Sodoma e Gomorra
E aqueles olhares tão furtivos a se procurarem no escuro
E aquelas almas tão ingênuas procurando suas gêmeas
E aqueles corpos tão molhados, extenuados, exalando seus perfumes
E aquelas sombras tão anômalas requerendo suas fatias
E aquelas vidas loucas pulsando fortes como-vidas...
Lola
Lola contando histórias
Lola alucinando a memória
Relata seus doze anos de glória
Na fábrica de tecidos inglória
E a vida tecida de fios tão tênues
Tece novas vidas indecifráveis
E a esfinge-mãe se apavora
Ante os enigmas gerados
E o amor pleno de nove-horas
Escapa pelos ladrões
Não sabe pra onde vai
Se sente acuado
Queima
Meu coração descansa
Sem saber o que aconteceu
Minha mente avança
Maltratando o próprio eu
Ele agora questiona
Se ganhou ou se perdeu
Sim, com certeza
Ele se perdeu
Quem ocupará
O vazio que o devora?
Quem se aventurará
A querê-lo agora?
Quem o acompanhará
Pela vida afora?
Quem o ajudará
Nesta louca hora?
E o horizonte que o paralisa
O faz sempre sobressaltar
Do tormento que o destino avisa
É preciso não descuidar
E o coração na mão
Sofre tanto desencanto
Ansiando por razão
Bicho-Pega ou Bicho-Mata
Essa trilha que eu abro
Eu não sei onde vai dar
Será que na ponta está o mar?
Ou será que o destino é mesmo o abismo?
Eu só sei que aqui é demais o descalabro
Já é mais que tempo de acabar com este cinismo
É a hora em que a onça quer sua água
E nesta clareira onde estou
Não há fogueira que dê jeito nesta mágoa
Mais do que depressa eu me vou
E como um rei
Indo em busca de seu trono perdido
Eu só sei que vi-verei
Atrás do meu eu desaparecido
Moviver
Do motor tão recôndito que me move
Eu não sei direito que líquido sacia sua sede
Eu não sei se é o amor ou mais o medo
Eu só sei que parto louco
Em busca de algo nem que seja um arremedo
Voragem
E aquele marinheiro
De primeira viagem
Criou coragem
E embarcou
Na voragem da paixão
Alpinismo
O eu adormecido
Nos labirintos da alma
Não sabe o que quer
Simplesmente pergunta
Se ainda há tempo
De galgar as paredes
E respirar ar puro
E sentir o perfume das flores
E adquirir mais calma
E matar sua sede
E sentir um alento
Indo em busca de amores
Água-Viva
E ele atravessou os meses
Como quem dá braçadas num oceano
A procura de um cais
Engoliu muita água às vezes
Quase se afogou num ledo engano
Tentando dizimar seus ais
E agora surgiu como peixe fora d’água
Respirando num mormaço
Naufragando por cansaço
Se contendo pra não transbordar de mágoa
Neste caminho assolado por uma enchente impiedosa
Muitos sonhos se perderam na enxurrada
Mas o que era mais vital sedimentou-se na largada
E sem espinhos, do lodo profundo nasce a rosa encantada
Espírito
Esse espírito
Eternamente vagando a procura de paz
Eternamente clamando por um algo mais
Eternamente gritando que já é demais
Eternamente tentando ser mais capaz
Eternamente empurrando a dor para trás
Eternamente desconfiando daquilo que faz
Esse espírito
Eternamente explodindo, implodindo
Eternamente espírito.
Consciência
Ah! Consciência
Com que freqüência
Você me pede clemência
E me diz que é sua última demência
E pensa
Que ninguém notará sua ausência.
Feira
Cinelândia, esse templo
Em que passeio e contemplo
Os livros e os homens
Os homens e os livros
Dos livros vejo as capas, leio as orelhas
Dos homens vejo os olhos, as sobrancelhas
Dos livros sinto a cor, a textura
Dos homens o odor, a formosura
Que viagem me será mais grata?
A com seres imaginários
Ou com estes outros, temerários
Solidão, paletó e gravata?
O que importa é que estes momentos
Essa trilha, este percurso
Transformam-se em fragmentos
De um grande e amoroso discurso
Sonho
Esse sonho que nunca se acaba
E faz o coração pulsar sempre, sempre
Mesmo quando a casa faz que desaba
O amor cresce que cresce dentro da gente
Acordar
Eu quero o rumor dos ventos açoitando palmeiras
Eu quero os murmúrios de prantos contidos
Eu quero o barulho de grilos ensandecidos na noite
Eu quero os gritos das noites esmagando as tardes
Para zombar do silêncio embriagado do eu
E acordar o quanto antes
Enquanto ainda é tempo.
Medo
Medo, ora mola propulsora
Ora camisa-de-força
Fogo que ilumina
Fogo que queima
Eterno abrasivo.
Aventura
Escavando o eu à procura de tesouros enterrados?
Cuidado!
Há estágios em que a crosta é muito forte
E as lavas quietas ameaçam emergir
E o que era humano se transforma em dragão...
Mas não tem nada não!
Valerá a pena conhecer os afrescos
Abrir a arca com unhas e dentes
E revirá-la com sofreguidão
E misturar o medo, a dor e a solidão
E revelar e receber de mãos beijadas
O ouro da esperança.
Ponte
No meio da ponte
Eu não volto nem vou
Só sei que onde estou
Não há nada que aponte
Que o risco acabou
Mas olho para as laterais
E recolho meus ais
E tomo fôlego
E avanço todo trôpego
Destino lá vou eu
Mergulhando cego no breu.
Naufrágio
Esse eu que chora
Esse eu que ri
Travam luta acirrada
De vida ou morte
E ainda mais agora
Que é urgente aqui
Não ser a mente atropelada
E contar com toda sorte
Mas vai o barco alucinado
Naufragando estes dois seres
E esse eu já tão marcado
Vê minado seus poderes
Todavia estes duendes tão estranhos
Apegam-se firmes a uma ilha
Com uma força que não tem tamanho
Enlaçando as mãos tal como mãe e filha.
Desejo
Meu coração quer brincar de amor
Mas não quer amar
Está por demais atento à dor
Com medo de se deixar levar
E as mãos se tocam trêmulas
Os olhares cruzam-se como que longe
Os corpos tornam-se sombras
E o desejo apenas tinge-se de paixão
E as palavras como facas de dois gumes
Escondem mais significados do que revelam
Até que um dia o vigia adormeça
E o amor esteja pra qualquer coisa que aconteça.
Limiar
O pássaro retrocede frustrando a arapuca
A deusa desmaia retardando o sacrifício
A roleta emperra adiando o infortúnio
A sentinela distrai-se favorecendo os bárbaros
O amante adormece entristecendo o companheiro
O trabalho amplia-se reduzindo as férias
A vidraça orvalha-se ocultando a paisagem
A mão arrepende-se recusando a esmola
A voz controla-se aliviando o patrão
O corpo arrepia-se temperando a febre
A água acaba exasperando a sede
A dor arrefece possibilitando certa razão
E o amor rejuvenesce privilegiando a paixão
Dúvida
Eu acho que o que você acha
Que eu acho que você acha
Ou vai ou racha...
E antes que a gente se perca
E você e eu não se achemos
Eu sugiro que a gente tome até uma cachaça
Pra acabar de vez com toda esta pirraça
E assim a gente rechaça
Esta coisa já sem graça
E a dúvida passa
Evitando qualquer desgraça.
Natureza Viva ou Morta
O Cristo coberto sob as nuvens
O monte insinuando-se um gigante
A tarde dando seus últimos suspiros
Os barcos imóveis na tarde cinzenta
A praia com poucos seres intrépidos
A lancha cobrindo as águas de rastros
Os prédios ocultos no que resta de verde
O farol vermelho antecipando-se à noite
A polícia em busca de amantes ocultos
O monumento aturdindo nossos vivos
Os carros avançando atônitos e febris
São sinais de uma velha e cansada cidade
Que se transfigura a cada segundo
Fazendo bailar loucamente as retinas.
Solidão
Eu ando pela vida de mansinho
Tentando enganar a solidão
Mas a qualquer momento, em qualquer esquina
Ela acorda ofegante
E vem reclamar o seu quinhão.
Fagulhas
Meu amor,
Perdoe-me, por favor,
Por eu rimar mais uma vez amor com dor
Mas é que estou muito carente da sua anestesia
Vem me abraçar com seus braços feitos agulhas
E não importa que saiam até fagulhas
Eu quero mesmo é ver a noite se entregar
E dar lugar ao dia.
Vingança
Afiando as facas
Preparando as esporas
Ultimando o patíbulo
Montando o cadafalso
Atando os nós da forca
Armando a guilhotina
Abrindo o cano de gás
Preparando a carnificina oficial
O homem faz do homem
O que a natureza não quis
Supondo cortar o mal pela raiz
Mal sabendo que nada mais faz
Do que aumentar o que já é demais
E a dor se alastrando
O desamor imperando
A vingança clamando
Faz da caça o caçador
À procura do amanhã
Que se fartou da noite
E mais nenhum açoite
O demoverá deste fim
Verão
Num dia claro
Bem claro
De verão
Verão
Tudo que tenho
O amor que mantenho
Ouvirão
A voz engasgada
A dor embargada
Serão
O que nunca souberam
Ou nunca quiseram
Terão
Primavera, Verão, Outono, Inverno
Em vez deste Inferno
Num mesmo dia claro
Bem claro
De verão
Ou não?
Testemunha Ocular
Essas luzes da cidade fortaleza
Tão acesas
Dão a idéia de umas vidas
Que se esvaem muito presas
Olho o menino do patamar azul turquesa
E ele sorri pra mim
Insinuando-se como criatura indefesa
Eu subo até a janela pronto a virar a mesa
E pulo ao céu-encontro
Que beleza!Que surpresa!
É o fim das incertezas
É o tempo das sutilezas.
Crescei-vos e Multiplicai-vos
Menino do tambor de lata
Cresça e apareça
Que a festa da vida
Não pode esperar
Não tenha medo
Pois se o medo matasse
Eu não estaria aqui
Vivo a te en-cantar
Vamos em frente, tente
Já não há mais tempo
Pra se lamentar
E o que vier a gente
Grita, traça, amansa
E eu vou ver esta criança
Toda cheia de esperança
Apostando alto até no azar.
Sementes
Será que esse aprendiz
Não enxerga um palmo diante do nariz?
Será que em vez de cortar o mal pela raiz
Só lançou novas sementes?
Traição
E a fala mansa, rouca, inquieta
Como um sorrateiro e tímido beijo
Desvendava os meandros da traição
E o olhar vago, atônito, aflito
Como um dissimulado e brilhante punhal
Sangrava como se suplicasse por perdão.
Cisma
E o fantasma da criatividade
Com seu dom de criar novos fantasmas
Contorce os neurônios deixando a mente pasma
E as palavras que precipitam loucas no branco
São atos falhos de ambições, senões e veleidades
Que deixam marcas indeléveis como um cancro
E tingem nossa vida de vertigem
E nos empurra para o poço da irrealidade.
X,Y,Z
Na equação do amor as igualdades diferem
As incógnitas se multiplicam
As soluções não convergem
Métodos triviais não se aplicam
X e Y perdem seus valores
X e Y se fundem
Ambos dependem e independem
Num conjunto universo de amores
X e Y se anulam
X e Y tendem ao infinito
X e Y variam
Numa exasperada gama de conflitos
Na equação do amor
X não é igual a Y
Ainda que sejam iguais a Z.
Lacuna Para Um Patrão
A passadeira passou mal
E foi...................embora.
Travessia
Ele, pobre pedestre
Ao atravessar um cruzamento
Faz dos olhos faiscantes dos motoristas
O seu verdadeiro semáforo
Face a face com o inimigo
Ele vocifera internamente, desafiante:
“Seu empedernido quadrúpede
Vai ter coragem de avançar sobre este mero bípede
Que lhe contempla?”
Intempestivo
O tempo, este carrasco
Que bebe a nossa vida
E nos esconde o frasco
Forçando o beco a ter saída
O tempo, este insensível
Que é a tudo alheio
Que não sabe o que é freio
E nivela o possível e o impossível
O tempo, este absurdo
Que brinca com a História
Que fica quieto e surdo
E torna a glória inglória
O tempo, este arlequim
Que ri sutil e terno
Que é como um trampolim
Pra tudo que é eterno.
Aniversário
Aniversário, esse delírio do calendário
Que instiga o imaginário
A fazer um inventário
Pra mudar o itinerário.
Web Sentimental
Computador, computador
Você que tudo computa
Será que computa a minha dor?
Ali-Inação
Eu não sei se é consciência demais
Eu só sei que não sou mais capaz
De acreditar nas promessas
De perder tempo à beça
Assistindo-o dançar
Conforme a cantilena
Que nos obriga a escutar
Que pena! Que pena!
Disputa
Que tristeza!
Poetas colocando o pau na mesa,
Para disputarem
Quem reluz maior beleza.
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http://www.embaixadaamericana.org.br/photos/cristiano-ferreira.jpg
Nelson Rodrigues de Souza
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