domingo, 18 de julho de 2010

Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” de Tim Burton - O Lirismo Que Vem do Atrito Entre a Inocência e a Perversidade*




“Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” de Tim Burton

O lirismo que vem do atrito entre a inocência e a perversidade*

Leiam o email que recebi de um amigo fotógrafo e artista plástico:

“Artista faz ação no Mercado Livre”

“O que se espera encontrar no Mercado Livre, o maior portal de leilões de produtos do mundo, com "bases virtuais" em quase todos os países? Cds, eletrônicos, artigos importados, objetos semi-novos, raridades, etc. Porém, nesta última semana apareceu a oferta de um produto inesperado: sonhos, incertezas e dores, à venda no mercado livre! "Todas as minhas dores", "todas as minhas incertezas" e "todos os meus sonhos" são as mais novas ofertas do portal e é o mais novo trabalho da artista Keyla Sobral “.

Depois que Marcel Duchamp “derrubou o pau da barraca” da arte “mais bem comportada” nos anos 10 do século passado com o seu urinol, a roda de bicicleta sobre um banquinho de cozinha, seus ready-mades e outras manifestações, dentro do contexto de sua época, numa atitude hiper-transgressiva, as artes plásticas e seus derivados, como o universo das performances e instalações nunca mais foram as mesmas, para o bem e para o mal. Assim nos deparamos contemporaneamente com o que foi relatado sobre o Mercado Livre, com instalações em que milhares de maçãs apodrecem sobre placas de Laura Vinci, um cachorro amarrado sem água e comida no fundo de uma galeria ( para dialogar com a insensibilidade e hipocrisia de nosso mundo....), várias melecas expostas numa urna tampada com vidro (“Cubo Transparente de Resíduos das Vias Respiratórias”), quadros de Barnet Newman totalmente monocromáticos com uma linha vertical que o corta de forma assimétrica, etc, etc....

Ficam as questões que não querem se calar? Isto é arte? Isto não é arte? Existe resposta no meio termo? Ela nos emociona? Precisa nos emocionar?

Tim Burton, um dos gênios do cinema contemporâneo, de grande ousadia, transgressão, originalidade, imprime sua marca pessoal tanto em produções encomendadas como o magnífico e subestimado “Planeta dos Macacos” (2001- com seu desfecho tão atordoante e belo quanto o do clássico de 1968, de Franklin Schaffner, que o inspirou), como Batman (1989- com seu paradoxo dialético genial de criador&criatura, onde Jake matou os pais de Bruce Wayne forçando-o a transformar-se em Batman e este joga Jake num enorme recipiente de ácido verde, obrigando-o a transformar-se no terrível e hilário criminoso Coringa, magistralmente composto por Jack Nicholson, que gosta de “dançar ao luar com o diabo”) como nas totalmente autorais tais como as obras-primas “Ed Wood”(1994) e “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”(2003), ainda que este último seja baseado num romance de Daniel Wallace, etc.....

Dentro do “Planeta Burton” não temos dúvida de que se trata de grande arte fruto de um grande artista plástico que dialoga e muito com seus diretores de design, exerce um fantástico trabalho de direção com todos os elementos fílmicos, para imprimir uma aura inconfundível e suis generis no Cinema de hoje. Resumindo: ao contrário dos exemplos citados anteriormente no mundo da arte, diante de um trabalho de Burton, não vacilamos. Estamos diante de um grande artista. E como!

Burton é um artista que cumpre com galhardia (como Hitchcock, Polanski, Kubrick, Spielberg, etc....) a profecia de Oswald de Andrade (que para o grande escritor não se realizou): “Um dia as massas irão comer os biscoitos finos que fabrico”. Enfim, Burton faz parte do seleto grupo de realizadores de biscoitos finíssimos para as massas. Não é à toa que em “A Fantástica Fábrica de Chocolates” (2005) Burton parodia a seqüência com os macacos e o monolito, agora um tablete de chocolate, remetendo a “2001:Uma Odisséia no Espaço” e ainda a seqüência do assassinato no chuveiro de “Psicose”.

Juntemos num caldeirão de bruxa, pitadas da genialidade artística e técnica de Orson Welles e Kubrick, da inocência e pureza de Ed Wood ( “o pior cineasta do mundo”, um artista que tinha obsessivamente arte em sua cabeça e não nos projetos que conseguia realizar na prática, conforme nos mostrou o filme-tributo citado sobre ele), do Menino Maluquinho de Ziraldo ( que sobrevive saudavelmente ainda em nós se o permitirmos, não matando-o), da comunicabilidade de fabulistas como Esopo, Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm, do amor ao sobrenatural e ao “mórbido” de Edgar Allan Poe, dos filmes de terror da Hammer, etc, etc.....Misturemos isto tudo e teremos um tanto da alma de artista de Tim Burton. Mas isto não o torna nunca previsível. Tim sempre nos surpreende como o fez na deliciosa comédia “Marte Ataca!” (1996), inspirada por uma coleção de figurinhas, resultando numa sátira demolidora aonde os marcianos chegam à Terra atacando indiscriminadamente, não poupando nem mesmo o presidente dos EUA e a primeira dama.

Embora já tenha flertado em parte com o musical antes nos estupendos “O Estranho Mundo de Jack” (1993- dirigido por Henry Selick e produzido por Tim) e “A Noiva-Cadáver”( 2005), duas das mais belas animações da História do Cinema, feitas meticulosamente ( predominantemente, em stop-motion ) e em “A Fantástica Fábrica de Chocolates”(2005), em “Sweeney Todd, o Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (EUA/Inglaterra/2007), Tim se embrenha “por mares nunca dantes navegados”, com excepcional resultado: um musical pleno de ponta a ponta, gótico e sanguinolento que pode afastar aqueles que ( para mim um mistério...) não gostam quando ações se interrompem em sua forma “natural” e prosseguem com os personagens cantando. Mas a incontornável fusão de perversidade e inocência ( no melhor sentido desta palavra) que atritadas geram uma comovente poesia, um lirismo encantador, estão aqui presentes mais do que nunca, neste que talvez seja o trabalho de Tim mais rigoroso, bem-acabado tecnicamente e emocionante, superando até mesmo os já citados “Ed Wood” e o grandioso e subestimado “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas”.

Ao se tratar do tema da vingança num filme (“O homem do ressentimento vive em estado larvar”- nos lembra Mircea Eliade, o grande mestre romeno da História das Religiões) sempre se corre o risco de se cair no protofascismo, vala comum onde caíram Neil Jordan no indefensável “Valente” (EUA/2007) e David Slade em “MeninaMá.com” (2005). Já deixando para o espectador tirar suas conclusões, sem adesões automáticas a seus personagens, com a mesma grandeza de “V de Vingança” (2006) de James Macteigue (produção dos Irmãos Wachovski) ou num nível menos elevado, como no caso do premiado com o Urso de Ouro em Berlim 2008, “Tropa de Elite” de José Padilha, em “Sweeney Todd,.....”, somos incitados a compreender as motivações de personagens vingadores, entramos e saímos de dentro de suas peles, com desfechos que estão longe de serem moralistas como também de serem caudatários da filosofia “olho por olho, dente por dente”que já é péssima por si só, ainda mais quando levada a extremos.

Richard Parker (Johnny Depp, irretocável, em sua sexta excepcional colaboração com Tim) vive na era vitoriana inglesa do século XIX com sua bela esposa Lucy (Laura Michelle Kelly) e sua filhinha. O Juiz Turpin (Alan Rickman) “cobiçando a mulher do próximo”, com um pretexto estapafúrdio, manda prender Richard para “roubar” Lucy. Richard fica preso 15 anos, ruminado vingança e volta de navio à sua Londres onde agora só vê podridão, “onde os baixos são escravizados pelos autos”, travando contacto com o jovem marinheiro Campbell Bower (Anthony Hope Jamie) para quem dá o endereço para onde se dirigirá que é onde morou, na Rua Fleet, um local nevrálgico da cidade.

Chegando na casa que foi sua, encontra a Senhora Lovett (Helena Bonham Carter, em mais um fantástico trabalho com o maridão Tim, numa prova de que na arte pode haver o nepotismo do bem...). Esta mal vive da venda de tortas de pouca aceitação popular e guardou todas as navalhas de Parker de quando este era um prestigiado barbeiro. Depois do encontro numa praça (saboroso) com o trapaceiro e barbeiro Signor Adolfo Pirelli (Sacha Baron Cohen, impagável tanto quanto em seu personagem e documentarista em “Borat, o segundo melhor repórter.....” - 2006), que junto a um explorado menino de feições e circunstâncias de um personagem de Charles Dickens, vende falsa loções para cura de calvície, Robert Parker numa disputa com Pirelli, para saberem quem é melhor barbeiro ( com este cantando afogado em sua vaidade), agora sob a identidade de Sweeney Todd se sai vitorioso e cria fama.

Por artimanhas do destino que não convém aqui adiantar, enquanto aguarda a concretização de sua vingança em relação ao Juiz Turpin, agora com a guarda da filha que teve com Lucy, tendo esta se suicidado, conforme relata a Senhora Lovett, Sweeney Todd, com um ódio cego que passa a destilar à humanidade dos que podem ir ao seu salão de barbeiro, mata todos os que pode com suas navalhas bem afiadas, deixa os corpos caírem por um alçapão embaixo de sua cadeira de barbeiro, até o subsolo, onde os corpos são processados para virarem um inusitado ingrediente que Lovett passa a usar em suas tortas, com grande sucesso comercial, saindo do limbo em que se encontrava.

O marinheiro Campbell se apaixona por Johanna Jayne (Jayne Wisener), filha de Sweeney/ Richard, com uma vida doméstica de prisioneira nas garras do Juiz Turpin. Este é também um dos plots que movimentam a história. Sim, há elementos que podemos considerar previsíveis nesta adaptação para o cinema pelo roteirista John Logan (de “O Aviador”), junto com Stephen Sondheim, que condensaram o musical homônimo de três horas estreado na Broadway pela primeira vez em 1979, de autoria do próprio Sondheim (letrista do clássico musical “Amor, Sublime Amor/West Side Story” de 1961 de Robert Wise e Jerome Robbins) e de Hugh Wheeler, com base numa peça de Cristopher Bond de 1973, que aproveitou uma lenda inglesa, que como toda lenda não se sabe o que é realidade histórica ou o que é ficção. Mas alguns aspectos de previsibilidade não tiram em nada o fascínio que é assistir ao filme. Nele forma e conteúdo dão as mãos de forma impecável, com o luxuoso auxílio do design de arte Dante Ferreti (candidato ao Oscar deste ano na categoria), com quem Burton dialoga magnificamente, num entrosamento precioso, de figurinos de grande originalidade em seus efeitos de Colleen Atwood (também concorrente ao Oscar) e de uma fotografia deslumbrante de Dariusz Wolski, onde predominam os tons escuros e sombrios, num clima gótico e a cor só aparece com força nuns devaneios que Lovett tem em sua expectativa de uma vida idílica amorosa com Sweeney Todd ou então no vermelho do sangue que esguicha dos pescoços.

Sweeney Todd pega uma navalha, ergue para o alto e se sente renascido após tanto sofrimento que o acompanhará sempre (saboreia o gosto da vingança, mas é um gosto muito amargo), dizendo em alto e bom som: ”Finalmente meu braço está completo outra vez”. Aqui Tim Burton evoca outra de suas grandes criações que é o maravilhoso personagem título “Edward, Mãos de Tesouras” (1990). Mas enquanto este feria as pessoas involuntariamente, querendo afagá-las, numa metáfora da incomunicabilidade humana digna de Bergman e Antonioni, o perverso Todd, imbuído de suas razões , que compreendemos mas não justificamos, mata pessoas com grande requinte.

Sobre a violência explícita em seu filme e o tom buscado e plenamente atingido é o próprio Tim Burton quem melhor explica, tendo como fonte a revista Pipoca Moderna número 35:

“As raízes de Sweeney Tood estão na tradição do Grand-Guignol, que é melodramática, com exagero de sangue, todo este tipo de coisa. Não é certo ser politicamente correto com algo assim”

“A sensação era que estava fazendo um filme mudo com música. Os atores se moviam de forma diferente”

“Eu cresci assistindo aos filmes de horror da Hammer, que usavam sangue bem vermelho. Eles tinha certa vibração. No meu filme, os personagens, especialmente Sweeney, são rígidos e contidos, mas o sangue, ele significa uma espécie de liberação. É como uma emoção bem vermelha”

Johnny Depp como Sweeney Todd canta bem para os propósitos do filme, como todo elenco e provavelmente está em seu melhor trabalho: ele evoca vários de seus personagens anteriores com ou sem Tim Burton, mas ainda nos traz uma original máscara perturbadora de pureza, perversão, vingança, dor, humor, solidão, crueldade, etc.numa chave contida, com momentos estupendos de explosão.

Consciente de que “quando eu expulso meus demônios meus anjos também vão embora” ou de forma mais simples de que “onde tem fada tem bruxa”, Tim Burton é um artista do cinema, que mesmo entrando em projetos aparentemente tipicamante hollywodianos (como seu magnífico “Batman”), é com sutileza, muito engenho e arte, um grande crítico da sociedade americana em particular e do nosso mundo de uma forma mais geral, pois conforme nos mostrou em outras de suas obras-primas, a animação “A Noiva-Cadáver”, o mundo dos mortos pode ter mais vida, danças e cores do que o gangrenado mundo cinzento dos vivos com suas convenções sociais e políticas que sufocam as pessoas.

Transgredindo alertas de Lupicínio Rodrigues a “estes moços, pobres moços”, podemos dizer que muitos personagens de Burton “deixam o Céu por ser escuro e vão ao Inferno à procura de Luz”. Luz que reluz na tela mágica do cinema grandioso, imprescindível e fundamental de Burton, desde as primorosas aberturas que já dão a senha do prazer com que veremos suas obras. Se Federico Fellini como dizia Glauber era o melhor pintor móvel do século XX, Tim Burton ao lado de Emir Kusturica (do essencial “Underground-Mentiras de Guerra-1994) não deixa morrer a vocação do cinema para as grandes fantasias feéricas, longe de influências neo-realistas (nada contra estas que se espalham hoje com belíssimos resultados em várias cinematografias) e se tornam os dois, os grandes pintores móveis vivos do cinema contemporâneo. A eles então.

Ps Tim Burton ganhou o Leão de Outro do Festival de Veneza de 2007 pelo conjunto de sua obra. Nunca ganhou Oscar de filme ou de direção. Este ano,2008, “Sweeney Todd,....” concorre em três categorias: ator ( Johnny Depp), direção de arte e figurinos. Poderia com toda justiça estar concorrendo também a filme, diretor, atriz, fotografia, montagem e roteiro adaptado. Ganhou o Globo de Ouro 2008 de melhor filme comédia ou musical e melhor ator (Depp) para este mesmo quesito.

*Texto publicado originalmente para o Jornal Montblãat em 2008, com pequenas modificações.


http://www.miscampinas.com.br/console/Eventos/Exibicao_do_filme_Sweeney_Todd_O_Barbeiro_demoniaco_da_Rua_Fleet681.jpg

http://blig.ig.com.br/lucasfilmes/files/2008/02/01.jpg

http://nycsunflower.files.wordpress.com/2009/11/tim-burton-by-hoffman.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

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