quinta-feira, 7 de abril de 2011

A Realidade é Sempre Mais ou Menos do que Nós Queremos e Vemos




















A Realidade é Sempre Mais ou Menos do que Nós Queremos e Vemos

(16º Festival “É Tudo Verdade”)

1- “Imagens do Playground” (Suécia/29 min./2009) de Stig Björkman

O primeiro grande livro sobre a obra de Bergman que devorei aos pouquinhos, vendo e revendo as imagens, muitas delas numa sequência cinematográfica, como as de “Noites de Circo”, foi “O Cinema Segundo Bergman” da Editora Paz e Terra, organizado por Stig Björkman e mais dois colaboradores, um dos grandes estudiosos do diretor, hoje presidente da “Ingmar Bergman Foundation”.

Herdeiro de filmes caseiros, imagens de making–off etc. Stig foi convidado para dirigir um curta e um média metragem sobre o trabalho de Ingmar.

“Imagens do Playground” com depoimentos de Harriet Anderson, Bibi Anderson, flagra um Bergman que se diverte com seu trabalho como se estivesse com sua lanterna mágica da infância, se surpreendendo que agora tem ideias que outras pessoas obedecem. Produz então imagens e sequências como se ainda estivesse brincando na infância.

O curta é bom, mas fica refém do pouco material que se tem desta fase inicial de Bergman. Se observamos outro lado de Bergman, alguém mais brincalhão, distante da imagem sisuda que teríamos dele, não muito mais do que isto nos é revelado.

2- “....Mas o Cinema é Minha Amante” ( Suécia/ 66 min./2010) de Stig Björkman

Bergman declarou que enquanto o Teatro era sua mulher, o Cinema era sua amante. Daí o expressivo título do documentário.

Neste média metragem tudo é mais bem realizado do que no curta. Temos vasto material de arquivo, uma narração de Liv Ullmann, bastidores de vários filmes não necessariamente em ordem cronológica (“Sonata de Outon”, “Depois do Ensaio”, “Da Vida das Marionetes”,“Gritos e Sussurros etc.), ainda que ao fim, se concentre em “Saraband”, testamento do autor, onde se retoma vinte anos depois personagens de “Cenas de Um Casamento”

“... Mas o Cinema é Minha Amante” flagra Bergman em ação com bastante controle do que quer realizar, não havendo lugar para maiores improvisos, pois o texto de seus roteiros são tão afiados, bem construídos, com diálogos impecáveis, que não deixa margem para outras operações que não seguir o original. Em “Saraband” Liv Ullmann lê uma carta, Bergman a interrompe: “Coloque um pouco mais de ironia na sua fala”. Bergman não se diz autoritário, mas admite que em certos momentos precisa ter algumas “explosões pedagógicas”!

De “Gritos e Sussuros” vemos alguns preparativos para a sequência do balanço onde é redimensionada a noção de felicidade, numa atmosfera primaveril amarelada que contrasta com os vermelhos, brancos e pretos de dentro da casa. Numa sequência flagramos as atrizes rindo, até mesmo Harriet Anderson que faz a irmã que está morrendo de câncer.

Com “Saraband” temos uma das últimas sequências filmadas por Bergman: Johan (Erland Josephson) vai ao quarto de Marianne (Liv Ullmann), está com grande ansiedade (e medo da morte), fica nu e pede para deitar com ela, que também tira a roupa, numa das antológicas cenas de Bergman a mostrar a fragilidade do ser humano em sua condição de mortal diante de algo que não tem certeza do que é que surgirá (se é que vai surgir).

Há depoimentos em off de Martin Scorsese, Bernardo Bertolucci, Lars Von Trier, assim como de colaboradores habituais como o extraordinário fotógrafo Sven Nykvist. E é neste quesito que o trabalho de Stig Björkman deixa a desejar: as cópias de trechos de filmes de Bergman não fazem justiça ao grande trabalho fotográfico com que Bergman (além de outros elementos fílmicos) impregnava sua obra. Um jovem que travar um primeiro contacto com Bergman através deste documentário vai ter uma visão errônea do que o diretor e seu diretor de fotografia são capazes de fazer no cinema. Dito isto, é forçoso reconhecer que “....Mas o Cinema é Minha Amante” é uma obra incontornável para os amantes de Bergman e para os que podem se iniciar nesta obra de um autor fundamental do Cinema no século XX e alguns sussurros no século XXI, como o monumento “Saraband”, um dos mais dolorosos e fascinantes filmes já feitos.

3- “The Black Power Mixtape” (Suécia/EUA/ 96 min./2010 ) de Göran Hugo Olssson

Um material de arquivo que ficou inédito por 30 anos filmado pela televisão sueca é retomado aqui com um mix de imagens que remetem a lutas do movimento Black Power americano dos anos 60/70, com as mais variadas posturas: temos o pacifismo de Martim Luther King, a visão mais ácida e desencantada (realista?) de Stokley Carmichael, o complexo Malcom X que se tornou muçulmano ( alvo de um filme subestimado de Spike Lee), Angela Davies, uma das mentoras do movimento dos Panteras Negras etc.

Comentando estas imagens temos, no presente, a voz em off de Angela Davies, Harry Belafonte, Erykah Badu etc.

“The Black Power Mixtape” é um amplo painel do caldeirão cultural que formou e formatou o Movimento Black Power, sendo que o movimento GLBT que surgiu depois com as lutas de Stonewall deve muito a ele. Com as vitórias conquistadas pelos negros que, por exemplo, só sentavam num ônibus se não houvesse nenhum branco em pé, outros grupos que sentiam a discriminação na própria pele (e aqui não se trata de cor) passaram a enxergar que outro mundo é possível.

As limitações de “The Black Power Mixtape” vem de alguns problemas de texturas com o material filmado, mas como diz um grande amigo meu: “Este é o material que gente tem para trabalhar”. Um dos destaques do filme é a desenvoltura com que Angela Davies expõe suas ideias, tanto no passado como no presente.

4- “Carne, Osso” (Brasil/65 min./2010) de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros

Sem “dar nome aos bois poderosos”, havendo apenas citações à Região Sul, Centro-Oeste etc. temos um passeio (quase que macabro, mas mais do que necessário) pelo universo dos frigoríficos brasileiros de bovinos, suínos e aves, com imagens que se intercalam em três planos.

a- A filmagem das linhas de montagem em que estes animais são trabalhados nos frigoríficos em que se têm, por exemplo, que desossar um pedaço de frango com por volta de 120 movimentos por minuto.As pessoas tem um tempo mínimo para irem ao banheiro, vestem uma roupa de forte aparato contra o frio intenso, vivenciam temperaturas baixíssimas e fazem trabalhos bastante repetitivos que lhes provocam tendinite, dores, atrofias, artroses, males psíquicos como depressão etc., podendo até pelo cansaço, perder dedos, cair em arapucas que lhes cortam braços e pernas, sendo que pessoas podem sair destes trabalhos se tornando incapazes para qualquer outra atividade laborativa. Dado que há uma massa de gente querendo tomar o lugar de quem está empregado, os que desenvolvem problemas físicos são facilmente descartados e substituídos por pessoas que continuam a ciranda dos salários bem baixos, para uma atividade que nenhum dinheiro compensaria, pois elas ali estão sacrificando suas vidas.

b- Autoridades da área de saúde ou trabalhistas de poderes limitados são entrevistadas, mostram consciência das barbáries que são cometidas, mas se veem impotentes para mudar a situação.Quando há sindicâncias e fiscais vão em loco, verificando péssimas condições de trabalho, as indústrias são multadas. Só que até a fiscalização voltar (em média a cada três anos) os patrões preferem pagar as multas que são irrisórias em face do lucro que atingem com a política de escravidão que instituem com pessoas que precisam do emprego para sobreviver e sustentar filhos etc. Estatísticas nos são mostradas dando conta de como os acidentes nesta Indústria que é a terceira pauta de exportação do Brasil, são bem maiores do que a de outras atividades. Estamos num universo ainda mais crítico do que o que nos mostra Charles Chaplin em seu clássico “Tempos Modernos”. Na Bélgica, por exemplo, não há este tipo de indústria, mas eles importam carne do Brasil (adianta esta hipocrisia?).

c- Há entrevistas com pessoas ( de modo geral ainda relativamente jovens) que foram aposentadas do trabalho por doenças ocupacionais. Há desde aqueles que não revelam o que têm, mas presume-se que seja por doenças psíquicas, como também aqueles que mostram os problemas de saúde que adquiriram. Uma mulher fica com um braço atrofiado, outra sente tantas dores no braço que o gira à noite até obter uma posição que lhe cause menos dor, amarrando-o então para poder dormir. Uma senhora demitida depois de anos de casa, não tem coragem de processar a indústria porque têm três filhos que ainda trabalham lá e tem medo de retaliações.

Algumas informações expostas não estão no filme, mas foram obtidas no debate que se seguiu com os diretores e uma plateia bastante atenta numa noite de sábado lá pelas 23:00 horas. Sinal de que o filme se comunica bem com o público e pode ser um sucesso.

O filme com uma montagem admirável e dinâmica, sem incorporar tempos mortos que já se transformaram num clichê, alterna estas três vertentes e nos mostra ao seu modo, o lado B sinistro da euforia econômica com a Era Lula. Claro que no frigorífico vemos péssimas condições de trabalho mais radicais, mas se pesquisarmos outros setores da economia vamos encontrar outros motivos para sentirmos horror de como os trabalhadores são tratados.

“Carne,Osso” é um filme denúncia exuberante ainda que doloroso. Mas isto (ao contrário de certas correntes pensantes) não representa nenhum demérito. Aqui temos em exercício a arte do filme denúncia, sem panfletarismo fácil, gerando uma obra que merece urgentemente ganhar os grandes circuitos de arte para ser mais disseminada e discutida.Trata-se de “Alguma coisa urgentemente”.

Richard Linklater nos mostra em “Fast Food Nation” as condições e penúrias em que trabalham imigrandes mexicanos do passo inicial até a fabricação de hambúrgueres. O filme assusta, mas perto de “Carne, Osso” é um conto de fadas.

As vozes patronais não foram entrevistadas por opção. Isto aumenta a angústia diante do que nos é mostrado, bem com seu kafkianismo.

5- Curtas Br2-

a- Coutinho Repórter (Brasil/25 min./ 2010) de Rená Tardim

Quem já conhece Eduardo Coutinho de debates já sabe que além de extrair ótimas histórias de seus “personagens”, ele mesmo é um ótimo contador de histórias, com uma memória surpreendente ao relatar detalhes de seus trabalhos. Rená se concentra aqui no período em que Coutinho, dentre outros cineastas importantes como João Batista de Andrade, Walter Lima Júnior etc. trabalhou, para sobreviver à Censura e dar sustento à família, quando teve seu primeiro filho, no “Globo Repórter”.

Assim temos vários comentários realizados sobre obras feitas, onde se destaca “Teodorico, Imperador do Sertão”. Aqui Coutinho se depara com “um personagem” que nos lembra o Lampião de “Baile Perfumado” de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, que diante de uma câmera se envaidece todo e se mostra como um pavão disposto a narrar alguns fatos de sua vida. Teodorico pergunta a uma mulher, que trabalha para ele em regime de escravidão, se ela gostaria de um trabalho em outro lugar. Ela diz que morrerá ali, jamais irá embora e Teodorico fica todo embevecido.

Nos estertores da ditadura militar, Coutinho tira uma licença de dois meses (mais tarde uma não remunerada de seis), retoma seu “Cabra Marcado para Morrer”, antes uma ficção, mas agora um documentário. Por melhor que tenham sido seus trabalhos na televisão sua vocação e desejo era trabalhar para o cinema. Mas pelos caminhos tortuosos da vida, a Vênus Platinada que foi um dos sustentáculos da ditadura militar abrigou Coutinho que subverteu regras vigentes, criou obras notáveis, sobreviveu e voltou ao Cinema, sendo hoje uma dos cineastas brasileiros vivos mais importantes e com, no mínimo, um clássico do cinema mundial que é “Cabra Marcado pra Morrer”.

b- “Palavra Plástica” (Brasil/19 min./2010) de Leo Falcão

Numa homenagem ao poeta pernambucano Carlos Penna Filho (1929/1960) temos várias vozes declamando belos poemas seus, em diferentes ambiências plásticas que dialogam de um forma transversal (nada de literalidade) com o clima lírico instalado. Vozes e efeitos plásticos se combinam para formar um terceiro universo que pode ser tido como “palavra plástica”. Onde alguns podem ver gratuidade, eu vejo muita beleza. Quem esperar que as imagens “ilustrem” os poemas vai se decepcionar. Ao fim o impacto de “palavras plásticas” chega ao seu auge.

c- “Entre Vãos”( Brasil/ 20 min./2010) de Luiza Caetano

Num lugar de Goiás, perto de Cavalcanti se instala remanescentes de um quilombola chamado Kalunga.“Entre Vãos” procura dar um panorama do modus-vivendi desta gente, extraindo sonhos e perspectivas de crianças, adolescentes e adultos.

O filme se compraz um tanto em estar filmando uma comunidade antropologicamente tão significativa e não levanta maiores voos, se concentrando em pequenas revelações que sugerem que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”. Um ponto de destaque é a produção de farinha e o depoimento da menina que não queria ter o cabelo que tem.

d- “São Silvestre” ( Brasil/ 18 min./2011) de Lina Chamie

Um panorama de emoções variadas de pessoas das mais variadas localidades que vêm disputar a corrida anual de São Silvestre em São Paulo. Para algumas só o fato de ver uma avenida com trânsito interrompido para ela passar já é motivo de grande emoção. Com planos bastante expressivos em vários ângulos e música clássica na trilha sonora temos um bom filme, mas que não atinge o patamar artístico que Lina logrou em “A Via Láctea” e “Tônica Dominante”. Estes são filmes de maior fôlego. “São Silvestre”, ainda que termine com um corredor resfolegando em off, é um filme que carece de maior vigor.

e- O Filme que Fiz Para Não te Equecer ( Brasil/4:30 min/2010) de Renato C. Gaiarsa

Uma obra que não diz ao que veio com imagens desfocadas, num ritmo idiossincrático em que 4:30 min. já é demais para nossa paciência.

6-“ Homem Erótico” ( Dinamarca/90 min./2010) de Jorgen Leth

Temos aqui um filme assumidamente bastante pessoal que não consegue transcender os interesses mais íntimos do realizador e se tornar realmente significativo para quem o assiste.

Jorgen viaja pelo mundo (Haiti, Brasil,Tailândia etc.) e procura mulheres para um ensaio cinematográfico erótico em que se diz textos poéticos que ele mesmo escreve para evocar lembranças de sua vida erótica mundo afora. Tudo o que se mostra é de muito bom gosto, mas idiossincrático demais. “Homem Erótico” uma vez realizado se justifica como uma forma de autoconhecimento e exorcismo de repressões particulares antigas, mas há uma barreira entre o que mostra o autor e o que pode ser significativo para o público. Na sessão que assisti houve uma boa debandada da plateia. Eu resisti bravamente até o fim. Não sem certo tédio. Ainda mais pelo fato de me agradar mais mesmo os corpos masculinos, não significando que não admire a beleza de mulheres.

O título “Homem Erótico” é estranho. Existe algum homem que não seja erótico? Podem escamotear, reprimir, mas todo homem é erótico. Uns mais (como o fauno em questão), outros menos. Mas todos são eróticos. Até mesmo o Papa, mas esta é outra história. Uma das sequências significativas da Literatura é a orgia dos eunucos narrada em “Juliano” de Gore Vidal, um livro para o qual sonho ver uma adaptação cinematográfica de peso.

7- Tancredo-A Travessia (Brasil/90 min./2010) de Sílvio Tendler

A trajetória política de Tancredo Neves (1910-1985) é narrada a várias vozes e imagens de arquivo, de uma forma emocionada e emocionante, nos dando a visão de um raro político brasileiro com P maiúsculo que poderia ter sido o verdadeiro presidente estadista que o Brasil não teve desde a abertura política. Assim como Moisés conduziu o povo judeu do jugo egípcio pelo Mar Vermelho, Tancredo foi enxergando as brechas por onde poderíamos caminhar para sair de um período de tantas trevas. O filme não se omite em ressaltar o papel de outros políticos importantes como Ulisses Guimarães, Teotônio Vilela etc., mas é em Tancredo que encontramos a maior força como político que deseja o poder mas deseja mais o poder de mudar as coisas, conhecendo e farejando as frestas possíveis. Seu lado raposa não é escamoteado. Mas vem temperado por uma sabedoria política rara que poucos têm ou não encontramos hoje.

Tancredo foi ministro do segundo governo Getúlio Vargas. Quando este é acuado pelas mesmas forças que provocaram o golpe de 64, Tancredo era a favor de que Getúlio resistisse. Getúlio escreve a carta testamento e dá a caneta a Tancredo num ato pleno de simbolismos que só agora entendemos melhor. Uma reencenação de trecho da peça “O Tiro que Mudou a História” de Aderbal Freire Filho/Carlos Eduardo Novais é feita e na mesa do Palácio do Catete nos mostra as forças em jogo e a atitude de Tancredo em meio àquele caos político de uma terra permanentemente em transe.

Sílvio Tendler se vale de algumas ótimas entrevistas feitas por Roberto D’Ávila, bem como de imagens de seus clássicos “Jango” e “Os Anos JK” e ainda imagens clássicas de comícios feitos na Candelária e Praça da Sé. O ideal seria que a emenda Dante de Oliveira tivesse sido aprovada e tivesse havido eleições diretas para presidente, mas quando os caminhos se fecharam novamente para o país, só havia uma saída que era ir ao colégio eleitoral para eleições indiretas. Mesmo assim houve um trabalho árduo de composição de forças, havendo a dissidência de Aureliano Chaves e José Sarney dentro do PDS que indicava Paulo Maluf para a presidência, gerando então a dobradinha: Tancredo para presidente com Sarney para vice.

Quando se trata de narrar fatos políticos e pessoais sobre a vida de Tancredo, a emoção perpassa vários depoimentos como os de Fernando Henrique Cardoso, Almino Afonso, Fernando Lira, Aécio Neves, Francisco Dornelles etc. Ainda que hoje não simpatizemos mais com estes políticos é tocante a emoção com que eles se referem a episódios da vida de Tancredo que permitem que entendamos mais a personalidade deste político mineiro, nascido em São João Del Rei.

Dornelles nos narra que quando Tancredo estava passando muito mal pensou em trazer o tio para o Rio de Janeiro, mas havia cinco médicos lhe dizendo que o presidente que ainda não tinha tomado posse morreria se não fosse operado em 1 hora. A operação foi feita e Tancredo não mais se recuperou mesmo transportado para São Paulo e tratado pelos melhores médicos. Algo natural? Barbeiragem dos médicos? Barbeiragem intencional destes? The answer, my friend, is blowin' in the wind…O filme não aprofunda nem polemiza com esta questão. Sente-se o mal estar de Dornelles e Aécio ao narrar este decisivo episódio que mudou a História do país.

Com Tancredo doente, o general do exército Leônidas mostra a constituição e dá posse ao vice José Sarney. Mas como Tancredo não havia assumido ainda, o correto seria o presidente da câmara Ulisses Guimarães ter assumido para depois saber-se o que fazer. O que se narra no filme é que anunciado o nome de Sarney não quiseram contestar essa nomeação com contundência pelo medo de um retrocesso político. O Brasil caiu mais uma vez na armadilha (?) de “vão-se os anéis, ficam os dedos”.

O que foi narrado aqui é apenas uma parte do que o turbilhão de emoções “Tancredo- A Travessia” nos provoca. Um filme incontornável do cinema brasileiro recente que pelo prestígio de Tendler, ao contrário de outros do “ É Tudo Verdade”, deve atingir o circuito de arte, como seus filmes anteriores. Imperdível, elucidativo e necessário. A arte de provocar emoções nobres em estado puro.

8- “Aterro do Flamengo” (Brasil/46 min.) de Alessandra Bergamaschi

De uma câmera fixa num apartamento no Flamengo tem-se uma paisagem aterradora de uma pessoa morta, caída para trás do que pode ser um equipamento de ginástica. Pessoas se aproximam, outras se afastam, umas passam alheias, corredores se movem etc.

Este filme conceitual tem um “objetivo” claro, louvável e necessário: escancarar a indiferença que a vida/morte alheia provoca numa era de exacerbado individualismo. Mas resisti apenas a uns 10 minutos de visão deste inferno branco. Logo já imaginamos o que iremos ver em 46 minutos e depois de três sessões no dia do Festival, a proposta de “Aterro do Flamengo” já não me atrai. Ainda mais que se vale de um grande clichê do cinema dito de arte: a fixação por planos fixos. Já não há por que considerar essa postura estética como uma grande ousadia.Já está mais do que batida.

9- “Uma Odisséia Iraniana” (Reino Unido/Irã/ 52 min./2010) de Maziar Bahari

Por quatro décadas os ingleses deitaram e rolaram em relação ao petróleo iraniano. O primeiro ministro iraniano Mossadegh em 1951 nacionalizou a produção e venda de petróleo tendo boicote de compra de vários países e uma reação nervosa do antigo “dono”. Em agosto de 1953, Mossadegh, enfrentando fortes oposições internas (em que se misturam o poder dos aiatolás e o Islã, com intolerâncias de membros do partido comunista), com a cumplicidade da CIA, sofre um golpe que não só o tira do poder como o julga (num tribunal que ele não reconhece), sendo condenado à prisão, mesmo estando numa idade já avançada, de onde sai para logo depois morrer. E ser então considerado uma das grandes figuras de políticos da História do Irã.

Mossadegh tinha suas idiossincrasias como, por exemplo, receber pessoas em sua cama. Mas até mesmo seus inimigos cordiais ou não reconheciam que era um grande estadista. Com sua queda, o xá Reza Pahlevi volta do exílio e passa a ser um testa de ferro dos americanos e ingleses até que chegue a revolução iraniana com os efeitos que sentimos até hoje.

“Uma Odisséia Iraniana” se ressente de um material de arquivo mais farto. O que se vê são muitos planos fixos e uma feroz narrativa para suprir a falta de mais imagens em movimento. O filme atinge apenas 52 min. de duração, sendo que uma personalidade como Mossadegh e os conflitos que viveu é um tema para uma exploração cinematográfica muito mais alentada.

10- “Os Cavalos de Goethe” (Brasil/70 min./2011) de Arthur Omar

Antes de qualquer outro comentário: “Os Cavalos de Goethe” é um filme belíssimo que merece várias visões. Arthur Omar é um grande fotógrafo e consegue dar potência cinética ao que fotografa/filma. Esta sua última obra, produto de uma viagem ao Afeganistão em 2002, tem momentos em que a câmera ralenta, outras que acelera para nova e principalmente ralentar as imagens.

“Os Cavalos de Goethe” é um filme para ser apreciado sensorialmente sem maiores tentativas de compreensão, além do fato de que se trata de uma meditação sobre o tempo. Temos uma disputa de homens montados em cavalos, vistos por uma plateia bastante popular, onde rostos expressivos de todos são bastante ressaltados, incluindo-se até colorações inusitadas em meio à belíssima fotografia.

Mas as intertextualidades do filme se apresentam como um problema: é algo que está na mente de Arthur Omar e só são apreendidas, mesmo assim em parte, por quem receber sua bula. Sem informações prévias não há como perceber referências ao estudo das cores por Goethe, a poemas de T.S. Elliot lidos em inglês em meio às imagens arrebatadoras e nem reconhecer o músico que compôs um peça de 4 horas, que tem trechos utilizados aqui ( a não ser que se seja um melômano). De qualquer forma o trabalho sonoro é esplêndido.

Como “Homem Erótico” de Leth, “Os Cavalos de Goethe” padece de certo solipsismo. Não é à toa que antes da exibição do filme, Arthur Omar esmerou-se em explicações excessivas sobre sua obra, o que provocou uma reação de Jards Macalé: “Não conte seu filme”.

11- “Dois Tempos” (Brasil/ 82 min./2010) de Arthur Fontes e Dorrit Harazim

Em “A Família Braz” (2000) os diretores acompanharam o dia a dia de membros da família, que mora em Nova Brasilândia, zona leste de São Paulo: seu Toninho, dona Maria e os filhos Denise, Gisele, Éder e Anderson. Dez anos depois, volta-se a esta família e com exceção de Anderson que se casou e foi embora, os demais continuam morando na mesma casa.

A família é tomada como protótipo do que se convencionou chamar a nova classe média brasileira. Nada mais falacioso. É inegável que membros dela tiveram melhora de qualidade de vida. O que era motoboy hoje é operador de raios X, uma é vendedora, outra estuda pedagogia. Mas os sonhos são de um eu-mínimo: trocar de carro, a posse de um notebook, fazer uma viagem de cruzeiro e outras ninharias.

Há bastante espontaneidade no filme que cativa e o justifica. O que não dá pra aceitar é que quem continua morando num lugar tão asfixiante e de certo modo aterrador pela imensidão da pobreza do entorno, possa fazer parte da classe média. Como está a qualidade da educação, da saúde, da segurança, da vida sexual e amorosa etc.?

O filme escamoteia um tanto os problemas mais críticos que a família pode ter, revelando-se um tanto chapa-branca. Só letreiros finais apontam para a morte de seu Toninho e para a separação de um dos casais. Um filme para ser visto, mas com certa desconfiança: será tudo verdade mesmo?

12- “Santos Dumont: Pré Cineasta?” (Brasil/63 min./2010) de Carlos Adriano

Através de um carretel de fotografias reproduzidas de um aparelho tido como mutoscópio tem-se imagens de Santos Dumont que são montadas com outras da Torre Eiffel em Paris, a pequena casa de Dumont em Petrópolis etc. em ângulos inusitados, mesclando-se tudo com entrevistas com uma biógrafa de Dumont, o ensaísta Ismail Xavier etc. Teria sido Dumont um precursor do cinema? O filme levanta esta questão sem respondê-la. O que sobressai mesmo é um ensaio de força poética atraente e inusitado que como todo poema visual pede novas visitas para ser melhor apreendido.

Se a não linearidade contribui para a força poética, conspira um tanto para entendermos realmente o que aconteceu em termos de pioneirismos. O Cinema Brasileiro ainda nos deve um grande filme sobre vida/obra de Santos Dumont, de preferência de ficção, num formato classicista. Quem se habilita?

13- “Santoscópio = Dumontagem” (Brasil/15 min./2010) de Carlos Adriano

O encontro entre Charles Rolls (futuro co-fundador dos automóveis Rolls-Royce) e Santos Dumont flagrado por um filme-mutoscópio, onde Dumont encena um vôo para Rolls, é mostrado em diferentes texturas, muitas vezes em imagens aceleradas e repetitivas que depois de uns cinco minutos já perdem seu encanto e começam a chatear até seus longos 15 minutos. Temos aqui mais um filme em que o conceito na cabeça do cineasta não encontra resposta no (des) prazer do público que o vê.

14- “Reagan” (EUA/ Reino Unido/102 min./ 2011) de Eugene Jarecki

Ronald Reagan (1911/2004) tem sua trajetória esmiuçada neste doc muito bom da HBO. Sua família foi salva pelo New Deal de Roosevelt na época da depressão econômica de 22. Foi um ator mediano que ficando sem papéis no cinema, usou sua bela estampa para vender produtos em propagandas. De início simpatizante do partido Democrata foi aos poucos se metamorfoseando num Republicano feroz. Eleito presidente, compõe com Margareth Thatcher uma visão neo-liberal radical onde se vive a ilusão da desregulamentação desenfreada, o corte de impostos para os ricos na vã ilusão de que estes ganhado muito mais, passariam parte deste ganho para os pobres etc. O resultado é que no governo Reagan os muito pobres aumentaram em torno de três milhões. Sua decadência começa com o escândalo do financiamento dos que eram contra o movimento sandinista na Nicarágua e principalmente na questão do Irã, onde à revelia da lei, troca armas por reféns americanos, o que nega, mas outros membros do governo confirmam.

“Reagan” é estruturado de forma simples, mas contundente, sem maiores invenções formais e com certo excesso de texto que acaba cansando um pouco. Um dos entrevistados é um dos filhos de Reagan que surpreendentemente tem uma visão carinhosa e sentimental do pai, mas não se furta em mostrar suas perplexidades quando são apontados grandes equívocos e até mau-caratismo do presidente.

Reagan num delírio hollywodiano sonhava com o projeto Guerra nas Estrelas onde destruiria mísseis nucleares russos nos céus antes de atingirem os EUA. Só esqueceu-se de um detalhe: como a Rússia tinha também a possibilidade de destruir a Terra incontáveis vezes, numa guerra fria que se tornasse quente, o planeta não teria salvação. Esta história me lembra o segundo filme da série “O Planeta dos Macacos”, onde Charlton Heston encurralado, resolve apertar um botão e destruir a Terra toda no final. A série continuou (cada vez mais distante da obra-prima que é o primeiro filme) porque numa jogada forte de roteiro a Dra. Zira e outro macaco haviam escapado por uma viagem espacial.

Reagan delatou “em off” colegas ao Comitê de Atividades Anti-Americanas. Criou o reaganomics cujos efeitos negativos/perversos sentimos até hoje. Seus sorrisos e simpatia escondem uma das pessoas que mudaram a face da História. Muito infelizmente para pior. O filme não se furta a mostrar isto com competência narrativa.

16- “Assim É, Se lhe Parece” (Brasil/74 min./ 2010) de Carla Gallo

Uma grata surpresa. Depois de um começo em que acreditamos que o filme não terá fôlego, vislumbra-se um doc bastante criativo que sintoniza com a vida bastante criativa do artista plástico Nelson Leirner, com 54 anos de atividade. Nelson postula uma liberdade criativa para o artista que fuja dos compêndios históricos. Apresenta um livro de Paul Klee já surrado que foi fundamental para ele entender que a arte tem que ter liberdade e não amarras diante do passado. Participou do grupo Rex, junto com Wesley Duke Lee e Geraldo de Barros, numa cruzada iconoclasta contra a arte que consideravam oficial. Confessa com seu jeito cativante que Wesley só fez o trabalho que quis no início da carreira, porque tinha uma bolsa da própria família, sugerindo que ele também teve esta regalia.

Nelson é visto acarinhando seu cachorro, comprando santinhos católicos e miniaturas de entidades afros para uma obra, comentando seus inúmeros pequenos adornos que traz em uma corrente no pescoço (a rigor não teria uma religião pois aposta em todas, mas se sente inseguro quando não está com este “patuá” ecumênico). Numa exposição sua lamenta ter de estar ali e não poder ver jogo do Corinthians.

Aproximando o espectador da espontaneidade/humanidade de um artista consagrado, o filme traz o espectador para as plásticas mostrando que ele é tão humano quanto nós, mas a visão de arte apresentada pode ser contestada por muitos outros artistas. O que se tem mesmo é uma visão que assim é, porque assim parece ao artista. Para outros, assim não é. Principalmente para uma artista amiga do Rio que fixou em doze obras por ano o que faz (mesmo que tenha tempo sobrando), para que seus quadros valorizem.

Ps1. O Festival “É Tudo Verdade” continua no Rio de Janeiro de sexta a domingo 10/04 no CCBB-RJ, Instituto Moreira Salles, Espaço Museu da República, Ponto Cine Guadalupe, Auditório do BNDES. Ingressos gratuitos.

Ps2 O título do Post vem de um verso de Fernando Pessoa com um acréscimo.

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Nelson Rodrigues de Souza

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