sábado, 7 de maio de 2011

O Natimorto e Outros Seres Vivos Um Tanto Estranhos Como Nós





































O Natimorto e Outros Seres Vivos Um Tanto Estranhos Como Nós

(Os textos que se seguem tendem a conter spoilers, ou seja, detalhes importantes das narrativas são revelados, para a análise pretendida)

1- “Thor” (EUA/2011) de Kenneth Branagh

Keneth Branagh realizou grandes e amáveis filmes, como ator também ou não, dentre eles: “Henrique V”, “Hamlet”, “Para o Resto de Nossas Vidas”, “Voltar a Morrer”, “Frankenstein”, “Muito Barulho por Nada” etc. Já há algum tempo fora de projetos pessoais, surge agora com uma adaptação de quadrinhos do guerreiro Thor para as telas. O que o atraiu foi a possibilidade de aliar forte entretenimento com reflexões sobre o poder que considera eternas e shakespearianas. Só que estas reflexões pelo que se vê na tela são tão tênues e fracas que são mais uma manifestação de wishfull thinking do que de fato algo consumado.

A rigor, o que temos é um verniz de discussões sobre poder (Thor, deus em conflito com o pai e o irmão, é enviado à Terra para humanizar-se). O que na prática reina mais no filme é “mais do mesmo” de filmes de ação hollywoodianos: muitas correrias, muita “marmelada” ( o nível de suspensão da descrença em quadrinhos é diferente do em cinema) e o pior, muitas explosões, principalmente de carros, o que o cinemão já mostrou ad nauseam. Há belas sequências sem dúvida, mas não o suficientes para nos tirar da sensação de engodo.

O pior é que, pelo jeito, teremos mais uma franquia de inúmeras sequências a expulsar das salas o Cinema Brasileiro de qualidade. Para mim, parte da solução deste problema é aumentar substancialmente a cota obrigatória de filmes brasileiros nas telas, o que os exibidores tentarão driblar com os blockbusters brasileiros, mas alguma lei complementar pode também coibir este artifício. A exibição é o maior gargalo do Cinema Brasileiro. Filmes apesar de grandes dificuldades são produzidos e feitos, mas morrem na praia da exibição. “Bróder” de Jeferson De, mesmo premiado em vários festivais (inclusive Gramado) levou bom tempo para atingir as telas. Os blockbusters americanos são lançados quase que simultaneamente aqui como nos EUA. Este pode ter se enfraquecido economicamente, mas sua política visual imperialista ainda é a que predomina nos cinemas brasileiros.

Branagh entrevistou vários atores para fazer “Thor”. Depois de ter desistido de Chris Hemsworth, reavaliou a decisão e o contratou. Chris é “um sonho de consumo erótico” ou o que no mundo gay (que a rigor não existe: o que há é o mundo...) se chama de “bofe escândalo”. Forte, viril, cheio de testosterona, muito bonito. Já em termos de talento dramático (necessário até para uma adaptação de quadrinhos: vide Christian Bale e Heath Ledger em “Batman: Cavaleiro das Trevas”) é fraco. Os encantos de Chris mas limitados parecem ter hipnotizado Branagh, que com toda certeza sabe o que é um bom ator no mínimo e o que é anódino.

“Thor” é um filme que se assiste e logo se esquece. O problema é que Hollywood com suas franquias e seus marketings ostensivos vai querer nos fazer não esquecer dele por um bom tempo, até que a laranja não tenha mais bagaço, como acontece com outros produtos. Enfim, como muitas vezes acontece, o inútil tornado imprescindível para os incautos, como esta versão de “Velozes e Furiosos 5” em cartaz, que me dou ao luxo de não ver e não gostar. Por mais que façam marketing que se passa no Rio de Janeiro. Mas Cora Rónai em um de suas colunas (http://sergyovitro.blogspot.com/2011/04/cora-ronai-o-rio-no-cinema.html ) detonou, pois além de vários problemas clichês, são poucos os momentos em que se têm realmente cenas na cidade maravilhosa. Sérgio de Sá Leitão, presidente atual da Rio Filmes precisa reavaliar sua política entusiasta de filmes a serem filmados no Rio e pensar em como escoar filmes brasileiros de potencial de público menor mas que se pagariam com esta plateia. No início, na gestão de José Carlos Avellar a política mais firme da Rio Filmes era de exibição, o que teve muito sucesso, extrapolando o Rio de Janeiro.

Mas veja “Thor”: acima da média do grande lixão americano e suas veredas de exibição ele é.

2- “Memória da Cana”, livre adaptação da obra “Álbum de Família” de Nelson Rodrigues, com direção (e adaptação) de Newton Moreno- Teatro III- CCBB-RJ

Autor de peças estimáveis do teatro brasileiro como “Agreste” e “As Centenárias” é com esta adaptação de Nelson Rodrigues da sua peça mais radical, com ecos do Gilberto Freire de Casa Grande&Senzala que Newton Moreno, também diretor, desde já ganha um capítulo na História do Teatro Brasileiro. O espetáculo é um dos mais belos que vi nesta virada de século e é bem sucedido em todos os seus pormenores. Chegamos até a ouvir falas antológicas como: “A árvore fica triste quando sente que vai ser cortada porque percebe que o machado é de madeira”. E é justamente o que acontece com os personagens em família: eles se agridem o tempo todo, é madeira querendo cortar madeira.

Ao entrarmos somos convidados pelo produtor da peça a escolher um dos quartos da Casa Grande, sendo que o ambiente todo exala cheiro de cana. Em cada um deles desenvolve-se uma cena teatral com um dos atores. Mas podemos ter uma visão do conjunto, pois uma grande mesa retangular no centro dá para os quartos e temos divisórias de véus transparentes. No início instala-se certa confusão de vozes, mas ouvimos mais o que nos está mais perto. Alguns personagens dirigem-se à mesa, o patriarca instala-se na cabeceira e tem início um jogo de agressões, gritos e sussurros a desvendarem os sentimentos mais recônditos.

Um dos grandes segredos da dramaturgia de Nelson Rodrigues é fazer seus personagens colocar pra fora, em voz alta, aquilo que as pessoas “ditas normais” mal balbuciam. Apesar de já ter dito que “a psicanálise é o silêncio mais bem pago do mundo”, Nelson Rodrigues com suas peças nos mostra o poder do inconsciente seja o pessoal freudiano, seja o coletivo de Jung ( o que Antunes Filho explorou em memorável montagem de três textos dele num só espetáculo: “Nelson Rodrigues: o Eterno Retorno”, onde se apoiava na ideia de arquétipos cara a Jung e ideias do historiador das religiões Mircea Eliade).

Em “Álbum de Família” na esplêndida interpretação conjunta de “Os Fofos Encenam”, transfigurada por um intenso trabalho de pesquisa das origens pernambucanas de Nelson, da obra de Gilberto Freire ( onde se mostra o arrasador papel do patriarcalismo dos senhores dos canaviais) e com memórias íntimas dos atores (em sua maioria de Pernambuco ou entornos, sendo só uma atriz de origem diversa, mas que tem esta condição aplicada a seu papel) , os personagens tem seus inconscientes falando em voz mais alta do que em todas as suas outras peças que conheço.

Assim assomam as mais variadas sugestões e revelações explícitas de desejos incestuosos. O patriarca Jonas (Marcelo Andrade) que goza ressaltando seu poder sobre todos tem uma paixão incestuosa por Glorinha (Viviane Madureira). Esta além de uma atração lésbica por uma colega de escola também deseja o pai. Nonô (Carlos Athaide), um dos filhos, vive enlouquecido correndo nu pelas imediações da Casa Grande. Senhorinha (Luciana Lyra) vive sendo constantemente humilhada pelo marido Jonas que pede à cunhada solteirona Tia Ruthe (Kátia Daher) que lhe traga uma mucama negra da senzala para transar. Acaba vindo Dôda, quase que possuída por uma entidade e entra num jogo erótico de desafios com Jonas de forte impacto coreográfico. Senhorinha acaba por fim reconhecendo sua atração por Nonô. O filho Edmundo (Carlos Ataide) sente atração pela mãe. Guilherme (Paulo de Pontes) sente atração pela irmã Glorinha. E assim temos uma alentada ciranda de taras familiares que de recônditas e sussurradas passam a ser ditas em voz alta. Glorinha e Edmundo se matam. Ao patriarca resta estuprar a esposa para a possibilidade de ter mais uma filha para dar vazão às suas taras. Quem sai aos seus não degenera. Mas quando a família é degenerada, vai, certamente, surgir alguma degeneração. À Tia Ruthe resta blasfemar seu ódio à irmã e narrar que transou com seu marido, o qual fará troça desta sua fraqueza.

Para Bárbara Heliodora, segundo entrevista recente no Programa Roda-Viva, “Álbum de Fámilia” está longe de ser um bom texto de Nelson Rodrigues, pois haveria aqui uma overdose de taras. Algo que eu e Sábato Magaldi, o maior exegeta de Nelson no país, não concordamos de forma alguma, sem contar a plateia que aplaudiu tudo entusiasticamente e o pessoal todo envolvido no projeto, com a maior paixão.

Sim. Há uma enormidade de taras. Mas tudo é costurado com os saborosos diálogos poéticos de Nelson Rodrigues, mesmo que mostrem a crueza dos personagens. Algo que tanto atenua como amplia o impacto do texto, acrescido de algumas modificações de Newton Moreno com base na imersão que ele e seus atores fizeram no binômio Nelson/Gilberto.

A encenação não é menos extraordinária e contribui para a grandeza do espetáculo. Há uma mudança radical do cenário que é um dos grandes achados da cenografia brasileira em muitos anos.

Ao fim vemos Nonô entrando na Casa Grande em extraordinária, significativa e impactante coreografia. Os atores perfilam-se mostrando que o jogo ali acabou. Mas é impossível sairmos do Teatro III do CCBB-RJ sem pensarmos nas nossas próprias famílias e nos aspectos em que elas nos formam/deformam.

Montar “Álbum de Família” sem vulgaridade é dificílimo. Braz Chediak que fez uma extraordinária adaptação de “Navalha na Carne” para o cinema, com desempenhos antológicos de Glauce Rocha, Emiliano Queiroz e Jece Valadão, errou redondamente ao adaptar “Álbum de Família” para o cinema. Teatro filmado de péssima qualidade. Nem um ator divino como foi Rubens Correa se salva. Tudo muito, mas muito over. E grotesco.

“Memória da Cana” nos leva às nossas memórias familiares e talvez reconheçamos em nossos (in)conscientes que nossa humanidade e processo civilizatório no fundo não diferem tanto assim do que vimos no palco.

Ps. Algumas observações tirei do belíssimo e esclarecedor programa que o produtor gentilmente me deu da temporada paulista da peça. O do Rio ainda não estava disponível.

3- “A Estupidez” de Rafael Spregelburd, direção de Ivan Sugahara, com o Grupo Os Dezequilibrados- Teatro II- CCBB-RJ

Que vivemos num mundo onde há o império da estupidez, alguém duvida? Rafael, prestigiado dramaturgo argentino, inspirado em “A Roda dos Pecados Capitais” de Hieronymus Bosch ( um surrealista avant la lettre ) criou uma heptologia, com o que seria os grandes pecados capitais da contemporaneidade: “A Estupidez”, “A Inapetência”, “A Extravagância”, “A Modéstia”, “O Pânico”, “A Paranóia” e “A Teimosia”.

Concentrada num hotel de Las Vegas, temos cinco atores de desempenho feérico, estimulante, de qualidades equitativas e dificilmente cômico ( gênero mais difícil do que se pensa),comemorando quinze anos do grupo Os Dezequilibrados sob a batuta de Sugahara (Alcemar Vieira, Cristina Flores, José Karini, Letícia Isnard e Saulo Rodrigues), fazendo um total de vinte e quatro personagens, num jogo de entra e sai de apartamentos com cenas que acontecem também do lado de fora mas visíveis, num tour de force tanto de direção como de interpretação, lembrando as comédias de boulevard, mas só que num tom muito mais ácido e crítico e com acelerada e acachapante contemporaneidade.

Temos um inventário de possibilidades de manifestações da estupidez (e cupidez) humana que são das formas mais variadas, seja no mundo das artes, da ciência, da sociabilidade (ou falta dela) etc.: há o filho que conversa com a mãe teimosa ao telefone, perdendo a paciência com ela e com a irmã paraplégica confinada a uma cadeira de rodas, que adentra o cenário arremessada e não conduzida com carinho e cuidado; o casal trambiqueiro que especula com obras de arte e quer vender de forma superestimada um quadro que provoca lágrimas nos potenciais compradores; uma dupla de policiais homossexuais que transam, se enamoram, mas um deles sonha em trabalhar no Canadá e outro tem devaneios com um diário poético que escreveu, sendo que recebem a visita de um terceiro policial trapalhão, de modo que fazem investigações nos quartos onde ocorrem irregularidades sem competência; um matemático que é tido ( e dá trela à ideia) como alguém que através de fórmulas matemáticas que preveem o futuro tem um filho endividado com mafiosos e por isso quer um empréstimo do pai e com a negativa deste acaba roubando um fita onde estariam os segredos que ele vende a uma jornalista de revista semanal doida para ter um furo de reportagem; um casal que vive em torno de um churrasquinho de salsicha com reclamações mútuas; uma mulher que, tanto ao telefone quanto com as pessoas, fala de forma super atabalhoada, de forma que ninguém entende nada etc.

As situações dão origem a novas situações e são retomadas, numa interpenetração, num jogo teatral irresistível, em que as gargalhadas só não são maiores porque com o tempo percebemos que a peça também tem ecos com nossa estupidez, pois não estamos livres deste vírus poderoso, já antecipado pela genialidade de Bosch, exposta com mais argúcia em “O Jardim das Delícias (para mim um dos dois ou três mais belos e impressionantes quadros da História da Arte).

A peça, em torno de três horas, termina com foco na mulher paraplégica, que sofreu grandes maus-tratos sem poder se defender, símbolo maior da estupidez reinante, bem como um destaque para um dos policiais lembrar seu diário, um momento de enlevo em meio a tantas baixarias.

O espetáculo só não é irrepreensível porque em alguns momentos dos personagens a caricatura se dá em tons muito maiores, o que dilui a contundência do texto, como o terceiro policial e sua horrenda cabeleira.

No mais, é torcer para que os outros textos de Spregelburd sejam também encenados no Brasil, mas por uma companhia tão talentosa e equilibrada quanto Os Dezequilibrados. Rindo se castiga os costumes. E ainda há muitas facetas dos costumes do nosso mundo a serem castigadas, principalmente o reinado do argentarismo e arrivismo desvairados, o que foi feito em “A Estupidez”, mas deve voltar nos outros textos, pois tem perpassado/contaminado todas as nossas circunstâncias.

Ps Um dos grandes e inesquecíveis espetáculos teatrais que já assisti foi “Vida- o Filme”(2002), encenada no foyer do Espaço de Cinema, aproveitando-se tanto a bancada do café, as escadas, o elevador etc. com o grupo Os Dezequilibrados e direção de Sugahara, contando na época com Bruce Gomlevsky em destaque junto com Saulo Rodrigues. Bruce alçou outros voos trabalhando com Cacá Diegues em “Deus é Brasileiro”, “A História do Zoo” ( ótimos trabalhos) e com o excepcional “Renato Russo”, quase que uma reencarnação do mito que morreu jovem. “Vida- o Filme” investigava com grande força poética as confusões/correlações/fusões que fazemos entre vida e filme. Dado a minha natureza de cinéfilo que não quer ser antropofagizado pela cinefilia, vi o espetáculo três vezes, mesmo sendo encenado à meia noite. Valeu por várias sessões de psicanálise. A dramaturgia da peça foi um trabalho conjunto de Ivan e Daniela Pereira de Almeida. Daniela colaborou ainda mais com o grupo e realizou trabalhos que o transcendeu. Ivan, sempre interessado na relação Cinema/Teatro, conforme gosta de afirmar, fora do grupo dirigiu uma elogiada adaptação livre de sexo&mentiras&videotapes por Rodrigo Nogueira ( que também atuava )de Steven Soderbergh, “Play”, sucesso de crítica e público da qual gostei muito também, mas que não prosseguiu carreira por falta de espaço.

4- Shirley Valentine de Willy Russell, direção de Guilherme Leme, com Betty Faria- Teatro I- CCBB-RJ

Todo ano há especulações se algum filme brasileiro vai ou não concorrer à Mostra Principal de Cannes 2010. O que não há é torcida para que algum artista brasileiro ligado à sétima arte seja convidado a ser membro do júri principal. Muitas atrizes maiores ou menores do cinema mundial já fizeram parte deste júri. O Brasil tem várias grandes atrizes de cinema. Fiquemos só com uma: Betty Faria. Dispensável eu escrever que ela com estes anos todos de carreira no cinema,com 19 filmes, em que se destacam “A Estrela Sobe”, “Romance da Empregada”, “Anjos do Arrabalde”, “Bye Bye Brasil”, dentre outros, merecia ser convidada, mas escrevo. (Atenção Juarez Guimarães, prepare uma “Mostra Betty Faria no Cinema”, assim como vai ter “Odete Lara, atriz de cinema”).

Insisto nisto tudo porque Betty Faria fez também muitas novelas, mas pouco teatro. A ideia de várias noites “fazer a mesma coisa” não a atraia. Isto não depõe em nada contra um artista. Mostra seu temperamento. Glória Pires é uma de nossas grandes atrizes da televisão e do cinema e nunca fez teatro. Esta história de que o teatro é o grande teste é falsa. E Betty Faria agora pode ser vista ao vivo e a cores. Está num delicioso monólogo, mostrando que se o texto tem certa previsibilidade um tanto adocicada, ela em cena é impecável, valorizando cada frase do texto, principalmente aquelas onde prevalece ou a melancolia ou o bom humor.

Shirley Valentine é uma mulher cujos dois filhos já saíram de casa para construírem suas vidas independentes. Mora com o marido capaz de desprezar a comida que preparou com esmero. Logo no início da peça a flagramos conversando sozinha com uma grande parede, emblemática de sua grande solidão e abandono existencial e depois descascando batatas. Uma vizinha amiga lhe dá de presente uma viagem à Grécia. Ela tem muito medo do novo. Reluta mas acaba aceitando, deixando um dos filhos com o marido. Na Grécia, a amiga terá um envolvimento amoroso, a deixará sozinha indo à praia até que ela conhece um homem com quem passeará de barco e fará sexo. Um clic toma conta do seu cérebro e alma. Não mais voltará pra casa, independentemente desta relação fugaz. Arruma emprego num bar e fica pela Grécia, abandonando filhos e principalmente, o marido.

Como vemos, esta comédia quase que romântica não tem, a rigor, tantas surpresas assim. Mas é no delicado, emotivo e precioso trabalho de Betty Faria que tudo ganha maior vulto. Não vi a versão da peça para o cinema, nem a interpretação para o teatro da “tensa” maravilhosa Renata Sorrah, num papel solar. Mas creio que Betty não está longe destas interpretações em qualidade maior.

Domingos Oliveira escreveu e dirigiu Tônia Carrero em “A Volta por Cima”. No primeiro ato, Tônia, brilhantemente, é uma dona de casa, desiludida, mal vestida, despenteada, amarfanhada sem perspectivas na vida. No segundo ato, por obstinação e determinação em revolver, arrebentar os grilhões existenciais e circunstanciais que a prendem a uma vida apagada, levando-a a dar a volta por cima, a personagem de Tônia surge exuberante, elegante, charmosa e bela como acostumamos a ver a atriz em muitos trabalhos. Isto não a impediu de participar de elogiadíssima versão de “Navalha na Carne” de Plínio Marcos como a prostitua Norma Sueli, nem brilhar junto com Sérgio Brito na dificílima “Quartett” de Heiner Müller, dirigida por Gerald Thomas (uma versão de “As Ligações Perigosas” em que a atriz faz todos os papéis femininos e o ator, os masculinos).

O grande achado de Domingos é fazer a transição entre os dois estados de alma com credibilidade e poesia. Em termos de texto temos aqui um trabalho superior ao de Willy Russell que tanto sucesso fez em vários países. Se Tônia tivesse nascido nos EUA teria sido uma grande estrela de cinema, unindo grande beleza a enorme talento. Domingos nascido na Europa teria um prestígio análogo ao de Truffaut. Mas...

O trabalho de Betty Faria na operação paulatina de transformação que move seu personagem é comovente. Mas o texto tem um defeito de fabricação para o qual Bárbara Heliodora (uma “paixão e repulsão” minha) chamou a atenção em outros espetáculos. Em “Shirley Valentine” ( pronuncia-se na peça Valentine mesmo e não Valentaine, para reforçar que a personagem pode ser bem brasileira) tudo praticamente já aconteceu e está sendo narrado pela protagonista. Pouca coisa significativa além do poder amargo ou doce da rememoração está acontecendo no presente no palco. E isto enfraquece a proposta. Mas ver Betty Faria dando grande calor humano a esta criatura é algo que não se deve perder.

5- “Natimorto” de Paulo Machline (Brasil/2009), adaptação do romance homônimo de Lourenço Mutarelli, com este, Simone Spoladore e Betty Gofman.

Há quem acredite que “O Cheiro do Ralo” de Heitor Dhalia (obra bastante polêmica da qual gosto muito) ficaria bem melhor se tivesse sido protagonizada não por Selton Mello mas pelo autor que inspirou o filme que é Lourenço Mutarelli, que faz no filme apenas uma ponta. Como aprecio muito tudo que Selton faz (um dos nossos grandes atores jovens; é maldade e má vontade dizer que ele faz sempre o mesmo personagem que seria ele mesmo, o que pra mim revela miopia), quando li isto achei uma grande heresia. Assistindo agora a “Natimorto” e entusiasmado com a performance de Mutarelli acredito que “O Cheiro do Ralo” com ele seria bem vindo, mas seria outro filme, pois trabalha num registro bem intimista, bem diferente de Selton, se bem que este na obra-prima “Lavoura Arcáica” de Luiz Fernando Carvalho, mantém um registro de introversão e repressão surpreendente.

“Natimorto” narra, com forte apoio em diálogos de grande força literária, mas bem adaptados para se constituir em bela dramaturgia, a história de um homem casado ( Lourenço M.) que se mostra assexuado em relação à esposa ( Betty G.), provocando-lhe desprezo, encontra uma enigmática mulher ( Simone S.) que deseja desenvolver seus dotes de cantora e lhe propõe arrumar um emprego através de um amigo maestro, mas deseja ficar em seu apartamento com ela saindo de dia para o trabalho e ele ficando em casa, dando tratos à bola e fumando, fumando. Em comum, os dois tem o fato de serem fumantes inveterados. Quando ela volta do trabalho lhe traz cigarros. Ele tem ou acredita ter a habilidade de ler como vai ser o dia dela através das figuras sensacionalistas que estão por trás do maço de cigarros, como se fossem cartas de tarô.

O clima claustrofóbico e um tanto mórbido é crescente como em certos filmes de Roman Polanski, principalmente o extraordinário “O Inquilino”. Mas enquanto em Roman prevalece os silêncios, aqui temos uma dialogação exasperada em que um rebate o outro, numa batalha de ideias que muitas vezes machucam, mas depois terminam com pedido de desculpas. Ele mantém sua opção de ter uma vida assexuada. Ela lembra-lhe que é uma mulher com desejos. Quando ela sai nua do banho ele excita-se, mas sente-se envergonhado e se afasta, deixando para a masturbação solitária na cama, o exercício de expelir sêmem. Em flasback temos as desconfianças da esposa de que ela é amante do marido. Aonde estão agora, ninguém sabe o endereço.

Paulo Machline dribla a teatralidade do texto com alguns ângulos insólitos e montagem às vezes acelerada. Mas os diálogos são tão vivos, insólitos e surpreendentes que o ar teatral não incomoda, como em alguns filmes de Rainer Werner Fassbinder ou “Tio Vânia em Nova York”, último filme do grande Louis Malle.

O inusitado jogo de tarô diário continua. Ele lhe lembra que a morte insinuada no verso do maço de cigarros pode significar transformação, fazendo também outras analogias que parecem ter sentido.Quando ela lhe diz que não suporta mais as especulações sobre seu futuro imediato e compra uma cigarreira, não querendo mais ouvi-lo ele começa a se desequilibrar no jogo proposto.

Quando ela viaja através de um convite do chefe maestro, ele tem convulsões machucando a boca. Ela volta, dando razão à previsão dele de que ela seria usada e ririam dela. Ele da cama, atônito e machucado vai para a banheira onde fica em posição fetal. Ele, que já tinha filosofado sobre a condição especial do feto que nasce e morre, pois vem da vida no útero e passa à condição de morto sem ter de passar pelos tormentos da vida, mostra então aquilo que já pressentíamos: é o próprio Natimorto, alguém que tão logo nasceu, morreu para a vida, sem o impulso vital da sexualidade, dentre outros.

O filme revela que ele passou um tempo internado. Talvez fosse desnecessário explicitar esta condição. A loucura de viver é mais intensa quando não se passa por esta situação de forma bem explícita. Uma falha do filme.

“Natimorto” é uma obra ousada, inquietante, interpretada com brilho pelos atores, bastante original, com muitas nuances, sem paralelo em outras obras do Cinema Brasileiro contemporâneo, atestando sua vitalidade e grande diversidade, por mais que se propague a falsa ideia de que ele esteja moldado pela estética da Rede Globo, pautado pelo mercado e outras cantilenas mais. O Cinema Brasileiro precisa “matar vários leões por dia” para ser respeitado. Quando surge um filme raro e muito bom, há sempre quem diga ‘finalmente um filme brasileiro que....”. Ora, quanta má vontade e falta de empenho crítico. É mais fácil nivelar tudo por baixo do que separar bem o joio do trigo e constatar, sem preconceitos, os diversos caminhos que o Cinema Brasileiro vem percorrendo. “Natimorto” tem luz própria em seu caminho, só encontrando paralelo em filmes estrangeiros como o Polanski citado. E Mutarelli merece estar mais presente em nosso cinema tanto como autor como ator. O mesmo pode ser dito das atrizes fabulosas quanto à interpretação.

6- Mostra “A Luz e o Cinema de Rogério Sganzerla”- Caixa Cultural-Rio de Janeiro- até 8 de maio de 2011

6.1 A Mulher de Todos (Brasil/1969)

Fiquei tão impactado positivamente quando assisti e revi "O Bandido da Luz Vermelha "( Brasil/1968), obra genial de Rogério Sganzerla, realizada quando este tinha vinte e dois anos, que adquiri um vício: toda vez que vejo um filme dele, tendo a comparar com a magnitude criativa de "O Bandido....". Aconteceu mais uma vez quando vi "A Mulher de Todos". Helena Ignez realmente é uma musa! Está totalmente à vontade no papel de uma ninfomaníaca, perseguida pelo marido (Jô Soares, em belo trabalho, contido pelo diretor). Mas depois de certo tempo acredito que haja certa incômoda reiteração (não tanto como a que derruba "A Dama do Lotação" de Neville d' Almeida).

Enfim "A Mulher de Todos" é criativo em vários níveis (principalmente alternando o preto e branco, com cores monocromáticas e na adequação formidável de Helena à protagonista), mas apesar de ser um bom filme, deixa um ar de insaciedade. Faltou algo que não defino bem. Os homens na vida de Ângela Carne e Osso variam mas não há matizes que os diferenciam bem além do tipo físico. O erotismo a rigor, é pouco ousado. A Ilha dos Prazeres nos é mostrada de forma muito rápida e caricata.

A questão da reiteração em Sganzerla é um problema também e mais grave de seu último filme, “O Signo do Caos” (Brasil/ 2003). Depois de por volta de meia hora o recado contundente já está dado: vivemos num país em que a relação oficial e não oficial com a cultura é caótica quando não bárbara ( latas de filmes são jogadas no mar), um gênio como Orson Welles também tem muita dificuldade em trabalhar aqui (assim como Sganzerla) e o resto não chega a ser chorar pelo leite que derramam, mas destilar o ódio acumulado com o ostracismo compulsório, mesmo tendo tantos projetos em mente, com sequências que desafiam muito mais a paciência do espectador do que sua sensibilidade e inteligência. Mas mesmo aqui não se atinge a chatice monumental que é “Abismu” (Brasil/ 1977), um imbróglio envolvendo Jorge Loredo, Norma Bengell, dentre outros. Esta passeia de carro com um charuto enorme. É o que ficou do filme em mim, além da lembrança do incômodo que foi assisti-lo.

Como Sérgio Alpendre tem razão ao ter afirmado que uma crítica deveria ter um prazo de validade, quem sabe um dia revendo estes filmes eu descubra valores que até agora não vislumbrei. “O Bandido...” paira num nível criativo e qualitativo muito, mas muito superior e pelo que já vi de Sganzerla, insuperável, havendo ainda outras obras pra conferir. A impressão que tenho até o momento é que Sganzerla é um gênio que se enroscou na sua própria genialidade. Com Orson Welles, o caso é diferente. Até passar a ter maiores problemas para concretizar projetos, além de “Cidadão Kane”, um mito do cinema à altura de sua mitologia, fez outras obras-primas como “A Marca da Maldade”, “A Dama de Shangai”, “O Processo”, “Othelo”, sem contar os filmes dele que são imperiosos e eu ainda estou por assistir. Já a obsessão de Sganzerla com Orson Welles é algo que ao mesmo tempo em que encanta, irrita, pois há um tanto de narcisismo nisto. Mas não posso escrever muito mais que isto, pois não vi “ Nem Tudo é Verdade”, “Linguagem de Orson Welles”, “Tudo é Brasil”, filmes tributos a um gênio maior em sua passagem tumultuada pelo Brasil, o que pode me trazer surpresas e grande prazer, além de outros filmes sganzerlianos.

Ps1 Uma curiosidade: num documentário muito bom sobre It’s all true”, há cenas muito belas deste filme inacabado e uma delas é particularmente mais inquietante, quando um pai de santo não chega a um acordo financeiro sobre filmagens e crava sobre o roteiro do filme uma faca; estaria aí a origem da urucubaca que atingiu a obra e outros projetos de Welles mais tarde?).

Ps2-Numa época dos anos 60 em que em minha cidade, Mogi das Cruzes, interior da grande São Paulo, havia os Cines Vera Cruz, Avenida, o grandioso Urupema, Parque e Odeon, vi estampado na fachada do Parque o cartaz estimulante de “A Mulher de Todos”. Eu estava longe de ter meus 18 anos para poder assistir ( na época a vigilância era severa), mas nunca mais me esquecerei da imagem de uma mulher atrevida com charuto na boca e jeans aberto. Era uma época que durou alguns anos em que se exibia de tudo na cidade, ainda que com certo atraso em relação à capital. Hoje todos estes cinemas fecharam, alguns se transformaram em igrejas evangélicas ou estacionamentos e só há cinemas acanhados num shopping ,apenas sintonizado com os blockbusters americanos e alguns filmes nacionais de grande sucesso. A cidade cresceu bastante de lá pra cá. Mas culturalmente caiu muito. Não é à toa que sempre sonhava em fugir dali.

6.2 Curtas-metragens

1- "A Miss e o Dinossauro- Bastidores da Belair (2005) de Helena Ignez

O curta tem cenas de bastidores da Belair, produtora de filmes ágeis e baratos montada por Rogério Sganzerla e Julio Bressane, que teve poucos meses de vida, antes do fechamento maior da ditadura que os fez se exilarem "por estarem captando imagens suspeitas". Os dois fizeram vários filmes em poucos meses, como "Sem Esta Aranha de Sganzerla e "Cuidado Madame" de Bressane, com cenas no curta.

Helena está mais preocupada em mimetizar o estilo de montagem do marido do que em dar uma visão própria. A angústia da influência de Rogério é mais forte do que a expressão mais pessoal. O filme se ressente disso. Fica-se sem saber muitas coisas interessantes sobre o movimento. Mas no conjunto é um bom curta. Dou um doce para quem me explicar por que o filme se chama "A Miss e o Dinossauro"...

2- Reinvenção da Rua" de Helena Ignez (2003) com montagem de Rogério Sganzerla

O melhor curta deste programa. Imagens originais de Nova York em que um arquiteto (que não conheço e não há letreiros explicando-nos quem seja) comenta intervenções urbanas possíveis. Uma delas em viadutos para melhor acolhida a sem-tetos.... Há comentários sobre São Paulo e pujança nas imagens obtidas de ângulos expressivos. Muito bom.

3- B2 de Rogério Sganzerla e Sylvio Renoldi (1981)

Numa colagem bastante acelerada temos imagens de/ou sobras de “O Bandido da Luz Vermelha”. No conjunto nos leva ao banzo do que é a grande potência do original e o sem sentido sensorial que se tenta passar aqui.

4- Brasil de Rogério Sganzerla (1981)

Imagens do Rio de Janeiro tendo como fundo João Gilberto cantando belas canções do disco Brasil que gravou junto com Caetano, Bethânia e Gil. Passa-se depois a imagens dos quatro, decepcionantemente fixas, sem que nenhum deles dê qualquer depoimento. Teria sido um grande furo jornalístico cinematográfico, mas nem mesmo o gênio de Sganzerla arrancaria depoimentos de João Gilberto... Ainda que um tanto frustrante, um bom filme, embalado pela voz/ interpretação inigualáveis de João Gilberto. Curiosamente não há nenhuma intervenção, com interpretações dos quatro que é a grande força de Brasil, o disco (agora CD).

7- "Sonho Bollywoodiano" de Beatriz Seigner (Brasil/Índia/2009)

Confiram se não estou exagerando, mas "Sonho Bollywoodiano" de Beatriz Seigner faz parte daquele inferno no qual as boas intenções muitas vezes incorrem e o lotam.

Três atrizes (Paula Braun, Lorena Lobato, Nataly Cabanas) vão à Índia em busca de trabalho em Bolllywood, o que não encontram no Brasil. O argumento é interessante. Mas o filme coleciona equívocos. Um dos erros crassos é não individualizar estes personagens, que a rigor nem se constituem como tal. Formam uma massa agregada de sentimentos vagos.

A captação da Índia e suas particularidades é feita de forma muito rasa, assim como dos conflitos básicos desenvolvidos. Tudo se passa como se o esforço da diretora em filmar na Índia com as atrizes já fosse um grande valor em si mesmo. Faltou roteiro e outros valores.

Vi no Artplex 3-RJ e não sei se a projeção digital estava muito ruim ou se foi mal filmado mesmo.

Ao fim nem as atrizes se encontram com força, nem nós nos encontramos com o filme. Não é uma nulidade, mas beira o dispensável.

Basta lembrarmos de "Passagem para a Índia" de Davi Lean, “Mahabharata” de Peter Brook ( de dois gênios) e num patamar menor “Viagem a Darjeeling” de Wes Anderson, para se perceber como o ocidente pode captar bem o oriente. Mas vai ser sempre uma visão do ocidente sobre o oriente. Ao ocidente não cabe nem pode uma visão oriental do oriente...

8- Mostra “Kenneth Anger- O Fetichista Pop”- CCBB-RJ ( sala 2) e CCBB-SP - até 15 de maio

Kenneth Anger, hoje com 85 anos, é um dos papas do cinema experimental. Mas ao contrário de outros, não experimenta só por experimentar: tem substância. Trabalhando com curtas e médias metragens em que capta voyerismos fetichistas, homoerotismo, ocultismo etc. faz um cinema essencialmente lírico.

Mas a melhor forma de curtir/ fruir seus trabalhos é não tentar entender tudo (só uma ideia básica) e sim viajar sensorialmente no projeto, com todos os nossos sentidos aguçados para captar uma sinfonia de imagens e sons (não há diálogos, nem monólogos narrativos).

Dentre os que já vi (em dois programas) destaca-se “Inauguration of Pleasure Dome”( EUA/1954), ostensivamente operístico. Só não me peçam explicações. Simplesmente viajei nas imagens e sons, magnificamente casados. Muito mais do que nos mais badalados “Lucifer Rising” (EUA/1970/80), “Scorpio Rising”(EUA/1963), “Invocation of My Brother Demon” (EUA/1969), Kuston Kar Kommandos (EUA/1965), primores de fetichismos com carros, motos, couros etc; “Scorpio Rising” chega a ter bem humorado paralelo com passagens da vida de Cristo, onde enquanto Cristo monta um burro, um motoqueiro sobe em sua moto incrementada, dentre outras correspondências bunuelescas).

“Rabbit’s Moon”(EUA/1979) é o mais lírico de todos, envolvendo os arquétipos Pierrô, Arlequim e Columbina em conflitos amorosos, atingindo a tragicidade. Lindíssimo.

“Eau d’Artifice”(EUA/1953) é um prodígio de poética lírica de águas que escoam de variadas formas. “Fireworks”(EUA/1947) é o mais explicitamente homoerótico e muito belo.

Enfim, uma mostra imperdível. Só não dá para levar muito em consideração um artigo de Keneth Anger de 1951 do catálogo, para a Cahiers Du Cinéma , que defende bem o seu cinema (até aí nada contra), mas quer fazer tábula rasa do cinema que não reza por sua cartilha. A rigor, uma infantilidade. Há lugar no Cinema tanto para o trabalho de Anger como para um estupendo “Lawrence da Arábia” de David Lean, por exemplo. No artigo sobram sutis farpas para Eisenstein, Sternberg, Bresson e o Dreyer da última fase. Seriam do “reino gelado”. “Então tá. Fica combinado assim....”

9- Exposições “O Universo Gráfico de Glauco Rodrigues”- até 8 de maio e “Rubens Gerchman- Os Últimos Anos”-até 8 de maio- Caixa Cultural- Rio de Janeiro-RJ

Quando fui ver os trabalhos de Rebecca Horn no CCBB´RJ em uma sala tinha um piano de cabeça pra baixo pendurado no teto. Sabia que era só olhar pra cima por um tempo que ele se abria e as teclas caiam. Já tinha visto essa imagem e era linda. Postei-me nesta posição de cabeça pra cima, esperei, esperei e nada de surpresa. Com um quase torcicolo no pescoço desisti de ver alguma coisa e fui para outra sala. Arte contemporânea tem destas coisas.

Num destes seminários organizados por Adauto Novaes assisti interessantíssima palestra do consagrado crítico, artista plástico e então professor da PUC-RJ Carlos Zílio sobre como o século XX tinha sido generoso com Picasso e indiferente a um extraordinário artista que era Barnett Newman, que ele quase que ombreava com Picasso em talento. Como nunca tinha ouvido falar antes de Barnett, fiquei muito curioso para ver amostras de seu trabalho que viriam depois. Quando estas surgiram fiquei estarrecido: vários quadros monocromáticos em que uma linha vertical os dividia em duas partes assimétricas. Mas então era este o grande injustiçado do século? Quando vi algumas esculturas de certa beleza do autor meu ânimo melhorou, mas não eram nada de extraordinário. O que estava acontecendo com os meus sentidos vis a vis os de Carlos Zílio?

Vi as exposições de Rubens Gerchman e Glauco Rodrigues e o prazer do contacto com as obras foi imediato. São estilos inconfundíveis como os de um Toulouse-Lautrec e suas dançarinas de Can-Can de Montmartre, dentre outras obras. A beleza que os três exalam é nítida, forte, instantânia. Com o universo da crítica de arte (plásticas, performáticas e multimídias) parece que estamos num vale tudo. Assim alguém poderá me dizer que se a beleza é imediata não se trata de grande arte, pois esta deve se revelar aos poucos em sucessivas camadas de compreensão, em renovadas visitas, em detidos e renovados olhares. Claro que existem obras que assim o exigem, mas isto não invalida as primeiras. Tomemos como exemplo um caso recente da MPB, à guisa de ilustração. O CD “Micróbio do Samba” de Adriana Calcanhotto revelou-me sua beleza de imediato. Claro que o compreendi mais depois. Já “Meu Quintal” de Ná Ozzetti que estranhei de início, saboreei mais com sucessivas audições, descobrindo cada vez mais grandes sutilezas em termos de arranjos, melodias,voz e letras. A crítica de arte não deve destacar uma possibilidade em detrimento de outra. Afinal, por melhores que sejam as críticas, as obras de arte (quando de beleza convulsiva) são sempre melhores que as críticas.

Glauco Rodrigues (que poderia assinar manifestos tropicalistas dos baianos nos anos 60/70) superpõem signos brasileiros de diferentes épocas e lugares com belíssimos efeitos de brasilidade (eta palavra que muitos passaram a odiar, como se não fizesse mais sentido...)

Rubens Gerchman, encharcado em sensualidade, nos apresenta variações de sua série “banco de trás” com belíssimos efeitos, com amassos amorosos invejáveis tanto em termos artísticos como “na vida real”. A série já chegou a inspirar um espetáculo de Aderbal Freire-Filho com José Mayer. Há também os delicados beijos, com alguns olhos fechados e outros abertos. Seus trabalhos não economizam nas cores, o que ressalta a sensualidade.

Enfim, se deixo passar uma exposição de Barnett Newman, não perco Glauco nem Rubens. É por aí que caminha minha sensibilidade para a arte ( detesto esta noção de que arte se refere às artes plásticas e que tais; pra mim um doutor em História da Arte, tinha de ser em artes em geral: música, ópera, cinema, literatura,fotografia e artes plásticas e seus derivados, dentre outras, o que é o caso extraordinário de um Jorge Coli que infelizmente parou de escrever para a Folha depois que o Caderno Mais! acabou e surgiu a Ilustríssima, um tanto minguada, sinalizando que este importante jornal de São Paulo deve rever sua política em relação à cultura).

Ao Rubens e Glauco então, antes que as exposições terminem no próximo domingo dia 8 de maio. O painel de Glauco inclui também as arrojadas capas que fez para a revista Senhor, tão comentada historicamente.

10- Um Tanto de MPB

10.1 “Quando o Canto é Reza”- Roberta Sá & Trio Madeira- Canções de Roque Ferreira

“Nós” de Virgínia Rodrigues é todo dedicado a canções de inspiração afro-brasileira. Mas como num registro bem diverso de Clementina de Jesus, a voz maravilhosa de Virgínia é algo como se tivesse vindo da Senzala para a Casa Grande, ela é impregnada de certa melancolia. Isto não impede que seu CD seja majestoso. Mas um tanto triste. Aquela beleza triste que é sublime de tantas canções. Já Roberta Sá acompanhada do Trio Madeira, com canções do baiano Roque Ferreira (já bastante gravado por Maria Bethânia e ainda não o suficiente prestigiado como merece, como um dos grandes compositores brasileiros de hoje) investe na alegria dos elementos da cultura afro-brasileira, o eterno tema do amor e o conjunto resulta num CD também sublime, maravilhoso, contagiante que não se cansa de ouvir. Uma autêntica festa de terreiro que se tivermos o dom, nos faz “virar no santo” na sala.

Nó de amor que ele faz ninguém desata/ Ele é dono do tempo, do vento, do mar e da mata”; Você no mar da Bahia/Com este olhar triunfante/Na festa da Romaria/Do Senhor dos Navegante; Quem me banha é Lembaran-ganguê/ É do Congo meu Cajamugongo/O Rei do Quilombo é meu Catendê; Cocada- Puxa/E de amendoim/ Pra vender no tabuleiro/Na Ladeira do Bonfim; Água da minha sede/Bebo na sua fonte/ Sou peixe na sua rede/Por-do-sol no seu horizonte; Dois de fevereiro/ Vá no Rio Vermelho/ Ela vai sambar/ Vai botar presente/ Pro orixá de frente/ Nas ondas do mar; Quando o canto é reza/ Todo toque é santo/ Toda estrela é guia/ Todo mar encanto; Quem acendeu essa luz/No seu olhar/ E deu as contas azuis/ Do colar; Era um samba esta vida da gente/Você de repente atravessou/ São Jorge guerreiro/Me avisou/ Desandou; A paixão nasceu/ E tomou conta de mim/ Quando o sol clarear/ Eu vou lhe convidar/ Pra casar no Bonfim; De tanto te amar/ No marejo do mar/ Aprendi as manhas do amor; Feito quem faz um crochê/ Uma renda, um filó /Unisse as pontas do nosso querer/ E desse um nó; Você só entra/Quando eu entrar/ Só bole/ Quando eu bulir/ Só mexe/Quando eu mexer/ Só sai/ Quando eu sair.

Estes versos simples, mas saborosos, extraídos de cada letra, dão uma ideia da joia de poesia popular com que nos deparamos. Com a irretocável voz de Roberta Sá (que já havia nos brindado antes com o ótimo “Que belo e estranho dia pra se ter alegria”) aliado aos arranjos contagiantes do Trio Madeira e melodias baianas (no melhor sentido da palavra) de Roque Ferreira, “Quando o Canto é Reza” é mais uma obra-prima da MPB, imprescindível em qualquer discoteca, ou “cedeteca” se preferem. Quem não se motivou a ouvir inteiro este trabalho (desculpe-me amigo), depois de todo este meu arrazoado, não tem salvação para a alma....

10.2 “ôÔÔôôÔôÔ” de Thaís Gulin

A cantora e compositora Thaís Gulin ficou mais conhecida por ser uma possível namorada de Chico Buarque. Convém deixar isto para as revistas de fofocas e prestar atenção no seu enorme talento nas duas áreas artísticas que se propõe trabalhar, sem contar com o fato de que também fez os belos desenhos e a concepção da capa do CD.

“ôÔÔôôÔôÔ” é um samba seu já maduro que cresce a cada audição, como todas as faixas ( Com os carros em chamas vou sorrir/Lavando as cinzas dentro de mim). “Água” atesta a onipresença consistente de Kassin na “nova MPB” (Calma,tenha calma/ Ninguém pode viver assim/Calma, tenha calma/Que o mundo não vai ter fim). “Horas cariocas” é mais uma canção de Thaís na qual o ouvido tem que se acostumar ( Serei teu macaquinho/ Vou morrer em teus caminhos/ Pra te ouvir cantar mansinho/ Vou ficar aqui sozinho ( quietinho). “Se eu soubesse” é uma canção inédita de Chico Buarque que ele, com sua grande qualidade de intérprete, sem ter uma grande voz ( seja à la João Gilbeto ou Cauby Peixoto), divide com ela, revelando mais uma vez as desrazões do coração ( Ah se eu soubesse/Nem olhava a Lagoa/ Não ia mais à praia/ De noite não gingava a saia/ Não dormia nua/ Pobre de mim, sonhar contigo jamais).”Revendo amigos” é uma pulsante canção de Jards Macalé e Waly Salomão ( Se tocar algum xote eu tou/ Se tocar um xaxado eu xaxo/Se cair algum coco eu corro/ E volto pra curtir).

“Quantas bocas” de Ana Carolina/ Thaís Gulin/ Kassin é uma bela canção de dor de cotovelo que supera clichês (Meu ódio dura pouco/ Meu amor também/ Vai saber/ Se eu te encontrar/ Posso lhe beijar/ Ou nem te reconhecer); “Cinema Americano” é a mais bela, original e intrigante canção do CD, feita por Rodrigo Bittencourt, de difícil interpretação mas Thaís brilha. Como este é um blog que trata prioritariamente de cinema, vale a pena reproduzir toda letra,que detona a hegemonia do chamado cinema adrenalina machista e hegemônico, dentre outros clichês hollywoodianos:

Cinema Americano

Composição : Rodrigo Bittencourt

Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rock n'roll

Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado

Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus

Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus

Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel

Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel

Tão hot dog tão câncer social tão narciso

Tão quadrado tão fundamental

Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York

Tão grana tão macho tão western tão Ibope

Racistas paternalistas acionistas

Prefiro os nossos sambistas

A ponte de safena Hollywood e o sucesso

O cinema a Casa Branca a frigideira e o sucesso

A Barra da Tijuca Hollywood e o sucesso

Prefiro os nossos sambistas

Prefiro o poeta pálido anti-homem que ri e que chora

Que lê Rimbaud, Verlaine, que é frágil e que te adora

Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol

Mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol

Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao

Não que Slayer não seja legal e visceral

A expressão do desespero do macho americano é normal

Esse medo da face fêmea dita por Cristo é natural

É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filme

É preciso seu amor seu feminino seu suíngue

Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande

É preciso ser macho ser fêmea ser elegante

Prefiro os nossos sambistas

“Encantada” é daquelas canções singelas de Adriana Calcanhotto que capta tocantes fragmentos de discursos amorosos (E me deixar levar/ Assim já desacostumada/ À presença do amor/ Me vi de novo a ele apresentada/ Prazer, encantada). “Alim sim, Ali sim” de Tom Zé que divide vozes com Thaís é uma das mais belas do CD, com aliterações deliciosas que remetem à Alice de Lewis Carroll, com simples mas fabuloso refrão (Ali sibilante se escuta/Cigarra biruta/O sol a soletrar/ Ali sinfonia de grilos/ A ninar os filhos/Noites de luar). “Little Boxes” de Malvina Reynolds, toda em inglês, é uma crítica lírica que nos lembra “The Wall” de Alan Parker/Pink Floyd, onde os seres humanos recebem educação normatizadora nas universidades e são colocados em pequenas caixas, onde só mudam as cores e assim sucessivamente ocorre com filhos, netos etc.(And the people in the houses/All went to the university/Where they were put in boxes/And they came out all the same).

“Frevinho” é mesmo o que sua modéstia carinhosa insinua. Um belo frevo minimalista de Thaís Gudin e Moreno Veloso (Nos jogar/Feito um pião/ Juntos na multidão/É só você segurar na minha mão quando for mergulhar). “Paixão Passione” é uma canção com a marca muitas vezes inconfundível de Ivan Lins ( em parceria com Ronaldo M. de Souza) ( Paixão/Ela é nossa saga/Leva e nos afoga/ Salva e nos afaga/Nunca vai mudar).

Enfim Thaís Gulin, em que pese, a fabulosa quantidade de boas e muito boas cantoras que tem surgido (uma pesquisa que fiz no youtube me confirma isto) tem talento de sobra como cantora, muito bom gosto e originalidade na escolha do repertório e merece ser conhecida, ser acompanhada, neste mar de cantoras brasileiras que não cansam de nos surpreender, mostrando-nos a riqueza da “nova MPB”. Para louvá-las, basta deixar preconceitos de lado e arregaçar as mangas. Se Chico tiver mesmo se encantado por Thaís e sendo correspondido, trata-se de um belíssimo e talentoso casal artístico.

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Nelson Rodrigues de Souza

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