quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Maldade e a Bondade Que se Escondem nos Corações Humanos




Em torno de três anos colaborei com o jornal eletrônico Montblät (e depois site) capitaneado pelo grande jornalista Fritz Utzeri. Fritz havia saído do Jornal do Brasil, pois já se insinuava a sua decadência, o que está mais do que confirmado agora em que teremos só a versão eletrônica do jornal. Uma grande perda para a cultura brasileira. “Pior do que não ler jornais, é ler um só”. E é a isto que estamos condenados na cidade do Rio de Janeiro.

Fritz não se adaptaria a O Globo e partiu para um trabalho independente que chegou a acabar, o Montblät, mas agora foi retomado. Não mais colaboro com o jornal eletrônico, pois tenho outros planos. No início, quando fui gentilmente convidado para escrever no Montbläat apostei na idéia de que os leitores gostariam de textos minuciosos onde eu avisava que havia spoilers (detalhes importantes de filmes foram revelados), mas estes leitores não aprovaram a idéia. Senti-me então impelido a fazer então textos mais curtos evitando spoilers.

Entre os textos que escrevi, um dos que mais gosto é este sobre a obra de David Cronenberg que vai adiante, com algumas correções. Aos poucos vou colocar no Blog textos que ainda julgar pertinentes. Espero que vocês gostem também.

Nelson

“Senhores do Crime” de David Cronenberg

A Maldade e a Bondade que se Escondem nos Corações Humanos

O cineasta e ensaísta Paul Schrader (de “Mishima:Uma Vida em 4 Tempos”, “O Gigolô Americano”, roteirista do clássico “Taxi Driver” de Scorsese, dentre outros feitos) associa o trabalho de um diretor de cinema ao de um parteiro. Já o crítico de cinema seria um legista. Ou seja, um dá vida a uma obra de arte. O outro ao “examiná-la” age como se desvendasse as entranhas da obra de arte enquanto um corpo “acabado”.

David Cronenberg (como Bergman, Antonioni (“geômetra cartesiano dos sentimentos humanos”, conforme já o denominaram), Hitchcock, Buñuel e mais recentemente o malaio radicado em Taiwan, Tsai Ming-liang, dentre outros) é ao mesmo tempo um grande parteiro criador e um grande legista que revira seus personagens do avesso. Valendo-nos de uma feliz expressão do crítico musical Tárik de Souza para um livro de poemas seu, adaptando-a para o plural, Cronenberg é da dinastia nobre dos cineastas que fazem autênticas “autópsias em corpos vivos” que recria na tela, segundo uma ótica inconfundível. Sua obra é repleta de personagens captados em sua solene bizarrice, suas metamorfoses, suas identidades ambíguas e escorregadias, suas esquizofrenias, seus mundos virtuais, suas premonições, seus cigarros que queimam a pele, seus vídeos com torturas e assassinatos para deleite alucinatório, etc..., com explicitação dos fluidos e traumas do corpo como o sangue, vômito, miolos e veias arrebentadas de cérebros explodindo (como no fabuloso “Scanners- Sua Mente Pode Destruir” -1981), feridas, cortes, ossos expostos, vísceras, unhas arrancadas e outras características mais impactantes. Tudo isto o torna um cineasta muito especial, onde uma aparente frieza de “homem de ciência” esconde emoções bastante fortes e sutis e um intrincado e perverso jogo social que se instala com regras que muitas vezes não são nada claras e limites que são esgarçados ao máximo.

Em “A Mosca” (1986) temos um dos filmes mais “repulsivos” já feitos pelo que explicita, mas imantado do “belo horrível”, sendo um dos mais fascinantes pelas questões que sugere e levanta, dentro do universo “o feitiço volta-se contra o feiticeiro”. Em “eXistenZ” (1999), não lançado comercialmente no Brasil ( nem em DVD) pessoas entram em mundos virtuais sucessivos em que a realidade se torna movediça, impalpável, ininteligível. Um mundo futurista avançado onde se convive com répteis e anfíbios mutantes, havendo ligações com cordões umbilicais a uma espécie de placenta, possibilitando aos seres participarem de jogos que mal compreendem no universo de eXistenZ. Este é um dos melhores, mais perturbadores e originais filmes de ficção científica já feitos. “Videodrome- A Síndrome do Vídeo” (1983) não fica abaixo em qualidade: é uma obra premonitória do nosso mundo onde não se sabe mais onde começa e termina o homem e onde começa e termina a televisão. Estes universos se fundem, se confundem, com alucinações sucessivas que contagiam personagens e até mesmo a nós espectadores.

Sobre “Senhores do Crime” (EUA/Canadá/Inglaterra/2007), um trabalho que rima com “Marcas da Violência” (2005) em muitos aspectos, mas não deixa de ser um novo Cronenberg, estamos num território mais palpável que outros filmes mais antigos. Mas um exame atento nos conduzirá ao Planeta Cronenberg, pois se trata de um filme de um grande cineasta do cinema contemporâneo com temáticas recorrentes (a principal delas talvez seja a questão sobre o que é a identidade de um homem, o que a forma, o que a conforma, o que a deforma..) que fazem dele um autêntico autor na acepção dos tempos áureos do Cahiers du Cinéma , mesmo que seus dois últimos trabalhos citados, “gêmeos não univitelinos”, tenham na superfície um aspecto mais hollywoodiano.

Em “Marcas da Violência” tem-se uma antológica cena final, com a restauração da ordem (ou da desordem?) social e familiar depois de muita violência, seqüência que é feita com uma simplicidade impressionante, mas nem por isso isenta de nos provocar grande emoção. Em “Senhores do Crime” temos uma longa seqüência de luta numa sauna com o protagonista Nikolai nu, de tal forma que os movimentos do seu corpo ensangüentado são submetidos a uma vibrante, belíssima e incômoda coreografia que aproxima o filme dos Cronenbergs que mais conhecemos, como por exemplo, o de “Crash-Estranhos Prazeres” (1996). Neste, os personagens só transam mediados por situações associadas a acidentes, com muletas, parafusos e próteses e passeiam por carros acidentados numa estrada como se estivessem vendo uma instalação, uma obra de arte, numa crítica contundente indireta à mecanização das relações humanas, algo que é feito sem nenhum moralismo e com uma coragem tal que o filme estreou no Brasil bem antes dos EUA.

Com a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a antiga KGB passa a ser a SSB e proliferam as máfias russas mundo afora. “Senhores do Crime” nos leva a um passeio pelos meandros da organização criminosa citada instalada em Londres, com paisagens que fogem dos cartões postais habituais. Tatiana (Sarah-Jeanne Labrosse), com 14 anos aproximadamente, morre no parto de sua filha. Aqui já temos a dualidade vida e morte explicitada em nuances potentes com o bebê todo embebido em sangue provando da vida e a mãe falecida. A enfermeira Anna de descendência russa (Naomi Watts, ótima como sempre) descobre dentro de um diário da jovem morta, um cartão de um restaurante. Indo até este local depara-se com um primeiro enigma, o dono do estabelecimento que serve de fachada para uma rede de prostituição e tráfico de drogas (a “vory v zakone”), o simpático Semyon (Armin Mueller-Stahl), num ambiente bastante familiar e festivo.

Anna passa a ter contacto também com Nikolai (Viggo Mortenson), motorista deste clã da máfia russa que tem relações afetivas ambíguas, no limite do homoerotismo com o filho de Semyon, o instável Kirill (Vincent Cassel). Kirill manda matar Soyka (Aleksander Mikic), através do barbeiro Azim( Mina E.Mina) pois Soyka estava causando problemas ao mimado filho do “chefão”, inclusive com citações à sua sexualidade desviante da “norma” hegemônica. Retaliações são armadas. O tio de Anna, Stepan (Jersy Skolimovski ,um grande cineasta que trabalhou no roteiro de “A Faca Na Água” de Polanski e foi o diretor de “Ato Final”, grande filme de 1970, dentre outros) entende russo e passa a traduzir o diário deixado por Tatiana. Ela foi estuprada por Seymon para mostrar ao filho como se transa com uma mulher, dentre outras perversidades em mente e a criança que nasceu tem o DNA dele. Esta descoberta de Anna acaba comprometendo-a e ao tio, o que faz com que o misterioso Nikolai tenha de tomar decisões perigosas.

Em “Spider-Desafie a Sua Mente” (2002) tem-se uma história narrada por um esquizofrênico que se instala numa pensão após longo internamento. Com a marca Cronenberg temos um fabuloso estudo de uma tentativa de construção desesperada de uma identidade onde as aparências enganam sim. “Senhores do Crime” concentra mais esta questão da identidade, principalmente, na personalidade de Nikolai (numa grande composição contida de enormes sutilezas de Viggo Mortensen, ainda melhor do que em “Marcas da Violência”), um ser capaz de cortar os dedos de um cadáver, ajudar a jogá-lo no rio, mas também de promover mudanças benignas significativas no rumo das histórias paralelas que correm, pondo em risco a própria vida.

Em entrevista da Reportagem Local da Folha de São Paulo, Cronenberg explica muito bem aspectos do seu projeto plenamente logrado:

“O crime é sempre fascinante porque os criminosos vivem em constante estado de transgressão. Eles estão além da sociedade, ainda que aparentem fazer parte dela. Trata-se, igualmente, de uma história multicultural. Toronto, a cidade em que vivo, como Londres, o local em que a história transcorre, orgulham-se de ser cidades multiculturais. Ao contrário dos EUA, ao desembarcar em qualquer uma delas não é preciso abandonar sua cultura e sua herança nacional. A cultura de todas essas comunidades cujas atividades giram em torno do crime é a de seus países de origem”

Os mafiosos estão repletos de tatuagens exibidas com orgulho. Nikolai também tem as suas e faz por merecer outras que o filiam com força à “vory v zakone”. Sobre estas “marcas da violência” Cronenberg as define muito bem na reportagem citada:

“Com essas tatuagens, surge a impressão de que o corpo conta uma história.
Elas são o elemento visual mais importante. E a metáfora do completo envolvimento com um código, uma ideologia.”

David Cronenberg consegue fazer alguns filmes que se comunicam muito bem com o grande público, outros nem tanto, mas que não deixam de trazer leituras cada vez mais ricas a cada nova visão de suas obras. Se as sinfonias de Ludwig van Beethoven são para serem ouvidas sempre, com renovado frescor, captando-se tessituras, harmonias, sonoridades, antes insuspeitadas, com os grandes filmes de modo geral, o mesmo acontece. Com Cronenberg, um dos gigantes do cinema contemporâneo as descobertas acabam sendo maiores ainda nas revisões. “Spider- Desafie a Sua Mente” (2002), por exemplo, se esconde bastante numa primeira visão revelando com grande força sua enorme complexidade nas revisões que se promover, com um trabalho divino de Ralph Fiennes como protagonista e Miranda Richardson interpretando três personagens magnificamente.

A obra máxima de Cronenberg é provavelmente o maravilhoso “Gêmeos- Mórbida Semelhança” (1988), uma das obras incontornáveis do cinema do século XX. Nele podemos fazer uma forte leitura política que provavelmente o diretor intuiu e deixou fluir com sua força de artista maior. Se há uma seqüência emblemática do kafkianismo galopante a que estamos submersos hoje num mundo onde, nos lembrando de Ernesto Sábato, “o homem do século XX (e por extensão do XXI) é um gigante técnico mas um infante ético” e “a maior catástrofe contemporânea é a HEGEMONIA ( grifo meu) da ciência”, enfim se podemos nos ver numa seqüência síntese de toda esta problemática ela está em “Gêmeos....”. Vejamos o porquê adiante.

Um casal de gêmeos idênticos (genial criação de Jeremy Irons, onde depois de certo tempo aprendemos por gestos e olhares sutis a saber quem é quem, mesmo quando os dois contracenam juntos) cresce sem que eles construam uma identidade própria, numa grande interdependência, seguindo ambos a carreira de ginecologistas com bastante sucesso e até dividindo entre si as paqueras que fazem. São intelectualmente desenvolvidos e emocionalmente retardados. Uma cliente tem o útero tripartite o que passa a despertar grande interesse neles. Ela acaba sentindo que um é diferente do outro em certos aspectos. Um deles se apaixona por ela. O pacto tácito entre os irmãos é quebrado e os gêmeos caem numa instabilidade emocional atroz. Um deles enlouquece, rouba dispositivos médicos de uma exposição de artes plásticas e com estes equipamentos falsos examina uma cliente. Esta sente uma dor horrível. Ele com bastante energia manda-a se calar, pois afinal ele é médico e sabe o que faz! Ela com dores atrozes acaba se conformando ( afinal ele é o dono do saber...). Não é este o nosso mundo de hoje, com tantos “truques mau feitos dos magos e o chicote dos domadores”? Não “somos todos iguais nesta noite”, nestas trevas que se abate sobre a Terra, conforme Ivan Lins e Victor Martins comentavam sobre a ditadura militar brasileira mas que agora ganha significados ainda mais perigosos, porque mascarados por legiões de capatazes, de “gravata, farda, batina ou avental”?

Em matéria de Luiz Carlos Merten no O Estado de São Paulo, Cronenberg explica de forma preciosa seu trabalho com os atores, sempre excelente:

“Um ator é antes de mais nada um corpo. O físico é seu instrumento de trabalho. Quando um cineasta filma um ator, o material sensibilizado pela película - ou mesmo que fosse a tecnologia digital - não tem nada de abstrato. É uma matéria viva, com nervos, músculos e contornos.”

Cronenberg flagra estes corpos em mutações explícitas ou camufladas criando uma obra conjunta das mais expressivas da História do Cinema e que acabam impregnando nosso inconsciente, nos provocando inquietações políticas, sexuais, psicológicas, sociais, psicanalíticas, antropológicas, etc..., mas mantendo sempre uma aura de mistério que é fundamental e provavelmente indecifrável. Somos um teorema que não se provará jamais, tantas são as indeterminações de que somos feitos. Daí a loucura de um mundo que se propõe a medidas higienizadoras, o fracasso monumental destas tentativas de catalogação do ser humano, seja enquanto consumidor, cidadão, discípulo, empregado, espectador, eleitor, ou outra etiqueta que se queira. A máfia russa de “Senhores do Crime” também ao seu modo tenta catalogar pessoas, com tatuagens e outros ritos. O fiasco é retumbante.

“XXY” (Argentina/2007) de Lucia Puenzo é um bom filme que resulta no conjunto um tanto acanhado, com indecisões nos personagens que se refletem na direção. Alex é um ser hermafrodita para quem o pai biólogo não autorizou uma operação quando nasceu (o pai o julgou um ser perfeito no seu grande amor pela cria). Assim Alex cresce como um ser com pênis e vagina, tendo ainda seios. Numa relação com um rapaz com tendências homoeróticas (filho desprezado de um cirurgião plástico que visita a família de Alex em seu exílio no campo), a hermafrodita passa a ser ativo na relação com o parceiro, sentindo os dois grande prazer. Alex decide não mais tomar remédios como cortisona para evitar que a barba cresça. Quer que a natureza decida o que ele vai ser e não a ciência.

Este bom, delicado e sensível “XXY”, mas limitado, nas mãos de um Cronenberg, solicitando a mudança do roteiro (conforme fez com o primeiro tratamento de “Senhores do Crime”) daria com certeza um filme muito mais instigante e profundo sobre este tema de complexa identidade de gênero.

Se Cronenberg fosse um poeta das letras, no que diz respeito à economia de linguagem, estaria mais próximo da secura, da “educação pela pedra” de João Cabral de Melo Neto do que da transbordante energia, do derramamento de Fernando Pessoa (Fellini está mais próximo deste). Mas atenção: Cronenberg não é um engenheiro ou matemático assim como João Cabral também tem muitas sinuosidades em seus poemas conforme já apontou Ferreira Gullar. Cronenberg parece ter lido “Água Viva” de Clarice Lispector onde ela deixa bem claro: “Já aprendi matemática que é a loucura do raciocínio, mas agora quero o plasma, quero alimentar-me diretamente da placenta”. Uma placenta é o que é o cinema de Cronenberg onde ele e nós nos alimentamos direta e fartamente.

David Cronenberg é um artista do cinema ( assim como, guardadas as devidas proporções, Nelson Rodrigues e Jean Genet na dramaturgia universal, dentre outros) que tendemos a rotular de doentio, o que é um grande equívoco. Cronenberg (assim como Nelson, Jean Genet e outros) se deixam aparentemente contaminar pelas doenças do mundo para melhor nos expor a elas, nos aturdir com perplexidades as mais variadas. Não é um simples pour épater le bourgeoisie. Há um projeto bastante consistente, em parte consciente e por outro lado inconsciente (“uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente, traduzir uma parte na outra parte que é uma questão de vida e morte, será arte?” nos lembra Ferreira Gullar). Este resultado que aflora “isolando” personagens e situações, para que os compreendamos melhor, revela a doença de uma civilização. Será esta curável, determinada social e politicamente ou será atávica, permanente, arquetípica? Ao sairmos de um filme de Cronenberg não somos mais os mesmos. Há de certa forma uma “invasão de nossos corpos”, sofremos mutações. Acredito eu que para melhor. “A luz nasce da escuridão” em que seu cinema nos mergulha. Experimentem. Vale muito a pena.

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Ps “Senhores do Crime cuja melhor tradução para o título original deveria ser “Promessas do Leste” só foi indicado a melhor ator ( Viggo). Merecia muito mais. Mas se a Academia se curvou ao hipertransgressivo “Onde os Fracos Não Tem Vez” dos irmãos Coen, seria exigir demais que seus membros se curvassem também diante do genial e essencial Cronenberg.

Nelson Rodrigues de Souza

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