melancolia/nostalgia dá suas caras é uma obra deslumbrante, profissionalíssima e de grande encantamento.

Para tudo isto contribui o elenco exemplar e os técnicos/artistas que melhor representavam certo cinema da época. Com roteiro de Bruno Barreto, Carlos Diegues, Leopoldo Serran (olhem ele aqui de novo!), Isabel Câmara, baseado no livro homônimo de Marques Rebelo, a quem o filme é dedicado, fotografia de Murilo Salles, direção de arte de Anísio Medeiros, música de Francis Hime, montagem de Raimundo Higino etc., “A Estrela Sobe” não seria a joia que é da Luiz Carlos Barreto produções se o talento de Bruno Barreto para extrair intimismo e lirismo mesmo em situações cruas e orquestrar tudo, não fosse algo tão forte. Filmes dele que quase que compartilham este patamar criativo só “Romance da Empregada” (um equivalente brasileiro ao clima do genial “Feios, Sujos e Malvados” de Ettore Scola) e “Atos de Amor” (feito nos EUA com Amy Irving e o “bad boy” Denis Hopper: uma sequência em que o personagem dele obriga o dela, que era tímida e puritana, a fazerem sexo com todas as luzes acesas é inesquecível).

Já “Dona Flor e Seus Dois Maridos” considero um bom filme. Mas preciso rever. O que me incomodou na época foi um lado um tanto turístico, com as comidas baianas expostas ostensivamente. Já “O Que é Isto Companheiro?” considero muito bom, ainda que não esteja no nível dos três escolhidos. Pelas ressonâncias críticas do filme que enxergo hoje quando a “esquerda” conquistou o poder no Brasil, gerando “um milhão de amigos companheiros e agregados” e a estes tudo, aos inimigos a lei, pretendo tratar com exclusividade num post futuro, pois as críticas injustas que fizeram a ele, quando do seu lançamento, revelam muito do autoritarismo que baluartes da esquerda histórica revelam hoje.

“A Estrela Sobe”, ainda que se concentre no período da era do rádio no Brasil/Rio de Janeiro, num deslumbrante retrato de época, é bastante atual, pois trata de arrivismo sem freios ( como isto acontece muito ainda!) e da questão eterna da “corrosão dos sonhos pelo passar do tempo”, dentre outros temas.

Leniza Mayer (Betty Faria, não menos que sublime, naquele que é o personagem de sua vida no cinema, ainda que tenha feito ótimos trabalhos depois) é uma moça pobre que trabalha num laboratório farmacêutico, tendo um caso com o médico João (Paulo César Pereio, num trabalho mais sensível, distante de muitos cínicos que interpretou com sua verve inimitável). Ela está determinada a ser tornar uma cantora do rádio, ser célebre, sair em todas as revistas artísticas com ou sem qualidade, ser entrevista pelos mais influentes jornalistas e ganhar o amor do público. Para tal se aproxima numa gafieira de Mário Alves (Carlos Eduardo Dolabella), vendedor de rádios que ela imagina ter contatos com figuras importantes de estações de rádio. Numa troca de favores: ela com os sexuais, ele com contactos, ela é apresentada a Porto (Nelson Dantas), faz um teste, as opiniões se dividem, mas ela é convidada para um ensaio.

Num passo mais decisivo para sua escalada Leniza se torna amante da cantora prestigiada Dulce Veiga (Odete Lara, deslumbrante em suas roupas e cálculos para conquistas; aqui descobrimos o nome que Caio Fernando Abreu tirou para seu romance “Onde Andará Dulce Veiga?”, que se transformou em filme muito bom de Guilherme de Almeida Prado). Dona Manuela (Vanda Lacerda), ganha um rádio de segunda mão do sovina Mário e através dele acompanha o sucesso crescente da filha.

Após ter largado Mário (que soube ser casado), alertada por Porto que lhe paga bem abaixo do que prometeu, incitando-a a ter outros rendimentos complementares, Leniza larga também Dulce e passa a ser amante do Dr. Amaro (Álvaro Aguiar)*, empresário de calçados, sugerido pelo mesmo Porto. Assim Leniza não só participa de filmes da Atlântida (Leniza mimetizando Carmem Miranda é inesquecível), bem como do então bastante estimado e frequentado Cassino da Urca. Um aborto que lhe provoca forte hemorragia quase lhe mata. A volta de Amaro para sua família a deixa órfã.

Temos então a mais bela e comovente sequência do filme já esboçada no início. Uma caloura feita pela própria Betty Faria, tornada bem jovem, concorre a um prêmio com dançarinas mambembes ao fundo, como até hoje tem na televisão, num programa comandado por Miele enquanto personagem. Os jurados das mais variadas tendências dão suas notas. O crítico musical, com uma deliciosa caricatura, afirma que na segunda parte ela semitonou e lhe dá nota três. Leniza, feita por Betty Faria eficiente e comoventemente envelhecida, tendo de viver nesta mambembice, quase que vexatória para o histórico de grande cantora que teve, como aconteceu com Araci de Almeida, que de grande intérprete de Noel e outros, se tornou uma caricatura no fim da vida, dirige palavras emocionadas à jovem cantora e de uma forma em que sibila o s, como fazia a jurada Márcia de Windsor, com classe no Programa Flávio Cavalcanti, diz que a nota é dezzzzzzzzz.

Esta sequência simples, mas de grande impacto emocional nos mostra o preço que Leniza pagou por tudo que fez e sofreu, nos mostra um ser humano mais humanizado pelas dores, revela as penúrias do ostracismo musical a que foi relegada e o cruel desempenho do tempo em demover pacientemente os sonhos mais lindos que sonhamos. A Estrela Sobe. A Estrela Subiu. Nasce uma Estrela. Uma Estrela Nasceu. A Estrela Desabou. Mas tudo passa a ser passado a ser rememorado com a presença da jovem caloura, em que Leniza se projeta e acaloradamente aplaude, disfarçando sua amargura. Tudo que é sólido se desmancha no ar. Ainda mais quando se chega aonde se quer usando as pessoas. Não há, entretanto, moralismo no filme. Há um realismo de forte força poética, numa obra que veio para ficar.

O único defeito do filme que me incomoda é a dublagem de Norma Blum, após desentendimento entre Betty e Bruno. Norma tenta imitar a voz de Betty, o que nem sempre consegue.

Saímos do cinema com a voz de Leniza cantando Lupicínio Rodrigues: “Estes moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei/ Não amavam, não passagem aquilo que eu já passei/.........../ Saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno a procura de luz”.

Leniza desprezou aquele que poderia ter sido seu grande amor que é o médico, fingindo que amava outros, mas com certeza trocou o céu por ser escuro e foi ao inferno a procura de luz.

* aqui posso ter errado o nome do ator. Se alguém detectar isto e souber o nome certo, por favor me avise para a correção.

6.3 “A Rainha Diaba” (Brasil/1974) de Antônio Carlos Fontoura

Um dos mais surpreendentes filmes brasileiros já feitos. Politicamente incorretíssimo como talvez só Cláudio Assis se atreva a fazer hoje no Cinema Brasileiro. O filme explode em cores, clima kitsch e violência, de uma forma que antecipa até certo ponto parte do que Almodóvar e Tarantino iriam fazer anos depois. “A Rainha Diaba” é um cruzamento dos dois. Visto hoje, depois de tantos Almodóvares e Tarantinos vistos, o filme pode soar um tanto datado, mas não é: é uma obra avançada para a época, com desempenho soberbo e corajoso de Milton Gonçalves como um marginal homossexual melífluo que trabalha uma voz afetadamente gay para seduzir e outra mais incisiva para intimidar as pessoas, com argumento de Plínio Marcos e Fontoura e roteiro deste último, inspirado em Madame Satã, ainda que os letreiros coloquem o clássico “Qualquer semelhança......é mera coincidência”.

Rainha Diaba domina os pontos de tráfico e de jogo do bicho. Catitu (Nelson Xavier) quer conquistar estes pontos para si e passa a promover atentados. Bereco (Stepan Nercessian) está envolvido com Catitu ao mesmo tempo em que ama/maltrata a prostituta/cantora de cabaré Isa Gonzalez (Odete Lara, deslumbrantemente triste). Os dois se agridem num briga passional por ciúmes. Diaba vive rodeada por um séquito do que se chama “bichinhas”. Estas com vozes bastante afetadas não poupam elogios à Diaba para massagear o ego do guru.

Ciente de que está sendo traída por Catitu, Diaba e seu bando sequestram Isa para que ela conte o que sabe e não sabe, através de uma sessão de tortura, com cigarro aceso tocado em seu corpo. Isa reage como pode: esperneando, cuspindo nos rostos, gritando. Numa sequência emblemática da ligação de Diaba com seus acólitos gays na tortura, um deles recebe uma cusparada no rosto, medita um pouco, rápido e pede: “Diaba, me passe o cigarro”. Esta sequência de horror e ao mesmo tempo cômica é emblemática do tom que o filme muitas vez atinge.

Num jogo contínuo de traições e armas em ação, acabam todos os que disputam o poder na vala comum da morte, num final apoteótico de corpos ensanguentados uns sobre os outros ( com sangue que remete a extrato de tomate), entrando então os letreiros finais.

“A Rainha Diaba” é uma parábola sobre a luta pelo poder, num filme tanto amoral como moral, retratando um mundo de violência que iria se acirrar ainda mais com o passar dos anos. Neste ponto é uma obra quase que premonitória do mundo em que vivemos hoje, retratado nos dois “Tropa de Elite” e em “Cidade de Deus”, para ficarmos em dois momentos mais expressivos e significativos.

Antônio Carlos Fontoura é um cineasta bastante versátil. O filme aqui em questão não lembra em nada, tanto em estética e conteúdo, seu clássico já comentado “Copacabana Me Engana”. O amoralismo de “Espelho de Carne”, onde um espelho detona desejos sexuais ocultos os mais variados ( inclusive homoeróticos) em pessoas que nele se miram, aponta um terceiro caminho que de forma tênue tem elementos dos dois comentados aqui.

Antônio Moreno, professor da UFF, com seu trabalho de mestrado na Unicamp transformado em livro, “A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro” cai nas garras e armadilhas do politicamente correto e cria níveis de tratamento com estereótipos no Cinema Brasileiro, classificando os filmes analisados. Assim "A Rainha Diaba" não seria um bom filme por lidar fartamente com estereótipos. Mas é querer tapar o sol com a peneira. Existem homossexuais das mais variadas falanges, comportamentos e caráter (o mesmo valendo para todo pessoal GLBT e heterossexuais). "A Rainha Diaba" trabalha com homossexuais felinos, ferinos e perversos que existem também. Até "O Beijo da Mulher Aranha" de Hector Babenco é visto com maus olhos, o que é um absurdo, pois mostrar um gay bastante afetado como Molina (que existe) é fundamental para o desenvolvimento emocional da história em que tanto um militante de esquerda aprende muito com ele e vice-versa, sendo que Molina ao sair da prisão parte para uma missão heroica suicida. O filme mais digno em não estereotipia, segundo Moreno, seria "O Menino e o Vento” (1967) de Carlos Hugo Christensen, baseado num conto de Aníbal Machado. Sempre quis ver este filme, mas não o acho. Pelo texto e pela origem dá pra sentir que é bem lírico. Mas o Cinema Brasileiro tem muito mais pequenos e grandes filmes que abordam o homoerotismo. E o mais importante é que sejam dignos artisticamente e verossímeis, lidando com fatias da realidade e não com desejos professorais. O politicamente correto pode matar a arte. Como Antônio Moreno matou em seu decepcionante livro, mas um bom ponto de partida para se discutir mais seu tema.

Por ironia do destino ou uma das questões que só Freud explica, Antônio Moreno posa na contracapa de seu livro, bem abraçado ao seu fofo gatinho, com "sorriso colgate". Mais "estereótipo" do que isto...

Esqueça os preconceitos com o que seriam preconceitos e não perca “A Rainha Diaba”, seja na Mostra de Odete Lara ou nesta impossibilidade, em DVD, como pode ser feito com outros filmes da Mostra. No mínimo temos mais um grande trabalho de um grande ator que é Milton Gonçalves. Madame Satã foi abordada com mais lirismo e força no filme homônimo de Karim Aïnouz com Lázaro Ramos também em estado de graça. Mas é outra saudável proposta. Um filme não invalida o outro. Complementam-se.

6.4 “As Sete Faces de Um Cafajeste” (Brasil/1968), produção e direção de Jece Valadão, roteiro de Braz Chediak e Jece Valadão.

Jece Valadão é um ator muito bom, o que pode ser atestado por “Boca de Ouro”, “Os Cafajestes”, “Navalha na Carne”, “A Idade da Terra”etc. Só não me peçam para o ouvir discorrer sobre sua visão de mundo. Se nesta não encontramos o “cafajeste profissional”, há um machismo atroz que muito me incomoda.

“As Sete Faces de Um Cafajeste” é uma tentativa de obter humor, nem sempre bem sucedida desta persona que Jece criou junto ao público que o prestigiava no cinema, tornando-o um grande apelo de bilheteria. Aqui temos um conquistador inveterado de mulheres objetos sexuais que recebe mensagens sucessivas de que sua vida está por um fio, por ter transado com a mulher do fatídico missivista.

Não sei se me distrai demais com certo tédio que o filme me causou, mas o fato é que saí do cinema sem a solução para o mistério básico da trama.

Odete Lara é mais uma das sete mulheres com que o personagem de Jece se envolve, não lhe permitindo nenhum brilho especial, o que encontro em todos os outros filmes dela que assisti.

O filme tenta mostrar que “no bucho do analfabeto, letras de macarrão formam poema concreto” (Chico Buarque em “A Bela e a Fera), mas não é bem sucedido nesta empreitada. E o desinteresse pelo filme foi progressivamente aumentando em mim. Necessário, entretanto, reconhecer que parte da plateia se divertiu com a comédia. Mas o filme não me animou a conhecer mais a obra de Jece Valadão enquanto diretor.

Ps Não encontrei imagens do filme “As Sete Faces...”. Assim optei por incluir imagens de outros filmes em que Jece participou.

6.5 “Câncer” (Brasil/1972) de Glauber Rocha

Um dos filmes menos conhecidos de Glauber Rocha, “Câncer”, mesmo com seus defeitos evidentes (seja na granulação da fotografia às vezes ruim e principalmente no trabalho de som em que em alguns momentos é muito precário, o que nos impede de entender direito o que é dito tanto pelos personagens como pelo narrador Glauber, o que é imprescindível, pois é um filme, a rigor, muito mais para ser ouvido do que visto) é no conjunto um espetáculo não convencional que tem a cara de Glauber, bastante estimulante com suas inquietações alegóricas sobre o terceiro mundo, as relações entre a classe média e o chamado “povão”, os impasses para se encontrar uma saída para um beco sem saída etc.

Odete Lara é tida com a personagem Mulher. Em uma de suas falas, como atriz, ela quase que resume perplexidades que explicam um pouco porque abandonaria a carreira mais tarde (“ Há recepções em que sou convidada e não tenho vestido para ir...As pessoas pensam que é fácil a vida de atriz...”). Hugo Carvana tido como o Marginal Branco rechaça as queixas desta Mulher e diz que ela precisa em vez de reclamar, sair às ruas e olhar mais para a cara do povo e de suas condições de vida.

Antônio Pitanga, extraordinário como o Marginal Negro (para um filme que foi bastante improvisado) aparece em várias situações de grande opressão: é chamado ostensivamente de vagabundo que não quer trabalhar e ele rechaça lembrando a dificuldade que é conseguir um emprego; acaba por fazer roubos, mas a parte do leão lhe é roubada pelo Marginal Branco e sua lábia pouco convincente transformada em violência; pede dinheiro para comida entre transeuntes insensíveis, sendo que apenas uma mulher lhe dá a devida atenção, oferecendo trabalho de limpeza em casa; pede emprego a um homem que diz estar demitindo pessoas e seria contraditório contratá-lo; acaba por ter gana de matar as pessoas que o aporrinham, principalmente o Marginal Branco; termina por fim gritando de forma bem glauberiana, de arma na mão: “Eu quero matar o mundo! Ele está podre”. Mais atual impossível.

“Câncer” se estrutura em longos planos sequências em grandes quebras do naturalismo e até mesmo do realismo (personagens olham detidamente para a câmera, bem como populares das ruas). Há personagem que não sabemos quem é, que é surrado como saco de pancadas ao fundo de um plano e temos cortes secos e imprevisíveis. Mas o que em outros cineastas menos afeitos a estas experimentações ( havendo mais o desejo do que o talento para tal) com Glauber temos sempre vísceras expostas visceralmente ( desculpem- me o trocadilho), antecipando um pouco tanto “Terra em Transe” como seu programa na TV “Abertura” que marcou época).

Uma das grandes sequências de “Câncer” se dá quando um ativista vivido por Eduardo Coutinho é instado a revelar seus contatos de comunista. Ele alega ter apenas um caderninho com nomes, mas sem endereços e que não poderiam então fazer nada com ele. A repetição das perguntas e as insistentes mesmas respostas nos exasperam, mas dão força ao conflito.

“Câncer” inventaria de forma dionisíaca, sem nenhuma preocupação com o apolíneo, de uma forma tanto inquietante, como fascinante, as metástases de uma sociedade conflagrada por conflitos das mais variadas ordens que governos sucessivos têm atacado com verniz, empurrando mazelas ancestrais e formadoras para debaixo do tapete. Vendo um filme de Glauber é incontornável especular o que estaria pensando do Brasil e do mundo de hoje, se vivo ainda estivesse e que forma de expressão cinematográfica estaria adotando, ainda que “A Idade da Terra” nos pareça um canto de cisne, querendo abraçar o cosmos mais do que a Terra, conforme comentou Eduardo Escorel, se não me engano.

O chamado Cinema Marginal (que não gosta de assim ser chamado), dizem, queria matar o pai Glauber Rocha para poder crescer. Em perspectiva, tendo visto vários filmes destas searas, com exceção do genial “O Bandido da Luz Vermelha”, eu sou ainda muito mais o pai do que seus filhos que o teriam renegado. Glauber é o gênio maior do Cinema Brasileiro, ainda insuperável, alguém que muito amava o povo brasileiro, mas sem nenhum vestígio de demagogia, uma audácia que pode ter lhe custado o descuido com a própria vida. Já ouvi de Nagisa Oshima no MAM-RJ, numa pequena retrospectiva de sua obra, por ocasião do lançamento de “Furyo-Em Nome da Honra”, que ele chegou a pagar a um Glauber faminto uma refeição na Europa (se não me engano em Paris). Onde estavam os amigos que não enxergavam a pessoa Glauber, somente o gênio? Mas esta discussão fica para outro post. Só adianto mais um sensacional artigo de Francisco Bosco em O Globo, sobre as armadilhas existenciais em que até mesmo grandes artistas como Glauber, Rimbaud etc. podem incorrer e só amigos podem “salvar”: A Vida Privada- http://sergyovitro.blogspot.com/2011/05/francisco-bosco-vida-privada.html

6.6 “O Princípio do Prazer” (Brasil/ 1979), roteiro de Luiz Carlos Lacerda, Raimundo Higino, Luiz Antônio Magalhães e direção de Luiz Carlos “Bigode” Lacerda

Odete Lara já em seu retiro em Mury, Nova Friburgo, foi convencida por seu amigo Bigode a participar deste interessantíssimo projeto realizado em meio às belezas de Paraty, em tudo e por tudo, completamente antípoda do já comentado “Câncer”, atestando a grande versatilidade da atriz que esteve em vários momentos e movimentos do Cinema Brasileiro, sempre com sua luz especial de grande diva, no melhor sentido que esta palavra pode ter.

Em meados dos anos trinta, os sócios Otávio (Paulo Villaça) e Mário (Luiz Antônio Magalhães) arrendam uma fazenda nos arredores de Paraty, onde trabalham as várias etapas de plantação e recursos oferecidos por um canavial. Otávio é à primeira vista casado com Norma (Odete Lara), Mário com Ana (Ana Maria Miranda, que mais tarde se tornaria a escritora de prestígio Ana Miranda junto a certa parcela da crítica e um sucesso de público, principalmente com o romance histórico “Boca do Inferno”). Nuno Leal Maia é um barqueiro que seria uma tábua de salvação para Ana sair deste ambiente, com quem ela transa de forma oculta.

A chegada de Álvaro, empregado belíssimo ( Carlos Alberto Riccelli) vai aos poucos desnudar segredos destas pessoas, mas com inicial envolvimento amoroso com Ana e até mesmo um “ataque” homoerótico que parte de Otávio, quando o empregado vai servi-lo no quarto, em que uma elipse nos eclipsa o que realmente aconteceu depois, mas imaginamos.

Álvaro foi alertado para não conversar com os empregados. Mas há uma voz como um feroz grunhido que não parece nem ser de animal, nem ser de um humano. Vemos apenas empregados empurrando a criatura (que não vemos) para dentro de um quartinho que é fechado e estremecido com a reação deste ser. Norma pratica rituais de magia negra para enfrentar problemas. Quando os sócios estão com problemas econômicos com o aluguel do arrendamento, Otávio incita Mário a seduzir a proprietária solitária para “amaciá-la”.

Há uma troca explícita de beijos e afagos, numa troca de casais diante do criado Álvaro, em que este tenta forjar naturalidade, com uma bandeja com taças de champagne (ou outra bebida). Álvaro passa a transar com Ana secretamente. Participa de uma folia numa cachoeira com Ana e Norma que insinuaram antes uma relação lésbica. O filme com bela trilha sonora que alterna música popular e clássica é recheado de cenas eróticas em que se privilegia, principalmente, o corpo dos homens. É uma opção deliberada e assumida de Luiz Carlos Lacerda. Diante de tantos filmes que privilegiam os nus femininos, qual o problema de um filme que dá realce aos masculinos? Tudo é feito com muita elegância, numa direção de arte primorosa. Luchino Visconti também privilegia os rostos dos atores mais do que das mulheres, de modo geral e nem por isso seus filmes são menores, muito pelo contrário: estão entre o que de melhor a História do Cinema nos oferece.

“O Princípio do Prazer” é um dos mais belos filmes eróticos já feitos no país. E não pode ser confundido com pornochanchada ou pornochic.Nada contra estes gêneros, mas é preciso fazer a distinção.Numa Mostra na Caixa Cultural atualmente sobre a pornochanchada estão incluídos “Convite ao Prazer “ de Walter Hugo Khouri e “O Olho Mágico do Amor” de José Antônio Garcia e Ícaro Martins, o que não tem nenhum cabimento, pois não têm nada em comum com o gênero que está sendo homenageado/analisado, a não ser o fato de ter cenas eróticas.

“O Princípio do Prazer” que tem suas fartas cenas de sexo melhor explicadas pelo desenrolar suis generis de uma história muito bem amarrada que não desvenda de todo seus mistérios, se aproxima mais de obras eróticas de D.H.Lawrence levadas ao cinema com grande êxito por Ken Russell no essencial “Mulheres Apaixonadas” e Pascale Ferran em “Lady Chatterley”, que também dão destaque à nudez masculina (não só a das mulheres). Mas estes não têm a morbidez que aos poucos vamos descobrindo que encobre o princípio do prazer que move os personagens de Lacerda, quase que como se fossem de um Lúcio Cardoso de “Crônica da Casa Assassinada”, filmado exemplarmente por Paulo César Saraceni.

“O Princípio do Prazer” merece ser visto tanto pelos voyers (que mal há nisto?), como pelos amantes do cinema, em particular pelos caminhos bastante diversos trilhados historicamente pelo Cinema Brasileiro. O final ameaça apontar para uma situação moralizante, mas numa virada de roteiro sensacional, bastante coerente com a história que foi construída até então, foge desta pecha. Como? “Vá e veja!”

É o melhor filme de Bigode que assisti. “Leila Diniz” por melhor que esteja Louise Cardoso esbarra numa impossibilidade: materializar na tela a grandeza e espontaneidade de Leila Diniz em toda sua inteireza. “For All- O Trampolim da Vitória” tem argumento interessantíssimo, bela direção de arte, mas personagens não muito bem desenvolvidos. “Viva Sapato!” não consegui assistir, pois teve aparição meteórica nas telas. Já “Mãos Vazias”, último filme de Leila Diniz, nem sei quando e se passou em algum lugar da cidade, desde que cheguei de São José dos Campos no Rio de Janeiro em janeiro de 1979, quando corria atrás, como faço até hoje, de muitos filmes nacionais que imagino serem instigantes de alguma forma, como faço com os estrangeiros.

6.7 “Retratos Brasileiros: Odete Lara”, produção para o Canal Brasil, com produção, entrevista e direção de Antônio Carlos Fontoura. Média metragem de 30 minutos

Trata-se de um documento imperdível para quem quiser entender mais o ser humano Odete Lara por trás do mito (além de por seus livros “Eu, Nua” e outros de sua fase zen-budista). Odete, com alguns lapsos de memória, num Doc sem inovações formais, mas importante, nos explica um pouco do porquê abandonou o cinema. Confunde-se que o desmonte cinematográfico da Era Collor a impulsionou, mas amigos dizem que antes ela já havia se retirado. Fala do trânsito no Rio que a fazia perder quatro horas por dia ( algo que sabe que piorou ainda mais), mas há uma síntese dela que é mais significativa: “Sou atriz por talento, mas zen-budista por vocação”.

Odete de forma alguma renega seu passado com puritanismo, fala do budismo muito mais como uma filosofia de vida do que uma religião e afirma que vê a morte com tranquilidade. Tem um santuário de fotos em casa que é o mesmo de 30 anos atrás. Diz que a casa envelheceu como ela. A entrevista foi realizada há 3 anos atrás, segundo me contou Carlos Mossy, que tanto no catálogo da Mostra como numa mesa de encontros com “Bigode”, João Carlos Rodrigues ( pesquisar de memória e verve extraordinárias), mediada pelo crítico Leonardo Luiz Ferreira, com ótimos e elucidativos depoimentos, confirmou a grande paixão que teve por Odete Lara. Paixão que em outros termos o público tem pela atriz que se o Cinema Brasileiro tivesse que ser resumido a uma única atriz, seria Odete, nas palavras lúcidas de João Carlos.

7- Um Tanto de MPB

7.1 “Alma Lírica Brasileira” de Mônica Salmaso, com Teca Cardoso (sopros) e Nelson Ayres (piano).

A primeira vez que ouvi Mônica foi há anos no Teatro Leblon, sala Marília Pera, cantando um repertório só de caymmis. Foi paixão à primeira vista. Nunca mais perdi um show dela no Rio de Janeiro, como fui também à caça de todos os seus CDs.

Para Edu Lobo é a melhor cantora brasileira viva. Se eu não tivesse uma atração fatal pela emoção inesgotável que Maria Bethânia exerce sobre mim há anos, bem como uma relação de profunda admiração e prazer pela voz e versatilidade da Ná Ozzetti também diria a mesma coisa que Edu. Em suma: Mônica vem em honroso terceiro lugar, ‘desbancando” até Nana Caymmi, outra fonte de grande prazer e emoção. Mas graças a Deus, música não é esporte e em nossos corações podem caber todas elas e outras.

Em “Alma Lírica Brasileira” Mônica faz o que tem se acostumado a fazer melhor como ninguém: não se liga tanto em inéditas e passeia pelo que de melhor o cancioneiro brasileiro já criou, tendo medo de pedir inéditas a compositores e acabar não gostando. Sempre acompanhada de grandes arranjos e instrumentistas que dialogam com ela nas canções, sua voz realça versos de extraordinária beleza. Sou daquelas aves cada vez mais raras que gostam muito e têm a maior paciência para acompanhar o canto e as letras ( muitas vezes poemas acabados), sentado num sofá, numa viagem que acredito que nenhuma droga ( que nunca tive coragem de experimentar) pode me trazer.

“Meu carnaval é pequenininho/Só um banquinho e um violão/ A fantasia vai no pensamento/ E o samba enredo na minha mão”; “Tua imagem permanece imaculada/ Em minha retina cansada/ De chorar por teu amor/ Lábios que eu beijei/ Mãos que eu afaguei/ Volta, dá lenitivo à minha dor”; “ E então, como Churchill, tentei outra vez/Mas você foi demais pra paciência do inglês/ Aí me curvei ante a força dos fatos/ Lavei minhas mãos como Pôncio Pilatos”; “Vou pegar o meu retrato/ Vou botar numa medaia/ Com um vestidinho branco/ E um laço de cambraia/ Vou pendurar no meu peito/ Que é onde o coração trabaia”; ”E a vizinhança pouco a pouco vai chegando/ E vai se aglomerando o povaréu lá no portão/ Mas quem eu não queria não vem nunca/ Por não gostar de música e não ter coração”; “O tempo que o amor não nos deu/ Toda a infinita espera/ O que não foi só teu e meu/ Nessa derradeira primavera”; “Quem do mundo a mortal loucura......cura/ A vontade de Deus sagrada.....agrada/ Firmar-lhe a vida em atadura.....dura”; “Se ha formado um casamiento/ todo cubierto de negro/ Negros nuevos y padrinos/ Negros cuñados y suegros”; “ O seio arrebatado, torturante/ O corpo impaciente/ A boca incendiada, o seio palpitante/ O beijo incandescente”; “ E voltou / No derradeiro show/ Com dez poemas e um buquê/ Eu disse adeus/ Já vou com os meus/ Numa turnê”; “Já quiseram me matar por inveja com um balaço/ Eu sou que nem boi arisco/ Não sai do mato pra não cair no laço”; “Acorda, vem ver a lua/ Que dorme na noite escura/ Que fulge tão bela e branca/ Derramando doçura”; “Moro em Jaçanã/ Se eu perder este trem/ Que sai agor às onze horas/ Só amanhã de manhã”.

Estes versos, que fazem parte de poemas com maior ou menor literariedade poética, ganham muita vida com a voz suavemente triste e melancólica de Mônica Salmaso. Mas não se espante com esta melancolia. Ela produz grande alegria na nossa alma ao desfrutá-la. Ainda mais com o belíssimo acompanhamento de sopros e piano.

7.2 “Papo de Passarim” com Renato Braz & Zé Renato, com participação especial de Sizão Machado no contrabaixo

Renato Braz eu ouvi pela primeira vez há anos atrás num show no Teatro Clara Nunes. Outra grande paixão à primeira vista. Fui também à procura de todos os seus CDs e não perco um show sequer quando ocorre no Rio de Janeiro. Mas ao contrário de Mônica Salmaso que conseguiu fazer um show no Canecão quando o repertório era só de Chico Buarque e tem enchido a plateia de seus shows no Rio de Janeiro, Renato Braz ( sem nenhum favor um dos maiores cantores vivos brasileiros, senão o melhor) ainda não é , com merece, mais conhecido no Rio de Janeiro. Se bem que até Mônica também tem que crescer mais sua visibilidade por aqui.

Renato admirava Zé Renato desde o Boca Livre e havendo então uma aproximação sonhada, os dois fizeram um show em que cantam algumas músicas sozinhos e em outras dividem os vocais. Braz estimulou Zé a mostrar mais suas próprias músicas e algumas delas aqui aparecem como a que dá título a este imprescindível CD, como é toda a obra dos dois grandes cantores que são estes Renatos.

Vamos adiante a uma amostra poética do CD, que como já deve ter percebido o leitor, gosto muito de fazer para estimular as pessoas a voltarem a comprar CDs, desfrutando de tudo que ele pode oferecer, desde a arte gráfica, como da ficha técnica e das letras, que repito, muitas vezes podem ser poemas acabados, que podem prescindir até mesmo da música, conforme já desenvolvi num post alentado tempos atrás, quando o Blog atingiu 1000 leitores. Não me conformo com a ideia de que alguns letristas de MPB, como Paulo César Pinheiro, um dos autores mais presentes na obra de Braz, não possam ser também considerados grandes poetas, como eu os considero. Tem fases na minha vida em que minha única vontade de expressão são poemas (não importa se bons ou não) e eu a respeito e escrevo. Mais do que os grandes poetas que li, tradicionalmente tidos assim, como Pessoa, Drummond, Cabral, José Régio, Adélia etc., a maior influência são os letristas que considero também grandes poetas.

“Tudo tem seu momento/É tudo ou nada/ E lá no fundo sei/ Talvez seja tarde/ Só a imagem que ficou/ Virá me visitar o pensamento”; “Um novo amor chegou, me iluminou/ Como o clarão da aurora/ Beijou meu coração, adormeceu/ E não vai mais embora”; “Adios felicidad/ Casi no te conecí/ Pasaste indiferente/ Sin querer nada de mi”; “Quando ele fere, fere firme/ E dói que nem punhal/ Quando ele invoca até parece/ Um pega na geral”; “O dia em que o morro descer e não for carnaval/ Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final/ Na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu/ Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil/ (é a guerra civil)”; “Olha no espelho/ E só vê o amor/ Agora sabe que perdeu a paz/ Jogou o laço e se prendeu/ O inesperado aconteceu/ A vez da caça/ E a hora do caçador”;” Mas agora meu bem foi embora/ Foi embora e não sei se vai voltar/ E a saudade nas noites de frio/ Em meu peito vazio virá se aninhar”; “Tiziu pulou no ar e cantou/ Se canta avisa bem que já viu/ O seu amigo noutro capim/ É papo de Passarim/É papo de Passarim”;“ O olhar que prende anda solto/ O olhar que solta anda preso/ Mas quando eu chego eu me enredo/ Nas tranças do teu desejo”; “Nas águas do Rio Amazonas/ O meu coração se banhou/ No fundo encantado do lado de lá/ A voz da iara chamou/ Ouvi chamar....”;” Quando eu vim da minha terra/ Não sabia o que é sobrosso/ Sabença de burro velho/ Coragem de tigre moço”; “ Quando o meu amor/Disse adeus pra mim/ Eu perdi a voz/ Quis dizer que sim/ Alma, vai além de tudo/ O que nosso mundo ousa perceber/ Casa cheia de coragem,vida/ Tira a mancha que há no meu ser/ Te quero ver/ Te quero ser/ Alma”; “Tira o sebo da panela/ E boto lá na panelada/ Panela, canela, bucho/ Canela, bucho e buchada”.

E assim temos Paulo Vanzolini, Zé Renato, Paulo César Pinheiro, Milton Nascimento, Ary Monteiro, Raimundo Evangelista, Novelli, Cacaso, João Bosco, Aldir Blanc etc. Todos em consonância e ressonância com as vozes dos dois Renatos com suas particularidades.

Como “explicar” a voz maravilhosa de Renato Braz para quem não a conhece: digamos que ela é a conjunção do melhor de Milton Nascimento com o melhor de Caetano Veloso. Exagero? Ouçam este CD e os outros de sua carreira!

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Alguém pode querer saber por que num Blog sobre “Cinema e outras perplexidades”, eu esteja aqui também escrevendo sobre MPB. Ora, além de adorar MPB, eu fico perplexo com o desconhecimento ou pouco interesse que muitas pessoas têm de trabalhos citados aqui e ao mesmo tempo com a política pessoal de muita gente de não comprar mais CDs: só se interessar por downloads gratuitos, desprezando todo um trabalho editorial e de armazenamento encantador. Sei que tem a questão do preço. Mas eu prefiro economizar em outras coisas e investir em CDs. Como também faço com DVDs. Mas não sou santo. Quando algum filme me interessa muito e não tem outro jeito, aceito cópia de download de amigos, pois eu mesmo não me interessei, nem aprendi a fazer isso. Já com música nem isto. Tenho uma quantidade de CDs em casa que se for ouvi-los todos com o cuidado e atenção que gosto, vou precisar de outras encarnações. E isto ainda não me impede de ter a vontade e comprar novos CDs.

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Nelson Rodrigues de Souza