quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A Música Ruidosa do Medo- Um Conto Inédito


Ficar em casa sábado à noite, ouvindo música ao sabor das afinidades eletivas, é o paraíso e, no entanto, Marcelo Camargo não resistiu à idéia de sair, em busca de acasos felizes. A boate em Copacabana que freqüentava certamente o aturdia com o bate-estaca incessante de impiedosos DJs. A fantasia renovada de um imperdível grande encontro o movia, apesar de a memória reter várias noites perdidas, em que nem havia sido contagiado pelo som pop e caído na dança sob os estroboscópicos refletores, nem vencera o jogo eterno reinante de caras e bocas, em busca de um obscuro objeto do desejo, vislumbrado, a rigor, apenas nos filmes apoiados no glamour de astros e estrelas. Um desafio adicional se impunha: resistir ao canto de sereias fáceis capazes de colocar soníferos em sua bebida, o que otimizaria possíveis pilhagens a domicilio, dentre outras perversidades.

Marcelo entrou no 212 na Praia do Flamengo com destino ao ponto final em Copacabana, escolheu um lugar mais asseado que não lhe prejudicasse os cuidados que tivera ao vestir-se e evitou lamentar a falta que o carro roubado lhe fazia. Era 23:30 e a condução não estava cheia. A expectativa de uma longa noite de aventuras o animava a vencer o desconforto. Quando dois policiais entraram no ônibus, vencido o Túnel Novo, Marcelo quase se arrependeu de ter sido pão-duro e não ter pegado um táxi. Lembrou-se das economias que fazia para completar o que o seguro lhe pagou, imaginou-se dentro de um carro zerinho e acalmou-se.

Quando o 212 chegou à Rua Raul Pompéia, próxima ao ponto final e da boate, os guardas perceberam um assalto no ônibus em frente. “Motorista, segue este ônibus!” – ordenou um deles. Os oito passageiros deitaram no chão, atrás dos bancos. A rádio-patrulha improvisada passou a perseguir o veículo; o motorista dividiu-se entre o terror e o orgulho pela missão; os guardas, de armas em punho, ajoelhados na frente do ônibus, miraram assaltantes que se confundiam com usuários. Na cabeça dos afoitos patrulheiros assomaram imagens de Velocidade Máxima 1, Máquina Mortífera, Robocop e O Exterminador do Futuro 1 e 2, Duro de Matar 1, 2 , 3 , Rambo 1, 2, 3 e 4, Desejo de Matar 1, 2, 3, 4 e 5... Mas as emoções da vida real os faziam confundir as façanhas de Keanu Reaves, Mel Gibson, Bruce Willis, Stallone, Schwarzeneggger e Charles Bronson. Agora não importava os mestres, importava saber aplicar as lições aprendidas através de histórias contadas num ritmo eficiente e vertiginoso. Os passageiros, figurantes involuntários, conformados com o risco e a fragilidade das divisórias-anteparo, rezaram com angustiada devoção o que suas igrejas lhes ensinaram e fizeram uma rápida e urgente contabilidade para saberem se haviam pagado todas as prestações para um cantinho junto a Deus.

Marcelo Camargo, sentindo nojo da roupa amassada e suja, descobrindo-se sem certeza de ser aceito do lado de lá (Dante reservou-lhe um dos círculos mais profundos do Inferno), preferindo morrer, se for o caso, nos braços de um anjo exterminador com seus ardis do que num vulgar chão imundo de um sórdido veículo, levantou-se e resolveu agir com o poder das palavras, sua única e última arma, gritando, encarando os guardas:

- Seus filhos da puta! Os senhores não têm o direito de arriscar as nossas vidas, são uns irresponsáveis! Eu quero descer! Eu quero descer! Eu quero descer!

Um dos guardas olhou Marcelo de cima até embaixo, apontou-lhe a arma, mandou calar-se. Marcelo e o guarda se encararam com ódio mútuo e infinito. O passaporte para o outro lado não seria dado nem pelo anjo, nem por assaltantes armados, mas por um clone gestado pelo choque cultural entre uma suposta vida das telas e o brasilian-way-of-death. Marcelo enquanto recebia os raios raivosos que cintilavam dos olhos do policial, não sabia se esperava a morte gritando ou em um respeitoso silêncio. O outro guarda o salvou do impasse. Sentindo uma acutilante solidão, vendo o companheiro distraído com um inimigo menor, gritou-lhe para que olhasse para frente e ordenou ao motorista que parasse. Os figurantes desceram na Praça General Osório em Ipanema, transcorridos quatro intermináveis minutos de filme desde a seqüência do vislumbre do assalto. A viatura seguiu em frente na sua missão e ficou no ar, entre passageiros aturdidos, limpando as roupas como era possível, examinando Marcelo com olhares gratos e desconfiados, a idéia de que sempre pode surgir um chato para lembrar que a vida é um pouquinho diferente do que se vê com freqüência nas telas.

Marcelo tomou um táxi direto para casa e menos um astro brilhou na dança da solidão, naquela boate, na madrugada de domingo. Ao chegar teve o impulso de fazer uma ligação erótica, ouviu um desconhecido repetir algumas vezes “vem cá meu putinho” e foi dormir, experimentando um gosto estranho de herói anônimo, sentindo-se um sobrevivente resgatado de um mar de fantasias precárias.

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelson,
    Eu não conhecia ainda a sua verve literária. Gostei muito.
    Abraços.
    Gina

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  2. uma viagem sempre muito interessante.
    David

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