sexta-feira, 29 de abril de 2011

No Fundo de Cada Verdade e Desejo Encobertos























No Fundo de Cada Verdade e Desejo Encobertos

(Os textos contém spoilers, ou seja, detalhes das narrativas são revelados para a análise pretendida)

1- “Bróder” (Brasil/ 2009) de Jeferson De

O cineasta Jeferson De chegou a redigir o que chamou de “Dogma Feijoada”, com alguns pontos básico que conduzissem os filmes a tratarem os negros sem estereótipos, tendo no Brasil, Cacá Diegues como um dos seus avatares em termos de “obediência” a esta tendência. Gosta muito de uma sequência de “Ganga Zumba” de Cacá, onde Léa Garcia é uma negra que nem quer ficar nas garras da escravidão, nem também não tem vontade de ir para um quilombo. É neste meio termo, caminho do meio, que o cineasta se sente hoje.

Um dos pontos altos do fascinante “Bróder”, ganhador do Festival de Gramado de 2010 e do Prêmio da Crítica de Melhor Filme, Melhor Fotografia (Gustavo Hadba), Som (Miriam Biderman e Ricardo Reis) e Direção de Arte (Alessandra Maestro) do 3º Festival de Paulínia, é que ele numa fase mais madura do cineasta não se aprisiona em dogmas.

Três amigos de infância, Macu (Caio Blat, neste que talvez seja seu melhor trabalho no cinema, num conjunto de vários grandes desempenhos), Jaiminho (Jonathan Haagensen, revelado em “Cidade de Deus”) e Pibe ( Sílvio Guindane, aquele menino que vimos no impactante “Como Nascem os Anjos” de Murilo Salles em 1996, agora já ator bem maduro, além de autor e diretor teatral) se reencontram anos depois, para uma feijoada na casa de Macu, onde se comemora o aniversário deste. Tudo se passando no Capão Redondo, uma enorme favela paulista de periferia, bastante hostil e inóspita, onde não se tem o lenitivo de algumas favelas cariocas, de onde se tem uma aprazível e bela visão das belezas naturais do Rio de Janeiro. O encontro efusivo deles se dá numa conjuntura emblemática: os abraços têm como pano de fundo uma pessoa morta estirada no chão, sendo chorada por uma pessoa que dela se compadece.

Macu está cheio de dívidas se entrega à marginalidade tendo de participar da logística de um sequestro de um “Pequeno Príncipe”. Jaiminho é um jogador de futebol famoso (uma das válvulas de escape social possível para quem tem talento nesta área), sediado na Espanha, tem esperança de conseguir uma vaga como jogador da Copa do Mundo, defendendo as cores do Brasil. Pibe casou-se com Cláudia, trabalha como técnico num centro médico, tem um filho e está insatisfeito com sua vida “fútil, cotidiana, tributável” como diria Fernando Pessoa.

O pai de sangue de Cadu desapareceu. Sua mãe (Cássia Kiss, ótima nos papéis coadjuvantes que tem feito no Cinema Brasileiro e aqui não é exceção) se junta a um pai (Ailton Graça, um dos atores negros muito bons em atividade) com uma filha, que está grávida de Jaiminho, um padrasto que quer assumir a paternidade de Cadu, mas o encontra arredio, percebendo que ele deve estar envolvido em enrascadas com marginais. Sua discussão com Cadu no dia do aniversário é no mínimo, bastante forte e convincente.

Um dos grandes méritos do filme é que mesmo trabalhando com atores que são figurinhas carimbadas do Cinema Brasileiro, ele imprime uma forte autenticidade a tudo que mostra, seja nas festas, no dia a dia, como nos encontros entre os amigos e destes com terceiros, onde a linguagem e emoções despertadas são bastante trabalhadas, fazendo-nos mergulhar no “Universo Capão Redondo”. Uma sequência que destoa do filme e mostra certo maniqueísmo é o telefonema de um chefe de Jaiminho que está num campo de golfe com uma louraça. No mais reina a sobriedade e espontaneidade, seja carinhosa ou agressiva.

Mesmo na feijoada do aniversário, Macu é acossado de tempos em tempos pelos marginais que os domina. Estes, depois o comunica que os planos mudaram. O que desejam agora é sequestrar o jogador Jaiminho, o que vai desencadear um forte conflito ético interior em Macu, um personagem branco que poderia ser “um negro da favela”, mas o diretor e os demais roteiristas, dentre os quais o escritor negro Ferrez (de histórias da periferia de São Paulo), fizeram questão de criar uma inquietante inversão, explorando o que Capão Redondo pode ter de deletério socialmente, independentemente de cor da pele.

O filme alterna cenas de grande vivacidade em relação aos costumes e comportamento de três amigos, com um thriller em paralelo, amigos que embora tenham tido destinos bem diferentes, ainda mantém certa inocência que advém de quando eram crianças amigas. Isto não impede que ocorram grandes brigas, principalmente quando há uma blitz, Jaiminho usa seu poder de “você sabe com quem está falando?” e depois descobrem que Macu trazia uma arma no carro.

“Bróder” tem uma fotografia granulada e acinzentada que ressalta a “prisão social” que é Capão Redondo”, por mais que aqui e ali a alegria também possa florescer. É um filme sobre a amizade antes de qualquer outro subtema. Quando Cadu vai encontrar seus comparsas com dinheiro para alforria dado por Jaiminho, seu padrasto, farejando o perigo, numa comovente sequência lhe dá um revólver para seja o que for, ele se proteger. Cadu instado pelos colegas de crime a ligar de imediato ao jogador Jaiminho e pedir que ele volte urgentemente ao Capão Redondo para encontrá-lo, naquela que é a mais bela e pungente sequência do filme, pega o celular, liga e diz chorando ao amigo que lute bastante pelo Brasil na Copa, o que o fará ser alvejado e justiçado pelos bandidos. Assim temos o paralelismo incômodo de ver num plano que reserva certa distância, Cadu agonizando e sua família vendo pela televisão com suspense a escalação dos jogadores para a Copa, em que finalmente Jaiminho é chamado.

Uma panorâmica expressiva da imensidão hostil do Capão Redondo, favela gigantesca da periferia, ao som de um rap dos Racionais MC encerra este filme singular e muito bom, que escandalosamente demorou demais para chegar ao circuito, mesmo com todas as qualidades que tem e das quais o texto só comentou parte.

2- “Murro em Ponta de Faca” de Augusto Boal, direção Paulo José, Teatro Sesc-Copacabana-Arena, até domingo 30/04, quando haverá debate com Paulo, Cecília e Fabian Boal ( mulher e filho de Boal) sobre as condições em que a peça foi gerada e outros temas conexos.

Vi no “Teatro Ducilna” em 1979 à primeira montagem de “Murro em Ponta de Faca” com direção do próprio Paulo José. De lá para cá já perdi a conta de quantos filmes, peças e livros li. Assim o que me lembrava da montagem é que se tratava das peregrinações de exilados brasileiros pelo mundo, acompanhadas de muita dor e angústia, lembrando-me mais do trabalho ótimo de Dina Sfat. Não me lembrava mais do que isto.

Acredito que isto que acontece comigo também ocorre com outras pessoas. Assim tanto para quem viu a montagem há trinta anos atrás, como para as novas gerações é mais do que oportuna a remontagem da peça, ainda mais que ela se escora mais em valores humanos atemporais do que no ambiente político da época, o que a faz não ser de forma alguma datada.

Vista agora, é como nunca a tivesse visto, pois me deparo com seis personagens, três casais, solidamente construídos dramaturgicamente, de forma que tenho um painel bastante significativo, expressivo e sensível de personalidades de exilados brasileiros da ditadura militar que perambularam sofridamente por vários países, mas sempre com banzo do que deixaram na terra em que nasceram. Isto fica patente logo de início, quando são todos instados a relatar do que mais tem saudade do Brasil, enquanto estão exilados no Chile. Com o golpe militar de Pinochet e a morte de Salvador Allende, acompanhado pelo rádio, eles se refugiam junto a muitas pessoas num lugar fétido, com racionamento de comida, até que vão para a Argentina e dali para a Paris, onde apesar da riqueza cultural sofrem para se inserir nesta cidade nova, ganhar dinheiro e assim realmente poder usufruir o muito que a cidade tem de bom, o que passa a ser uma quimera.

Como a condição de exilados unidos pelo acaso, com parcos recursos, não muda, mesmo ao mudarem de pais, o que fica patente e expressivo pelas malas que carregam, carregam, mas acabam compondo o mesmo cenário, só os sonhos com uma volta ao Brasil, que não sabem quando será, lhes dá algum alento maior. Unidos e muitas vezes desunidos, têm nas alfinetas mútuas o modo de se manterem ativos e vivos.

Paulo é músico e deixou vários instrumentos musicais no Brasil, restando-lhe um violão e de todos é o mais disposto a dizer um rotundo não ao estado das coisas no Brasil. Envolve-se com Maria que cai em profunda depressão, o que a levará à morte num hotel, que anuncia por telefone, o que gera uma das cenas mais impactantes da peça, com trabalho ótimo dos dois. Marga uniu-se ao Doutor em Bariloche, o que a faz ser tida como uma exilada sexual, pois se voltar pode ser morta pelo marido, comentam ironicamente. Doutor mistura consciência crítica vaga das forças internacionais em jogo, deixou biblioteca fantástica no Brasil, mas incorpora certo pedantismo, o que o faz ser alvo de observações ácidas dos demais, principalmente de sua mulher Margas que volta e meia lembra a todos que está ali por acaso, não tem ideologia formada e que não queria estar casada com o Doutor, tendo sido isto um grande erro de sua vida. A atriz que a faz é fantástica, quase que operística em muitos momentos, sendo um dos pontos altos do espetáculo (infelizmente o programa da peça que envolve atores desconhecidos por mim não associa personagens a atores). Chega a seduzir os homens e transar com Barras, o que acaba contando a todos, menos ao marido. Barras sente saudades da quantidade variada de pimentas que tinha no Brasil. Sua companheira Foguinhos faz tudo para se mostrar uma mulher feminista, moderna e forte, aceitando a traição do marido em público, mas advertindo-o em particular.

Em suma: o que ressalta na peça mais do que os valores políticos e históricos é a fragilidade humana destes personagens colhidos pelos vendavais de um tempo muito sombrio da História brasileira. Isto não impede que a peça dê conta de todo este contexto histórico que envolve os exilados fora do país, algo que o Cinema Brasileiro ainda não fez e no Teatro só conheço esta peça que o tenha feito com tanta sensibilidade e força.

Depois de anos de peregrinação, via-crúcis, os casais Margas-Doutor e Barras-Foguinhos resolvem voltar ao Brasil. Paulo e Maria decidem ficar por não acharem que seja o momento. Num monólogo belíssimo, Paulo faz um hino de não conformismo e não submissão. Mas Maria, numa atitude emblemática de alguns exilados ( como os outros personagens também representam) acaba sucumbindo à dor.

Se a peça é um “Murro em Ponta de Faca” dos personagens, é um soco na boca do estômago do espectador, realizada por um elenco muito bom, num texto que está tinindo de atualidade num mundo em que muitas pessoas não encontram lugar em seus países, emigram se tornando párias de sociedades que não os reconhecem ou até mesmo em que pessoas (como eu, homossexual, originário de família de poucos recursos, carente de direitos básicos de cidadania, não podendo nem mesmo beijar um parceiro na rua sem risco de ser agredido) se sentem exiladas dentro do próprio país.

3- “Fascinante Gershwin -Uma Revista Musical” de Rubens Lima Junior, baseada em mais de 30 canções dos Irmãos Ira e George Gershwin

Charles Möeller e Cláudio Botelho estão explorando agora musicais com grandes recursos de produção. Sai “Hair” no Teatro Casa Grande-RJ e entra “Um Violinista no Telhado”. Lembro-me quando vi Cláudio Botelho pela primeira vez na TV Cultura num delicioso pocket -show com Cláudia Neto, cantando standards da grande canção americana, o que evidencia que os caminhos para os musicais no Brasil podem e devem ser os mais variados.

“Fascinante Gershwin” com as vozes esplêndidas e capacidades de interpretação maiores de Sabrina Korgut, Chris Penna, Fabrico Negri e Rodrigo Cirne, num cenário despojado onde tem-se cadeiras, um balanço e dispositivos como que escadas, trabalhando com canções variadas da dupla no original, valendo-se de mímicas em que ela é cortejada pelos três, num jogo de aproximações e afastamentos, projetam a voz pela sala de espetáculo com sonora grandiosidade, provocando palmas efusivas e sinceras a cada número. É mais uma prova da grandeza e efervescência variada de que vive hoje o musical no Brasil, que tanto pode apoiar-se no que se faz de melhor na Broadway, como seguir caminhos mais modestos mas nem por isso sem a imantação de grande interesse.

O quarteto de cantores é fantástico. Se tivesse que escolher quem encanta mais ficaria com Sabrina. A interpretação de S’Wonderful se cantada sem certo falsete um pouco caricato teria rendido mais, uma canção imortalizada também na interpretação de João Gilberto em um dos seus clássicos que é “Amoroso”. Mas fora esse senão que, aliás, nem é tão grande assim, tudo o mais é puro prazer, dando vontade de rever, rever assim como ouvimos um CD várias vezes.

O espetáculo em cartaz no Rio desde meados de 2010 encerrou domingo sua carreira no Rio de Janeiro (por hora) e os atores anunciaram novos projetos, incluindo outro nos moldes deste atual, mas com outro autor.

Mas seria um equívoco se o grupo tão coeso não explorasse o grande potencial de público em outras cidades, como São Paulo, senão agora, mas em outra oportunidade. Imperdível e com gosto de quero mais. Desde o extraordinário “Beatles Num Céu de Diamantes” não se via na cidade um espetáculo assim econômico, mas tão fascinante.

4- “Ninguém Falou que Seria Fácil” de Felipe Rocha, direção de Alex Cassal, co-direção de Felipe Rocha, com Felipe Rocha, Renato Linhares, Stella Rabello

Bárbara Heliodora critica, não sem razão, algumas peças ditas experimentais que ignorando a ideia básica de personagens, um conflito fundamental e evolução deste mais por ações do que por ideias, simplesmente se mostram diferentes do mais comum, mas não acrescentam algo mais na experiência vivencial do espectador que é o que mais importa. Os atores podem estar tendo o maior prazer em estar em cena. Mas o prazer maior tem de ser o do espectador, um erro que já acometeu até mesmo a experimentada Cia. dos Atores de Enrique Diaz em “Devassa”, mas que ela não incorreu no soberbo “In on It” com espantosas interpretações de Fernando Eiras e Enrique Diaz ( no dia em que vi, este substituiu Emílio de Mello, o que dado a grandiosidade deste ator, teria me proporcionado um espetáculo ainda melhor do o que vi).

“Ninguém Falou que Seria Fácil” é o exemplar espetáculo que foge completamente à dramaturgia mais tradicional e consagrada (que pode ser apreciada em “Murro em Ponta de Faca” já comentada), mostra atores que têm grande prazer no que fazem e provocam também imenso prazer na plateia, ao menos na maior parte dos espectadores que a viram no sábado último no Teatro Maria Clara Machado-RJ.

Quando a peça começa um casal discute sobre quem teria culpa no paradeiro desconhecido da filha pequena. As acusações e desculpas são mútuas. Um jovem ator, vestindo camiseta e cueca surge como a filha desaparecida. O ator que faz o pai quer também fazer a filha. Assim a mãe passa a ter duas filhas para cuidar e acarinhar, mas tem que se impor sob protestos para ir trabalhar. E assim metamorfoses sucessivas de situações dramáticas vão se sucedendo ininterruptamente, enfatizando a solidão, carência, incomunicabilidade e descolamento existencial de seres em meio a situações em que não tem controle. Um pai chega a dizer ao filho: este é o pai que você tem e vai ter de se acostumar com isto!

Muitas situações criadas, como a do índio que surge quando um pai conta uma história à filha viciada em chupeta são francamente engraçadas, em outras predomina o espírito agridoce, um tom que agora está presente em muitos filmes contemporâneos e peças, um sentimento de mundo que se tornou quase que onipresente, quando não trágico.

As soluções de cenografia e figurinos são fascinantemente simples, oportunas e trabalham a favor das micro-histórias criadas que formam um grande mosaico dos estranhamentos da vida cotidiana hoje ( ou de sempre?), ou como diria Ferreira Gullar, “ a estranha vida banal”.

De forma desabrida aqui e ali surgem cenas homoeróticas e até mesmo um ménage a trois muito bem coreografado, assim como outras cenas de apelo visual. Em uma delas chega-se a homenagear “2001, Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick, numa contínua demolição e construção do espetáculo, valendo-me de uma expressão cara a Aderbal Freire Filho.

“Ninguém Falou que Seria Fácil” é um trabalho original, instigante, desafiador, inteligente e imperdível. O grupo responsável, “Foguetes Maravilha”, depois da temporada no Maria Clara Machado ( Teatro do Planetário) vai se instalar em maio no Sérgio Porto, onde mostrará também o trabalho anterior “Ele Precisa Começar” ( onde estava eu que não vi este espetáculo?) e outro posterior a este aqui comentado. Ao Planetário até o fim do mês e ao Sérgio Porto, pois.

5- “A Minha Versão do Amor” (Canadá/Itália/ 2010) de Ricahrd J. Lewis

A maior crítica que se pode fazer a este filme está ligada aos seus maiores trunfos que ressaltam seus maiores calcanhares de Aquiles. Paul Giamatti e em escala menor Dustin Hoffman estão soberbos como os judeus Barney e seu pai Izzy respectivamente. Se o filme não contasse com estes grandes atores ficaria mais visível a falta de convicção que o diretor imprime às cenas, adaptadas de um romance de Mordecai Richler .

Outro romance de Mordecai gerou um grande filme de Ted Kotcheff , “O Aprendizado de Duddy Kravitz"( Canadá/1974), antes do diretor cometer/enveredar/ se perder pelos caminhos de Rambo, o que me provocou antipatia para seguir sua obra posterior que pode até ter tido seus momentos de brilho. Há um filme de Kotcheff , “Pelos Caminhos do Inferno”, bastante incensado pela crítica paulista há anos atrás que gostaria muito de conhecer. Será que algum “pirata” me ajudaria?

Já “A Minha Versão do Amor” está na fronteira entre um filme regular e bom, sendo que o que dá sustentação mesmo ao filme é a prodigiosa capacidade de Giamatti e Hoffman ( um ex-policial) nos tocarem tanto com seus dotes cômicos como dramáticos ou naqueles limites em que “o que dá pra rir dá pra chorar, questão só de peso e medida, problema de hora e lugar” ( segundo Billy Blanco).

Barney está velho e tendendo ao mal de Alzheimer, separado da terceira mulher Miriam (Rosamund Pike), com quem tem uma filha e um filho, depois de ter tido dois casamentos em que a primeira se suicidou e a segunda foi flagrada na cama com seu melhor amigo, o qual foi morto por ele num acidente, emblemático do como o cômico pode se confundir com o dramático. Barney é um produtor conformado de novelas medíocres de uma empresa chamada “Totalmente Desnecessária”. Um dos problemas do filme, que diga-se tem uma produção esmerada que enche os olhos, no melhor sentido, é que flagramos Barney em crise com as mulheres, mas pouco se desenvolve o enfado que seu trabalho pouco criativo, mecânico, pode lhe acarretar no cotidiano. Prefere-se enfatizar seu lado fauno.

“A Minha Versão do Amor” se vê com prazer e se não dá conta de forma forte das agruras a que o amor pode nos levar, é recomendável para quem não perdeu o gosto por assistir grandes atuações, algo que a era do divismo hollywoodiano impunha para deleite de muita gente, mas que agora, mesmo sem divas e divos propriamente ditos, faz sentido para nos movermos de casa à tela escura e grande dos cinemas.

6- “Cidadão Boilesen” ( Brasil/2009) de Chaim Litewski

Henning Albert Boilesen (1916-1971) nasceu na Dinamarca, se mudou para o Brasil, teve uma bem sucedida carreira empresarial e tornou-se presidente do grupo Ultra, da Ultragaz, no tempo em que se vendiam muitos bujões de gás, “semana sim, semana não, Ultragaz no portão”. Comungando da ideia de que João Goulart com seu discurso na Central do Brasil em prol de reformas de base, dentre elas uma verdadeira e ampla reforma agrária ( o que o Brasil não fez até hoje, algo que vários países capitalistas, como os EUA já fizeram há anos) iria levar o Brasil para o caminho castrista do comunismo, apoiou, como outros empresários e boa parte da grande imprensa, o golpe militar de 1964, com a ideia tosca de que se tratava de uma revolução.

Até aí sua trajetória se confunde com a de outros empresários. O que singulariza Boilesen, conforme até mesmo uma pesquisa em seus antecedentes escolares mostra ao narrarem um episódio em que sentia prazer em ver seus colegas sofrerem num castigo imposto, é o seu lado sombrio ( que todos temos) mas exacerbado, pois além de ser um dos articuladores civis da Operação Bandeirantes (Oban), era um dos financiadores e aquele que convencia outros empresários a contribuir ( o que não fizeram Antônio Ermírio de Moraes e José Mindlin) e que não se contentando com este papel frequentava o DOPS para assistir a sessões de tortura, importando um mecanismo torturador dos EUA que ficou conhecido com seu nome.

Logo de início sabemos que Boilesen foi assassinado e flashs deste atentado irrompem aqui e ali na narrativa deste doc. De inicio temos entrevistas com pessoas que moram numa rua com nome do empresário, as quais não sabem nada além do trivial sobre quem foi este cidadão.

Sedutor e ‘bem relacionado” Boilesen, deixou lembranças fortes em muitas pessoas, mesmo naquelas que estão no espectro ideológico oposto. Mas apesar das negativas de entrevistados como o filho, fica patente que não se tratava apenas de uma questão de opções ideológicas. Estamos diante de um cidadão de personalidade doentia e perversa que participou ativamente da repressão, captura ( cedendo caminhões da Ultragaz) e tortura ( como voyer e tecnólogo) aos brasileiros que se vendo encurralados e sem opções, optoram pela luta armada contra o regime militar. Pode-se discutir o sentido pragmático da luta armada como fez Ferreira Gullar num Programa Roda-Viva recente ( para o poeta que foi convidado a aderir e recusou, era uma atitude suicida pois os revoltosos teriam de lutar contra toda as forças armadas e sem a concreta participação popular, preferindo assim se exilar), mas o que não se pode nunca é defender qualquer forma de tortura (algo que ainda ocorre hoje em muitas delegacias com os pobres pobres).

Dentro deste contexto que o filme mostra entende-se a violência reativa contra Boilesen, que morreu com muitos tiros e mais um de misericórdia para se ter certeza de que havia morrido, conforme é mostrado por animação, cenas de filmes de ficção e através da narrativa de ex-militante que hoje é professor de música.

“Cidadão Boilesen”, com montagem extraordinária de Pedro Asbeg , mistura entrevistas com pessoas de vários lados da questão central que norteia o filme ou seja, as razões que moveram o cidadão e o levaram à morte: Coronel Brilhante Ustra, que não fala espontaneamente e sim, lê relatório, alguém que foi reconhecido pela então deputada e atriz Bete Mendes como seu torturador numa cerimônia; Erasmo Dias, figuraça reacionária que afirma ter tido contato até com a CIA e tenta dar naturalidade ao horror; um filho de Boilesen que quer nos fazer crer que tudo o que é documentado sobre o pai é mentira; o incansável baluarte da direita histórica Cel. Jarbas Passarinho que tenta historiar, defender e intelectualizar o inadmissível; escritores dinamarqueses com moradia no Brasil como Per Johns; historiadores como Daniel Aarão Reis Filho; jornalistas como Percival de Souza, especialista em questões policiais, do âmbito doméstico ao político mais amplo; Dom Paulo Evaristo Arns que explica porque se recusou a celebrar uma missa por Boilesen, pois este era protestante, sendo o que estava em seu poder era uma missa pela paz; Celso Amorim e Roberto Farias que explicam que o personagem de Paulo Porto em “Pra Frente Brasil” era inspirado em Boilesen; o ex-governador Paulo Egídio de São Paulo, que profere horrores como se fossem apenas questões administrativas; Fernando Henrique Cardoso, com visão crítica e sóbria do período etc.

A estas entrevistas mescla-se, quando oportuno, sequências de assaltos e torturas de “Pra Frente Brasil” de Roberto Farias”, “Lamarca” de Sérgio Rezende e “Batismo de Sangue” de Helvécio Ratton. Quando este último filme foi exibido teve suas sequências neste sentido bastante criticadas. Ora, por que se furtar a isto se é a mais pura expressão do que aconteceu?

O filme ainda utiliza, de forma bastante pertinente, letreiros que correm de forma transversal na tela. Enfim, um show de montagem, material colhido com apuro e abrangente, em meio ao show de horrores com que somos confrontados. É um documento cinematográfico corajoso que se recusa a enfiar a cabeça na areia, que não negligencia esta arte do documentário e a transcende: é fundamental para se entender o que foram os nossos anos de chumbo e muito valioso num tempo em que se luta para a criação imperiosa de uma Comissão da Verdade, que não pode ser simplesmente um jogo de empurra entre os três poderes.

Ps Não deixem de acompanhar a "Mostra Cinema Brasileiro, anos 2000, Dez Questões" no CCBB-SP e CCBB-RJ com curadoria de Eduardo Valente e Cleber Eduardo. Pelo site incrustado na Cinética http://www.revistacinetica.com.br/anos2000/ podemos acompanhar a programação, bem como o teor dos dez debates. Em poucos dia estes serão postados para quem os perdeu ou os quiser rever.

Vi na quarta-feira "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski, que ganhou o "`Tudo Verdade" de 2009, que tinha perdido quando de seu lançamento nos cinemas.

Se não puder acompanhar ao vivo as discussões, no mínimo, poderei ver filmes que perdi no circuito ( mal lançados) ou inéditos. De qualquer forma não perderei a oportunidade de assistir os debates em vídeo na própria Cinética. Desta vez já consegui o Catálogo , dado a quem frequentar no mínimo três filmes e numa visão geral, ainda sem lê-lo detidamente, está muito bom, com alentados artigos de Valente e Cleber sobre os temas propostos.

No Rio é bom prestar atenção, pois foi-nos avisado que a programação do último dia sofreu alteração.

7- Um Tanto de Música Popular Brasileira

7-1 “délibáb” de Vitor Ramil

Antes de qualquer coisa: o gaúcho Vitor Ramil ( irmão de Kleiton e Kledir) assim como Renato Braz, Caetano Veloso, João Gilberto, Zé Renato etc. é um dos grandes cantores brasileiros vivos atuantes no “ país das cantoras” que não param de surgir em maior ou menor qualidade. Sua voz delicada, suave, potente e lírica dá a dimensão precisa das canções com as quais se envolve. “délibáb”, num prodígio extraordinário de composição musical sua, dá origem a uma das obras-primas incontornáveis da discografia brasileira recente. Ramil musicou poemas de Jorge Luiz Borges e de João da Cunha Vargas criando milongas ( gênero musical da Argentina, Uruguai e Sul do Brasil que precede o tango), com uma destreza de adequação da poética aos sons que tudo se passa como se canções e letras tivessem nascido juntas.

“délibáb” é um fenômeno visual que ocorre em planícies do sul do continente em que imagens distantes são vistas como que próximas em planícies desertas, mas trazendo só enquanto imagens, não os sons. O CD ( acompanhado de um DVD com “délibáb” documental), lançado nos “conta” façanhas e características do sul , numa linguagem que a princípio nos parece estranha, alternando as canções em castelhano de Borges/Ramil com as em português de Cunha Vargas/Ramil. Mas tudo se passa como se umas ecoassem nas outras, trazendo unidade temática, num efeito de “délibáb musical e espacial.

Caetano Veloso, que não poderia faltar a um grande evento musical como este, canta “Milonga de los Morenos”, alternando vozes com Ramil. Imprescindível este CD/DVD. Chimarrão é “uma bebida amarga da raça que adoça o meu coração”. “délibáb” adoça nossa alma. E não é nada amargo. Ou disfarça a amargura pela potência poética.

7-2 “Feito pra Acabar” de Marcelo Jeneci

Marcelo Jeneci não tem o poder e os recursos vocais de um Vitor Ramil, mas é bastante expressivo. Enfim, o que se chama de um ótimo intérprete, ainda que com voz limitada. Seu CD “Feito pra Acabar” tido por todos os críticos de que me dei conta como um dos melhores lançamentos brasileiros, senão o melhor de 2010, está à altura deste prestígio todo.

Com uma música exclusivamente sua ( “Pra Sonhar”) e outras em parceria com Chico César, Arnaldo Antunes, Zé Miguel Wisnick, dentre outros , “Feito pra Acabar” é uma sucessão ininterrupta de grandes momentos que culmina de forma apoteótica na música título, a mais tocante: “ A gente é feito pra acabar/ A gente é feito pra dizer que sim/ A gente é feito pra caber no mar/ E isso nunca vai ter fim” . Em muitas faixas Marcelo divide os vocais com a voz doce e singular de Laura Lavieri ou cede de vez lugar a ela (esta artista promissora merece seu CD solo). Tendo arranjos sensacionais com piano, órgão, guitarras, violão, sanfona (com Jeneci, exímio neste instrumento), além de palmas e assovios etc., o CD é hipnótico.

O grande “barato” de Jeneci é realmente o que já foi muito comentado. Há uma sofisticada simplicidade (ou simples sofisticação) que nos acaricia e embala, remetendo a Los Hermanos, à Jovem Guarda bem como aos trabalhos de Arnaldo Antunes e Wisnick (não é à toa que comparecem como parceiros). Em algumas faixas a alternância de uma forte base de guitarra em tom elevado, com suavidade nas vozes, é irresistível. A produção do CD é de Kassin, alguém por trás de vários grandes projetos.

No Rio de Janeiro, Marcelo Jeneci apresentou-se no OI Casa Grande num ingrato começo de semana. No OI Futuro Ipanema teve os ingressos esgotados rapidamente. A cidade merece uma temporada dele mais cuidada e generosa como os shows que vemos no Teatro Rival.

Para quem ainda se interessa pela arte gráfica do CD como eu, “Feito pra Acabar” é uma delícia de ser acompanhado, com belas fotos em papelão separados para cada música, numerados, com a letra e por fim a ficha técnica e com os agradecimentos de praxe.

Enfim, mais um CD incontornável para quem se interessa pelos caminhos variantes e luminosos que a MPB percorre.

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Ps O título do Post é um derivado de um verso de Caetano Veloso ( “Estive no fundo de cada verdade encoberta” de “Força Estranha”)

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Nelson Rodrigues de Souza

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