sábado, 23 de maio de 2009

Sob as Tortuosas Leis do Desejo



De uma forma sem alardes Ang Lee vai construindo uma das obras mais consistentes e instigantes do Cinema Contemporâneo, abraçando os mais diversos gêneros, seja o filme de época bastante elaborado “Razão e Sensibilidade”; o drama dos anos 70, com a rebordosa dos resquícios de sonhos de amor livre, “Tempestade de Gelo”; a adaptação de quadrinhos “Hulk” fora do esquadro do previsível para este gênero de filme; o drama de artes marciais com refinadas considerações filosóficas, “O Tigre e o Dragão”; o drama de teor homoerótico que contrapõe posturas a princípio antagônicas do Ocidente e Oriente, “O Banquete de Casamento”; o western incomum com a paixão avassaladora entre dois caubóis tardios em “O Segredo de Brokeback Mountain, dentre outros. 

Em comum o que estes filmes tem além do sempre competentíssimo acabamento cinematográfico, ainda que não haja grandes inovações formais (Ang Lee é adepto do cinema em sua acepção mais clássica, o que não pode se confundir com academicismo do qual ele passa longe) são personagens em sérios conflitos com desejos que os movem para caminhos incontroláveis. São seres movidos muitas vezes por pulsões, por movimentos da alma para os quais têm limitados poderes. 

Com “Desejo e Perigo” (China / Taiwan / EUA: 2007), Leão de Ouro no Festival de Veneza, banalizado título brasileiro para o bastante instigante “Lust, Caution”, baseado em história de Eileen Chang, em essência (de certo modo um film noir), por mais que tenha uma roupagem completamente nova na obra de Ang Lee ao se situar no período de 1937 e 1942 , quando o Japão dominou a China militarmente, trata dos imperativos das leis do desejo que são capazes de perturbar até mesmo convicções ideológicas, *o que acabou provocando protestos vetustos de estudantes na China, taxando a protagonista de prostituta. 

Wong Chia Chi (Wei Tang, sensacional descoberta de Ang Lee) é uma estudante que participa de um grupo de teatro que se pretende revolucionário e convidada, aceita formar com seus colegas uma célula política clandestina cujo objetivo é atrair para longe dos seus seguranças o chinês colaboracionista Yee ( Tony Leung, ator fetiche de Wong Kar-Wai , numa elegante e diabólica interpretação) para uma emboscada de justiçamento. Depois de uma tentativa mal sucedida em Hong-Kong, Wong com novos álibis falsos se infiltra na casa de Yee em Xangai, como amiga da Sra. Yee (Joan Chen), como sendo Tai Tai, uma senhora supostamente casada com um homem em crise que agora sobrevive de contrabando. 

Wong/Tai passa a ter relações amorosas tensas, fortes, com doses de sadomasoquismo com Yee, apresentadas à platéia com o máximo de realismo e elegância em angulações ousadas, às claras, de uma forma que não é nada gratuita. Para o desenvolvimento da história é importantíssimo que a relação amorosa/sexual dos dois nos seja mostrada com o máximo de realismo e beleza. *Estas seqüências foram cortadas na exibição do filme na China. Criou-se um turismo cultural para chineses irem a Hong Kong ver o filme sem cortes. A atriz Wong Chia Chi sofreu represálias, sendo proibida de trabalhar por um ano. 

Chega a ser espantoso como um país que aspira a ser uma grande potência seja assim em cultura tão atrasado. Direitos humanos são violados sistematicamente e certo país latino americano onde isto também acontece sofre bloqueio econômico há décadas, mas a China de PIB elevadíssimo não, pois o que importa é o volume de negócios feitos e a compra de papéis melindrosos americanos. 

Mas voltemos ao filme que é o que mais nos importa aqui. Com uma reconstituição de época perfeita e troca de olhares bastante significativos, unindo um sentido épico forte com o intimismo mais poético, como nos melhores filmes de David Lean ( “Lawrence da Arábia”, etc), “Desejo e Perigo” é uma obra essencial que levou dois anos para chegar aos circuitos brasileiros, o que é um retrato eloqüente da desorientação que norteia exibidores e distribuidoras atualmente no Brasil. 

A forma potente como entrelaça questões de ordem política (ou de poder) com psicanálise (principalmente no que diz respeito aos poderes do inconsciente que não controlamos) remete a “O Conformista” e “O Último Imperador” e num certo sentido a “O Último Tango em Paris”, obras grandiosas de Bernardo Bertolucci. Claro que remete também a “O Porteiro da Noite”(1974) de Liliana Cavani, mas confesso que em relação a este filme, estou precisando de uma revisão, pois tenho na memória um certo incômodo com a reiteração de situações, algo que deve ser dissipado ou confirmado. 

“Desejo e Perigo” é um jogo de xadrez emocional meticulosamente montado que exige paciência e atenção do espectador em sua longa duração: 157 minutos. Mas o mais fascinante é que tudo que nos é mostrado é necessário para que o filme atinja a densidade maior de suas seqüencias conclusivas inesquecíveis. 

Em “O Segredo de Brokeback Mountain” um pequeno altar montado com uma foto do local de encontro entre os amantes e uma camisa sobre uma jaqueta num cabide dá conta da saudade e tristeza da ausência de um parceiro. Em “Desejo e Perigo” é o vazio em uma cama que cumpre poeticamente esta mesma função. 

Para quem se interessa primordialmente por grandes jogos formais “Desejo e Perigo” pode não exercer maior fascínio. Mas para quem se interessa sobre os meandros mais sutis, imprevisíveis e misteriosos da alma humana, principalmente no que diz respeito às metamorfoses ambíguas que o desejo pode assumir, “Desejo e Perigo”, um dos mais belos filmes eróticos dos últimos anos, é um filme incontornável, cheio de detalhes que podem ser mais bem apreciados em revisões. Já vi duas vezes o filme e tenho vontade de visitar a obra novamente. Pelo seu ar de delicada monumentalidade é um filme que perde muito se visto em vídeo. Uma ida ao cinema para fruir este espetáculo, que está tendo sucesso no Rio de Janeiro, o que mostra o quanto era tola a idéia de não exibí-lo, é um programa imperdível. 

*Informações sobre a exibição na China obtidas através da Folha de São Paulo de 15 de maio de 2009

http://oglobo.globo.com/blogs/arquivos_upload/2008/10/20_2728-blog-lust.JPG 

http://img.blogs.abril.com.br/1/asetimaarte/imagens/desejo-e-perigo-(2007).jpg 

Nelson Rodrigues de Souza


 

 

 

Um comentário:

  1. Também assisti duas vezes e, sempre que penso em conferir uma estréia, fico tentada a deixar de lado e revê-lo novamente. Imperdível! É o filme mais instigante, profundo, triste e ao mesmo tempo belo que assisti nos últimos tempos.
    Beijos.
    Gina

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