sábado, 24 de julho de 2010

Reflexões Suscitadas Por Um Profeta Alado





O que escrever sobre “Terra em Transe” (Brasil/1967) de Glauber Rocha que não tenha sido já feito? Este é um dos filmes mais estudados do Cinema Mundial sem nenhum exagero. Eis uma tentativa de resumo bem sucinto da história, o que a rigor é impossível, dado a polifonia e o barroquismo da obra:

Num pais latino-americano(Eldorado) o jornalista Paulo Martins( Jardel Filho) está dividido entre a política e a poesia (mas reflete sobre os acontecimentos com intensa poesia) e cindido também, entre a fidelidade a um senador golpista da República, Porfírio Diaz (Paulo Autran) e um governador populista da província de Alecrim, Vieira ( José Lewgoy),única alternativa que ele acaba tendo de uma oposição a Diaz.Ele tem como reflexo de sua consciência atormentada, Sarah( Glauce Rocha ) uma companheira que lhe diz uma frase profética, que também serviria para o solitário Glauber,que morreu precocemente, “Será que a poesia e a política não seriam demais para uma só pessoa?”. Há ainda o empresário da área de comunicações Fuentes (Paulo Gracindo), sem nenhum caráter, que vende sua alma ao sabor dos políticos em alta ou em baixa. É ele quem emprega o dostoieviskiano Paulo Martins, que parece um personagem saído do romance “Os Possessos”, do grande mestre russo. Essa trajetória no subdesenvolvimento de Eldorado levará o jornalista e poeta a um progressivo estiolamento de corpo, mente e alma.

Mas vejamos alguns tópicos aonde reside a grandeza de “Terra em Transe”:

1) Um retrato 3x4 permanente do Brasil e suas contradições gravíssimas até agora insolúveis (infelizmente). Mesmo em 2010.

2) É mais uma demonstração de como a religiosidade pode ser a fortaleza e a fraqueza de um povo.

3) Uma trilha sonora que vai de cantos religiosos afros a clássicos de Villa Lobos, Carlos Gomes, Verdi, que é aliciante.

4) Uma estrutura narrativa em flashbacks cada vez mais elucidadores, mas intrigantes.

5) Uma direção de magníficos atores primorosa,com destaque para Jardel ,Autran ,Glauce e Lewgoy.

6)Como nos melhores Polanskis, não há um coadjuvante que não tenha o seu momento expressivo (seja Hugo Carvana, Flávio Migliaccio, Paulo César Pereio, Zózimo Bulbul, Maurícío do Valle, Jofre Soares, Telma Reston, Mário Lago, Francisco Milani, etc...).Até mesmo Danuza Leão e Clovis Bornay (que não são atores) estão muito bem aproveitados, com olhares perdidos ou incisivos respectivamente.

7) A seqüência emblemática em que um homem do povo ( vivido por Flávio M.) tem sua boca tampada pelo intelectual Paulo Martins. É importante ressaltar que no meteórico programa que teve na televisão, Glauber era obcecado em dar voz aos “homens sem importância...”

8) A operística procissão-caravana-comício de Diaz segurando um alentado crucifixo, que nos remete,dentre outras imagens, ao Costa e Silva e seu nefando AI-5, uma foto dele com a cruz com Cristo ao fundo (capa de “O Cinema Dilacerado” de José Carlos Avellar).

9) O tom operístico de todo o filme, mesmo quando populares preenchem os esplêndidos planos, algo que ressalta a distância entre elites&intelectuais e povo.

10) O discurso narrativo poético de Paulo Martins que é embasbacador, mesmo quando não se apóia em Mário Faustino, fazendo com que o roteiro do filme seja uma premente edição a ser feita, tal o valor literário envolvido, prescindindo da concretização em imagens e sons.

11)O filme tem um olhar não complacente com os excluídos brasileiros, mostrando sua altas-sabotagens, a teia de destinos em que caem, sendo massa de manobra de oportunistas, mas não deixa de ter carinho, ternura por eles (ao contrário de um “Dezesseis Zero Secenta de Vinícicus Mainard, com roteiro do irmão Diogo ).

12) É a obra-prima dentre as obras primas do Cinema Brasileiro. Do que conheço nada antes, nada depois tem a mesma envergadura (nem mesmo “Deus e o Diabo na Terra do Sol” ou “Memórias do Cárcere” para ficarmos só com dois exemplos de excepcional qualidade do Cinema Nacional). O filme está para a História do C.B. assim como “Grande Sertões:Veredas” de Guimarães Rosa para a História.da Literatura Brasileira, um marco provavelmente inexcedível.

13) Paulo Emílio Salles Gomes escreveu que “Glauber é um profeta alado e aos profetas cabe profetizar e não acertar...” Ele errou!!!Glauber profetizou nosso caos contemporâneo e acertou em cheio: o filme visto hoje é ainda assombrosamente atualíssimo (mais uma vez friso, infelizmente; seria melhor e reconfortante para todos que o filme estivesse datado....).

14) A rigor a questão levantada no início do texto não é pertinente; temos aqui uma obra de arte de múltiplas leituras,que não se esgotam em sucessivas revisões.Com os estudos agora possíveis de computador, plano a plano, os trabalhos permitidos são infinitos....Mas ressaltemos: o lugar certo de “Terra em Transe” é num cinema como o Unibanco Arteplex, em 35mm,cópia restaurada.

!5)O filme se vale de godardismos sem excessos. O mais evidente é o poema síntese de Mauro Faustino, impresso na tela sobre o corpo de Paulo Martins: “Não conseguiu firmar o nobre pacto/ entre o cosmo sangrento e a alma pura/ Gladiador defunto, mas intacto/(Tanta violência, mas tanta ternura)”

16) Glauber não aponta apenas para mazelas endógenas mas também para conluios elites&imperialismo da Spinkler&interesses espúrios.

17) Os ecos de “Terra em Transe” em outros cineastas são enormes. Nos fixemos em alguns: “Os Herdeiros” de Carlos Diegues; “Toda Nudez Será Castiga”,”O Casamento”,”Tudo Bem “ de Arnaldo Jabor (todos, de estilo operístico poderiam fazer parte de uma trilogia de Jabor “Almas em Transe); “Prata Palomares “ de André Farias (filme não bem sucedido); “Romance” de Sérgio Bianchi (uma obra-prima retocável, imperfeita, impura, crua que bebe tanto em Glauber e seu Eldorado como no Cidadão Kane de Orson Wells); “Redentor” de Cláudio Torres (um clima glauberiano perpassa todo o filme, não por acaso bastante operístico), etc....Até mesmo “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla”, filme de uma geração que sentia a necessidade freudiana de “matar o pai do cinema novo” para respirar novos ares, exala Glauber por vários de seus poros-celulóide. Entretanto ao contrário do que afirma com leviandade Reinaldo Azevedo em ensaio da Bravo!(nº 86), fazendo tabula rasa de todo o cinema da chamada Retomada do C.B, Glauber e suas alegorias sobre o Brasil e a América latina não podem ser tomadas como modelo pra nenhum cineasta novo. Glauber é único, inimitável, irreproduzível. Há o caso de “Pindorama” de Jabor, muito mal recebido por público e crítica sobre o qual Orlando Fassoni escreveu na “Folha de S.Paulo”: ”se alegoria matasse ninguém sairia vivo da sala de cinema....” A ensaísta Leila Perrone-Moisés afirmou certa vez que todos que pretendessem ser escritores deveriam ler “Grande Sertão:Veredas” de Guimarães Rosa, para entenderem o nível que a Literatura Brasileira já atingiu! (sic!). Se os incautos escritores e cineastas potenciais fossem seguir essas “dicas” de Leila e Reinaldo emudeceriam como a atriz de Persona de Ingmar Bergman (mais uma performance magnificente de Liv Ullman, num filme nada glauberiano mas nem porisso inferior (muito pelo contrário)....Coisas do “Infinito Cinema”, livro do crítico Ely Azeredo, que com sua genorisadade e humildade lembra Akira Kurosawa afirmando no fim da vida que “a essência do cinema ainda me escapa....”. Alguns críticos e ensaístas se julgam donos dessa essência....Por fim vale lembrar que mesmo reconhecendo toda a magnitude da obra de Glauber, Hugo Carvana preocupado em fazer suas comédias urbanas (que gerou os adoráveis “Vai Trabalhar Vagabundo” e “Bar Esperança: O Último que Fecha”) cansado das patrulhas estéticas desabafou: “É preciso sepultar esse cadáver de vez”. Se não foi exatamente isso, o teor está correto. Reinaldo e sua cruzada que Glauber hoje vivo, não aprovaria, provalmente, quer tapar a boca dos novos cineastas assim como Paulo faz com o homem do povo...

18) Há um político assaz demagogo que dança, às vezes literalmente, conforme a música, sambando de forma desajeitada e grotesca pra impressionar a rapaziada, canditado a formar seus eleitores..........que tem os trejeitos do inefável ex-presidente Severino, morte e morte de nossa Câmara dos Deputados.

19) etc, ...etc....etc...etc....etc....etc...etc...

Com relação a Paulo Martins e Glauber pode-se escrever o texto que Glauber Rocha colocou em Di-Glauber (um filme bestialmente proibido pela família de Di Cavalcanti): ”Ninguém assistiu ao formidável enterro da sua última quimera. Somente a solidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável”.

Ainda vale lembrar uma teoria minha: nenhum artista amou tanto seu povo quanto Glauber, mas sem o menor vestígio de demagogia: daí o seu fim precoce, sua vida errática e labiríntica. Numa perspectiva de sua obra toda, os filmes feitos no Brasil são superiores aos feitos fora. O exílio não lhe fez bem (ao contrário de um Cortázar, um Gabriel Cabreira Infante, etc..). Numa retrospectiva razoável de sua obra quando o São Luís ainda era duas salas, amei os Glaubers feitos no Brasil e me entediei com os Glaubers estrangeiros. Mas em se tratando de Glauber, revisões sempre nos trarão novas surpresas.

PS. Este texto, com algumas correções e acréscimos, foi escrito em maio de 2005, por ocasião da inauguração do Arteplex RJ, onde um dos filmes exibidos era “Terra em Transe”. Por que este cinema não continua sistematicamente exibindo clássicos restaurados do cinema brasileiro em uma de suas salas, o que fez com “Macunaíma” também?

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Nelson Rodrigues de Souza

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