quinta-feira, 14 de abril de 2011

Trivial Simples e Complexo













Trivial Simples e Complexo

(Os textos apresentados contém spoilers, ou seja, detalhes importantes de narrativas são adiantados para a análise pretendida)

1- Contracorrente (Peru, Colômbia, França, Alemanha/2009) de Javier Fuentes-Léon

Numa época em que filmes que têm como um dos temas o homoerotismo muitas vezes são umas ciladas, pois pecam em fotografia, direção, roteiro em que pese serem desabridos ao mostrarem cenas homoeróticas não puritanas, é um grande alívio e prazer nos depararmos com “Contracorrente”, o melhor filme a abordar homoerotismo (repito: dentre outros temas) desde a obra-prima “Brokeback Mountain”( 2005) de Ang Lee. Os atrativos de “ Contracorrente” são inúmeros e não se esgotam neste texto, ainda que com spoilers.

Numa cidade pesqueira do Peru bastante provinciana com costumes arraigados tem-se um ritual fúnebre tradicional em que depois de lida uma homenagem ao morto , ele de barco é lançado ao mar. O pescador Miguel (Christian Mercado), casado com Mariela (Tatiana Astengo), que espera um filho do casal, é convidado a fazer a homenagem a um primo morto e cumprir o ritual no mar.

Como a província também tem o espírito “todo mundo quer saber como você se deita, nada pode prosperar” de “Tieta” de Cacá Diegues, Miguel tem um ardoroso caso amoroso com o pintor Santiago (Manolo Cardona) em recantos bem escolhidos, longe de olhares indiscretos, sendo que Santiago, um “estrangeiro exótico”, tem seu homoerotismo comentado de forma vexaminosa e cruel por línguas ferinas da comunidade.

A relação entre Miguel e Santiago é muito forte em todos os planos, seja o amoroso, seja o sexual, uma paixão ardente. Logo Santiago se dá conta de que por mais que as coisas assim se processem, Miguel não terá coragem para largar mulher e filho e viver uma vida integral com ele que fuja destes encontros fortuitos e escondidos.

Depois de uma briga com Miguel, Santiago embrenha-se no mar, morre afogado e numa inspiração assumida pelo diretor por “Dona Flor e Seus Dois Maridos” passa a ser uma visão para Miguel que só este vê. Assim irrompe na casa deste, senta no sofá junto com Manuela e o amado, chegam a transar e desfrutam outra s delícias que um pessoa fantasmática pode proporcionar. A princípio Miguel fica com o melhor de dois mundos, mas sua inadequação como pai vai se mostrando cada vez mais patente quando o filho nasce.

Só quando Santiago tiver seu enterro ritual, ele desaparecerá de vez, mas Miguel não quer saber disto, pois assim não veria mais o amante.

Pinturas eróticas de Manuel feitas por Santiago são descobertas na casa abandonada deste e a cidade passa a comentar que os dois eram amantes. Mariela toma conhecimento disso e sofre bastante chegando a sair de casa. Os amigos de Manuel o abandonam para depois retroceder, aceitando-o quando ele se mostra melhor como um pai de família.

O corpo de Santiago é encontrado e deve ser levado pela família para um enterro comum fora da comunidade. As pessoas desta são trabalhadoras, honestas, bem-humoradas, solidárias, mas a homofobia não consegue ser extirpada. A rigor, nunca houve espaço realmente para Miguel e Santiago ali. Deveriam ter tido a coragem de ir embora.

Integrado no papel de pai a fórceps, deixando de ver sua novela preferida com Lauro Corna e sendo obrigado a ver jogo de futebol junto à mulher e o filho, Manuel cria coragem enfim ( e este é um dos grandes temas do filme como em “Em Um Mundo Melhor” de Susanne Bier), enfrenta todos, convence a família do amante morto e resolve dar o enterro ritual da comunidade ao amante, que este tanto desejava para que seu espírito tivesse paz.

“Contraconrente’ trabalha vários elementos fílmicos com bastante acuidade: interpretações convincentes de todo o elenco, fotografia que capta a beleza do lugar, roteiro progressivamente cada vez mais interessante e direção sóbria que faz o filme passar longe de qualquer vestígio de dramalhão ou melodrama barato.

O asfixiamento que homossexuais (ou bissexuais como Manuel talvez seja) sofrem até mesmo numa província pacata de homens de bem é um forte indicador que ainda há muito por ser feito para que esta situação realmente mude, pois os “desviantes” carregam um papel transgressivo e subversivo que muitos não suportam, seja por homofobia internalizada, seja por medo de ver seus valores ruírem ( e o machismo é um deles).

“Contracorrente” na contracorrente de muitos “filmes gays” precários ou insuficientes é um trabalho que pelo seu conjunto de valores cinematográficos e emocionais não deve ser perdido de modo algum. Obra rara e belíssima.

2- “Turnê” (França//2010) de Mathieu Amalric

Grande ator francês de filmes memoráveis como “Reis e Rainha”, “A Questão Humana”, “O Escafandro e A Borboleta”, “Um Conto de Natal” além de algumas colaborações hollywoodianas como “Munique”, dentre outros, em “Turnê” Mathieu Amalric envereda pela direção cinematográfica, ao meu ver , de uma forma que se avizinha do fiasco.

Joachin (Mathieu Amalric) é um empresário que trabalha com o New Burlesque, onde mulheres de proporções para-fellinianas fazem shows individuais onde são capazes de magias simples e eróticas (o que o filme tem de melhor) para plateias de homens e mulheres. Depois de uma temporada nos EUA, Joachin quer realizar uma na França, culminando com Paris, aonde será mais difícil encontrar um teatro que acolha seu gênero artístico.

O argumento de “Turnê” é interessante, mas numa ego-trip quase que insuportável, Mathieu constrói com cacos dramáticos de outros papéis seus, a rigor, um papel só para si. Nenhuma das strippers tem realmente uma persona bem esquadrinhada na tela. São praticamente todas iguais em sonhos e projetos ainda que aqui e ali haja alguns lampejos de individualidade.

O roteiro avança aos trancos e barrancos, até chegar a um desfecho interessante onde Joachin dá um belo grito no microfone para enfatizar todo seu enfado e decepção com as lutas inglórias. Mas até aí já sofremos muito com tantas sequências esvaziadas que nos mostram o vazio daquela atividade, a rigor, old-fashioned, que faz o filme cair no vazio, uma autêntica armadilha. Só para ficar no Cinema Brasileiro: a obra-prima “Noite Vazia” de Walter Hugo Khouri trata justamente do vazio que acometem clientes e prostitutas num apartamento, mas Khouri está longe de cair no vazio: temos um universo de sentimentos contrastantes a descobrir que se ampliam a cada visão.

A palavra é redutora, mas diante do já exposto, me vejo no direito de escrever: “Turnê” é um filme muito, mas muito chato.

“Turnê” ganhou em 2010 a Palma de Outro de Melhor Diretor em Cannes para Amalric. Num festival em que concorriam Apichatpong, Kiarostami, Xavier Beavouis, Lee Chang-dong etc. esta atitude do júri só pode ser encarada como uma irresponsável piada. Meu amado Tim Burton, desta vez como presidente do júri, como seus colegas, pisou feio na bola, provocando uma grande mistificação.

3- “Que Mais Posso Querer” (Itália/Suiça/2010) de Sílvio Soldini

O amável “Pão e Tulipas” de Soldini narra a história de uma mulher que abandona uma excursão e vai atrás de um homem incomum que a atrai ( Bruno Ganz), vivendo aventuras que fogem do ramerrão do seu cotidiano “fútil e tributável” como diria Fernando Pessoa. O filme sintonizou com o inconsciente coletivo de fuga de muita gente, se tornou cult, ficando vários meses em cartaz.

“Que Mais Posso Querer” de certa forma retoma esta temática de necessidade de evasão de um cotidiano opressor. Anna (Alba Rohrwacher) é casada com Alessio (Giuseppe Battiston) e sondam a possibilidade de terem um filho. Anna se envolve amorosamente com Domenico (Perfrancesco Favino) e se encontram furtivamente várias vezes e se amam com sofreguidão. Domenico é casado e tem dois filhos. Chega um momento em que Anna acaba contando tudo ao marido que lhe dá um tempo para pensarem a relação. A mulher de Domenico percebe que está sendo “traída”. Numa viagem que fazem, os dois amantes precisarão colocar os pingos nos is da relação.

Se parte de um ponto pouco original “Que Mais Posso Querer” tem o mérito de trabalhar com atores sem glamour, pessoas comuns e realizar cenas de sexo onde se evidencia a intensidade da paixão e do prazer. O problema do filme é que ele é por demais reiterativo. Estamos aqui muito longe dos belos huis clos exasperantes de “O Último Tango em Paris” ou “Intimidade” de Patrice Chéreau e as sucessivas cenas de sexo cansam.

Ao final, quando o parceiro vai ao banheiro do aeroporto e Anna deixa de esperar pela mala dele e sai sozinha com a sua, abandonando o amante, temos uma bela cena onde tanto o medo de assumir uma relação nova, como o sacrifício de não querer desmantelar a vida familiar de Domenico , que “queria que nada faltasse aos filhos”, se mesclam e o filme assume grande interesse. Mas até que cheguemos a este final, haja reiterações narrativas e diálogos muitas vezes banais demais que põem o filme a perder.

4- “Ricky” (França/Itália/2009) de François Ozon

Katie (Alexandra Lamy) cria sozinha sua filha de seis anos Lisa ( Mélusine Mayance). Ao se tornar amante do operário Paco (Sergi López), este vai morar com ela e Lisa, sendo que o casal gera o filho Ricky. Tudo transcorreria como um filme realista como muitos outros sobre a classe operária se Ricky não apresentasse uma forte singularidade: de suas costas vai nascendo progressivamente um par de asas que permite que ele dê voos surpreendentes. Depois de muitas controvérsias e reviravoltas, para ganhar-se dinheiro para seu tratamento, o casal consente em expor Ricky às feras da mídia que cercam a casa para fotografar/filmar o fenômeno. Segurado pela mão da mãe como se fosse um balão, Ricky escapa e vai para longe nos céus de um lago.

François Ozon é hábil na já vasta obra em construir cenas fortes ( e muitas vezes perversas) com bastante delicadeza, subvertendo gêneros consagrados com toque bastante pessoal, digamos que quase que autoral. É assim com “Sob a Areia”, “8 Mulheres”, “O Amor em 5 Tempos”, “O Tempo Que Resta” ( talvez sua melhor obra) etc.

Em “Ricky” temos aparentemente um happy end. Katie se conforma com Ricky ganhando vida própria, entregue à natureza e acaricia a barriga grávida de um novo filho com Paco. Este dá carona na moto para Lisa ir à escola. O filme termina com um corte abrupto, com os dois passeando.

Mas algo desapontador acontecerá. Basta lembrarmos da sequência inicial que abre o filme: Katie angustiada está num juizado querendo entregar um filho para adoção e chegam a perguntar-lhe se ela tem certeza do que quer. O que veremos depois ocorre meses antes.

Com uma obra sólida e persistente, sem ser nenhum gênio, Ozon é um dos cineastas mais interessantes do cinema contemporâneo pelo inusitado que sempre impregna as suas obras que navegam longe da mediocridade, revelando-se sempre intrigantes, lúdicas e perversas naquele sentido que Buñuel elevou ao mais alto grau de sofisticação. Aqui sim com genialidade.

PS1 Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacre são roteiristas de grandes filmes de Alain Resnais como o fundamental díptico “Smoking/No Smoking”. Realizaram seus próprios filmes, roteirizando, atuando e dirigidos por Agnès, como “O Gosto dos Outros” e “Questão de Imagem”. No Teatro Poeira do Rio de Janeiro estão em cartaz duas peças da dupla que são comoventes, tocantes, engraçadas, dramáticas, meticulosamente escritas, muito bem interpretadas por um conjunto de atores que se repetem nas duas peças, com a entrada de Analu Prestes na segunda: “Cozinhas e Dependências” e “ Um Dia Como os Outros”. A primeira se passa integralmente nos limites que o título estabelece. A segunda num bar. Nas duas, tensões subterrâneas vão vir à tona com desfechos simples, mas intrigantes e reveladores.

Com finas observações sobre as relações humanas num mundo em que a fragmentação e certa luta de classes ainda dá as cartas, as duas peças são pequenas joias de dramaturgia que se não vieram para ficar, podem nos proporcionar grande prazer em ir ao Teatro. Há versões cinematográficas para estas peças às quais não tive acesso.

PS2 Comprei os CDs (sim, eu sou uma destas criaturas jurássicas que ainda compra CDs) “Meu Quintal” de Ná Ozzetti e “O Micróbio do Samba” de Adriana Calcanhotto. Chegaram ontem e só os ouvi uma vez, acompanhando as letras, degustando os trabalhos gráficos. Com novas audições sinto que vou gostar mais ainda deles, descobrindo mais filigranas das vozes, melodias, letras e arranjos. CDs de invenção que como tantos outros (até mesmo tradicionais), nos mostra que a Música Popular Brasileira não parou em 1985, conforme li estarrecido num Blog respeitável.

PS3 O Caso Realengo e a vida de Wellington Menezes de Oliveira é “um documentário pronto”. Dado o trabalho extraordinário de José Padilha em “Ônibus 174”, ganharíamos mais todos nós se Padilha em vez de perder tempo com uma refilmagem de “Robocop” nos EUA, abraçasse ( produzido por Marcos Prado) a elaboração de um doc sobre este tema, levando em conta o poliedro de visões/opiniões que são feitas sobre o caso, utilizando as imagens e mensagens disponíveis.

http://migre.me/4fkmB

http://migre.me/4fkqr

http://migre.me/4fkvP

http://migre.me/4fkBo

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http://migre.me/4fkMR

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http://migre.me/4fl21

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http://migre.me/4flvz

http://migre.me/4flG2

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelson,

    Eu já ia cobrar por você não ter feito o comentário sobre o Contracorrente, filme que achei muito bem feito e que coloca bem a questão do preconceito na cultur latina (e talvez em qualquer cultura). Particularmente, considero da melhor qualidade a atuação do trio de protagonistas.
    Abraço,
    João Mattos

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  2. Nelson, é com prazer que venho acompanhando teu blogue, desde que o conheci.

    Um abraço!

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