domingo, 25 de julho de 2010

Claros e Obscuros Enigmas da Memória e da Criação- "Santiago" de João Moreira Salles





Claros e Obscuros Enigmas da Memória e da Criação

Santiago Badariotti Merlo, argentino de descendência italiana, foi mordomo por trinta anos da família do banqueiro, embaixador e Ex-Ministro da Fazenda de João Goulart, Walter Moreira Salles, quando instalada na casa da Gávea, onde hoje é o Instituto Moreira Salles. Personalidade exuberante, aos 80 anos, já morando num pequeno apartamento do Leblon, Santiago gerou um documentário de João Moreira Salles, de 1992, que ficou inacabado, como um fantasma de gaveta, feito dois anos antes da morte do entrevistado. O diretor João Moreira Salles, irmão de “Waltinho” Sales, é um dos principais documentaristas brasileiros, autor de “Futebol”, “Notícias de Uma Guerra Particular” (1999/ um filme pioneiro no retrato do domínio das favelas pelos homens do tráfico, focado em Marcinho VP), “Nelson Freire” (2003/ aonde acompanhou o pianista por vários continentes) e “Entreatos”(2004/ um retrato distanciado e criticamente sutil dos meses anteriores à primeira eleição de Lula à presidência.)

Além de entrevistas com Santiago em vários estágios, o diretor havia feito cenas da casa onde morou até os 20 anos. Não sabendo como dar liga ao filme por razões até hoje não suficientemente esclarecidas além do fato de não perceber na época que também era um personagem daquela história e como tal deveria ser incluído, a obra só teve sua retomada 13 anos depois, em 2005. João com a inestimável e preciosa colaboração de Eduardo Escorel como montador acabou dando forma a um dos mais originais documentários já feitos no país, “Santiago” (Brasil/2007).

Além do fato do diretor se colocar como narrador (com a voz delicada de seu irmão Fernando Moreira Salles, para um melhor distanciamento e estranhamento), ele tece autocríticas de forma a colocar em jogo o papel de elite que representa, em um filme que desnuda quem exerce uma forma de poder, no caso um patrão entrevistando seu ex-mordomo ou ainda um diretor com o poder que sempre tem em relação ao seu entrevistado, conforme reconhece João em entrevistas, pois é o senhor da edição e cabe a ele decidir que imagens, no caso de Santiago, escolherá para tornar pública.

Assim, “Santiago” evolui em várias camadas:

1-Uma história da vida intrigante de um ex-mordomo de família plebéia, poliglota, amante das artes plásticas, da música clássica, da ópera, mestre nos arranjos florais e na organização de festas na casa da Gávea, que fantasiava ser um palácio e que sempre sonhou em pertencer à nobreza (ou fantasiava que a ela pertencia), fazendo um inventário da nobreza de todos os tempos incluindo também celebridades como atores de Hollywood, chegando até ao requinte de incluir chefes indígenas, formando calhamaços que atingiram 30000 páginas cujas partes amarrava com fitas que vinham de Paris.

2-A perda da infância e juventude e a descoberta da corrosão do tempo pelo artista João Moreira Salles que tinha a finitude como uma questão metafísica teórica pelos 30 anos e passa depois dos 40 a sentir sua concretude.

3-Os limites do que se chama documentário, o mito da objetividade e ausência de manipulação desnudados, esgarçados e tornados públicos de uma forma doce e impiedosa, sem auto-complacência.

4-etc..etc..etc...

O que torna “Santiago” um filme extraordinário é que, além destas interessantíssimas veredas citadas, aos nos apresentar Santiago e logo depois “Santiago- Reflexões Sobre Material Bruto”, é que o entrevistado é de uma cálida humanidade sem nunca se mostrar esnobe como a princípio esperaríamos e o filme metalingüístico como poucos tem uma exposição cristalina o suficiente para seduzir qualquer platéia (não apenas críticos e cinéfilos) mas mantendo sempre uma aura de mistério, próprio das grandes obras de arte, que só vão ser desvendadas mais a fundo de acordo com a interpretação de cada espectador.

Santiago chega ao requinte de arrumar a gravata refletindo-se no mármore de um túmulo de um cemitério italiano, é exímio tocador de castanholas, faz uma dança das mãos belíssima, escreve textos de enorme força poética em alguns de seus escritos em sua fiel máquina de escrever Remington e faz seu inventário da nobreza mundial, pesquisada com enorme obstinação. Todo seu material foi doado por testamento a João Moreira Salles e este filmou por três dias alguns trechos, trazendo para a tela uma emoção cinematográfica de cunho literário bastante singular.

Para Santiago, Lucrécia Bórgia havia sido injustiçada pela História. Um casal de nobres amantes, morto por um marido anão enciumado, lembrado por Dante num dos círculos do Inferno de “A Divina Comédia”, passa também a ser imortalizado por Santiago. Ao mencionar a elevação aos céus destes personagens, o filme faz uma poética montagem com sacos plásticos esvoaçantes. João nos conta que o mordomo ao ser flagrado tocando piano com fraque respondeu: “É Beethoven...”.

“Santiago” está longe de se esgotar no carisma do ex-mordomo. João Moreira Salles como narrador de suas dúvidas, inquietações e erros com relação ao filme que tentou fazer e agora fez, também se impõe como uma voz bastante sedutora. João se dá conta que à maneira de Ozu, filmou Santiago com planos distantes com câmera baixa. Mas não há aí apenas um ideal estético. Percebe e nos relata que não havia apenas um diretor e seu entrevistado em ação.Sua relação de patrão com seu ex-empregado ainda se fazia sentir. Desta forma João encena seu documentário pedindo que Santiago repita falas e gestos até que tenha a melhor opção para seu filme e este processo nos é mostrado na sua forma obsessiva. Santiago diz que “para o grande cineasta Ingmar Bergman somos como cadáveres insepultos debaixo de um céu vazio e cruel” e isto expressa muito de seu fatalismo, apesar do bom humor que apresenta terminando suas falas com C’est tout.

No documentário vemos João fazendo Santiago repetir esta visão simplista de Bergman várias vezes até se dar por satisfeito como se estivéssemos num filme de ficção e um ator sendo conduzido a uma melhor performance. A intenção e cosmovisão crepuscular de um homem solitário de 80 anos são captadas de forma legítima, mas o diretor não permite que ela se expresse naturalmente. Em entrevistas João afirma que hoje de forma alguma tem esta visão controladora com seus “personagens”. Realmente o que se observa em “Nelson Freire” e “Entreatos” são pessoas à vontade captadas de vários ângulos (Freire na coxia de teatros antes dos aplausos, Lula em conversas desabridas num avião, por exemplo). Claro que aqui estamos ainda muito longe de 100% de objetividade, mas existe esta busca, ainda que sabidamente inalcançável. Em “Santiago” a postura do documentarista é totalmente outra. Conforme declarou João, outros poderiam ter feito seus filmes anteriores, mas “Santiago” não.

Há um momento em que Santiago deseja falar algo muito especial e íntimo. João não liga a câmera. Ouvimos apenas Santiago dizer que pertence a uma “dinastia de malditos”. João lhe diz que isto não e o incita a mudar de assunto. Não é difícil perceber que Santiago tinha vontade de falar sobre sua homossexualidade. Em entrevista à Bravo! de agosto de 2007, João confirma que não deu voz à Santiago neste aspecto pois o queria proteger. Hoje o deixaria falar, pois era esta sua vontade. Mas se este enigma se torna claro, nem porisso o filme deixa de continuar com seus mistérios. Um deles é por que depois do sucesso de “Entreatos” João parece estar mais interessado no projeto da revista mensal Piauí e entra em crise existencial profunda em relação à vida e ao cinema e esta é resolvida em parte retomando este filme que estava inacabado, de uma forma confessional rara em sua carreira e no documentário brasileiro. Deve fazer agora um filme sobre viagens de sua mãe à Ásia. Está cansado de deixar a câmera rodar para ver o que acontece. Há no ar a idéia de filmar os últimos dias do governo Lula, como complemento a “Entreatos”, mas sem grande entusiasmo.

“Santiago” questiona a idéia de que um documentário possa realmente corresponder ao lema “É Tudo Verdade”, filme inacabado de Orson Welles no Brasil que deu origem ao título do prestigiado festival anual de documentários organizado por Amir Labaki. O que é então verdade, o que é mentira num documentário? “Santiago” questiona o status de verdade do que estamos vendo. No arrebatador, impactante, não menos extraordinário “Na Captura dos Friedmans” (2003) de Andrew Jarecki, sobre um pai e filho supostamente pedófilos praticantes, esta questão é levada a paroximos. O filme pouco a pouco nos vai colocando dúvidas atrás de dúvidas solapando nossas certezas que acreditávamos estar construindo.

Para Santiago, que chega a sonhar que era aristocrata na Revolução Francesa, “o mundo poderia desabar” que não haveria problema, pois instalado em seu apartamento vivia do passado. Um vizinho lhe disse que ele estava sendo empalhado ou embalsamado. É assim que se via sendo alvo de um documentário. Seu filme preferido era “A Roda da Fortuna” (1953) de Vincent Minelli. João nesta edição de 2005 inclui cenas deste filme em que Cyd Charisse e Fred Astaire caminham insatisfeitos um com o outro e de repente começam a dançar divinamente. Numa cena captada de “Era Uma Vez em Tóquio” de Ozu, pergunta-se a uma personagem se a vida é uma decepção. Ela responde que sim, mas abre um sorriso. Santiago fez da dança e um leve sorriso sua volta por cima em relação às suas frustrações.

Santiago à sua maneira deu sentido à sua vida com o amor à arte, tentando fazer da vida de mordomo que acompanhava o patrão mundo afora, fazendo pesquisas, uma arte e se Artur Bispo do Rosário era um inventariante das coisas criadas por Deus aqui na Terra, Santiago se propôs um inventário com transcendência muito particular: nobres dos mais variados recantos e tempos. Podemos considerar hoje sua atividade algo inútil e a rigor é. Mas foi aí que ele encontrou o maior sentido para sua vida. Desta forma não só faz João Moreira Salles repensar o sentido da sua própria vida, com o passar do tempo aproximando patrão e empregado na sua fugacidade, como também convida a nós espectadores a meditarmos sobre o sentido que estamos dando às nossas vidas. Que inventário estaremos fazendo para engrandecê-la? Muitos o fazem com bens de consumo os mais variados. Aí a sensação de inutilidade vai se juntar à ausência de qualquer transcendência e poesia.

Santiago era um grande artista “em sua cabeça”, com certeza. Tinha potencial para tal. Apesar de sua cultura não se realizou devidamente na prática, com sua obsessão pelo inventário da nobreza que agora tem valor afetivo para João Moreira Salles, mas dificilmente o terá para historiadores. Ao seu modo nos lembra aspectos do diretor Ed Wood, “o pior cineasta de todos os tempos”, conforme nos é mostrado por Tim Burton em uma de suas obras-primas “Ed Wood” (EUA/1994). Mentalmente tinha vocação e era indubitavelmente amante do cinema. Na prática só o realizava de forma trash, acreditando estar fazendo uma grande obra de arte. Uma seqüência antológica se dá quando Ed se encontra com Orson Welles, “o maior cineasta do mundo”, num bar e os dois bebendo, cúmplices, se irmanam na dor da incompreensão e ausência de recursos para seus projetos. Assim como os dois cineastas, Santiago, João Moreira Salles e nós também “somos todos iguais nesta noite”, numa vida que se faz escura e precisamos desesperadamente dar-lhe substância e sentido. O tempo tende a aplacar nossas arrogâncias e nos iguala. Patrão e empregado, cineasta e entrevistado (e nós) passamos a ser pura efemeridade. Mas podemos fazer poesia deste lado fatal e fugaz da vida, como Santiago fez e João o faz com seus filmes, muito especialmente neste.

O cineasta Mário Peixoto do cultuado e mitológico “Limite” escreveu o romance “O Inútil de Cada Um”. João Cabral de Melo Neto tem os seguintes versos: “Fazer o que seja é inútil./ Não fazer nada é inútil./ Mas entre fazer e não fazer/ mais vale o inútil do fazer”. Com a atitude de um poeta Santiago se propôs “o inútil do fazer” com suas 30000 páginas compilando seus amados nobres e celebridades. Loucura? “Mais louco é quem me diz que não é feliz....”, conforme canta Rita Lee.

Ps1. Atualmente discute-se muito o legado das perversas elites brasileiras (e no adjetivo já está colocada a minha visão...). Mas uma coisa temos de reconhecer: dentre as raríssimas exceções, os grandes cineastas João Moreira Salles e Walter Salles são os melhores frutos desta elite que o Brasil já conheceu nestes 510 anos....Nem tudo está perdido.....

Ps2.Este texto, com correções e acréscimos, foi publicado originalmente no jornal eletrônico Montblãat.

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Nelson Rodrigues de Souza

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