quinta-feira, 15 de julho de 2010

Algumas Observações Suscitadas por “Anticristo” de Lars Von Trier




Importante: Este post contém spoilers, ou seja, detalhes importantes de filmes de Lars Von Trier serão revelados.

1) Lars Von Trier criou Anticristo(2009) como uma forma de exorcismo de seus demônios interiores que o estavam deixando em depressão. Anticristo é assim um filme sobre depressão, luto, dor, arrependimento, amor, morte, com cenas que podem chocar pela sua contundência explícita. Por razões que as armadilhas e encruzilhadas do destino ou então sociais, psicológicas, psicanalíticas,etc. explicam, caí em depressão e síndrome do pânico em três períodos da minha vida. O último ocorreu neste tempo (um ano) em que me mantive afastado do blog, sem ânimo para escrever nenhum post. Praticamente só saia de casa para consultas médicas e terapêuticas, tendo ido muito pouco ao cinema. Uma grande ironia do destino: eu que sempre fui fissurado em cinema e sem falsa modéstia, bastante corajoso para enfrentar muitos filmes fortes, nos meus dois últimos períodos de depressão tomei o maior medo dos filmes. Só de imaginá-los me sentia desconfortável e mal.

A propósito dos 80 anos de Ingmar Bergman o MAM-RJ e o Estação Botafogo 1 promoveram uma grande retrospectiva da obra deste diretor essencial. Era fim de ano e meu trabalho estava mais leve. Assim no espaço de quinze dias assisti a mais de trinta filmes de Bergman ou com roteiros dele (revendo obras e vendo outras inéditas pra mim), sendo que nos momentos de folga lia “Imagens” de Ingmar Bergman, um sensacional livro sobre o processo criativo de um gênio do cinema, publicado pela Martins Fontes. Numa tarde de sábado vi em seguida três obras da fase mais hermética de Bergman: “A Paixão de Ana”, “A Hora do Lobo” e “Vergonha”. Claro que depois de passar por estas experiências não se é mais a mesma pessoa. Se um grande filme nos modifica, nos faz reavaliar a vida e valores, imaginem vários! De Bergman!

Pois nas minhas crises de depressão o que era um grande prazer para mim passou a ser um instrumento de grande medo e tortura. Nas minhas crises fui readquirindo forças paulatinamente para poder, dentre outras atividades, voltar a ver filmes, algo que tanto amo. Nem DVDs em casa eu via. Logo eu que tenho considerável coleção de DVDs por serem vistos e revistos. Atenção para ler livros e revistas também não tinha. Ouvir música me deixava angustiado. Ler jornais nem pensar. Até ver televisão me era penoso. Enfim, perdi muito tempo da minha vida nestes estados de depressão. Claro que tendo condições econômicas (o pobre, coitado, nestas minhas crises, está condenado à loucura e morte) me cerquei de profissionais que julgo competentes e generosos para lidar com meu caso. Nesta última crise (como na anterior), com humildade, me vali da ajuda de cinco profissionais: a saber, um psiquiatra que me receita remédios (alguns de tarja preta) que tomo religiosamente, tendo com ele também conversas terapêuticas; uma terapeuta holística e cromoterapeuta fantástica, um psicanalista junguiano (algo novo pra mim, pois antes fiz análises lacanianas); um médico homeopata unicista que tem por trás de seu trabalho uma sólida formação em filosofia e um urologista pois um dos fatores que causou minha última depressão ( isto me atrevo a revelar) foi a descoberta em tempo de um início de câncer de próstata, o que me obrigou a fazer uma operação para sua retirada, o que acarretou um efeitos colateral com o qual tenho de lidar hoje. Graças a Deus, descobri o mal no ínício, mas vou ter de fazer exames periódicos por um período de cinco anos.

Agora saí da depressão, estou me sentindo muito bem, com bastante energia e pude então ver em DVD o tão polêmico Anticristo de Lars Von Trier, algo que desejava muito ver no cinema, na tela grande, mas não tive coragem em 2009. As crises mostradas no filme estão muito distantes das minhas. Mas alguns pontos em comum existem. Uma pessoa em depressão tende a ampliar as coisas tristes como sendo as maiores tristezas do mundo. Tudo acaba lhe assustando. O pânico toma conta. Em vez de dizer que o copo está meio cheio, neuroticamente acaba vendo só o copo meio vazio. Surge uma inveja muito grande das pessoas que estão bem e produtivas. Tudo se passa como se de certa forma o deprimido se tornasse um tirano. Um tirano que mesmo passando grande parte de seu tempo deitado numa cama, acaba observando o movimento dos outros e até, de certa forma também, fica torcendo para que os que o rodeiam estejam tão mal quanto ele. A imagem que me vem é a de um náufrago que está tendo ajuda e acaba por tentar puxar quem o acode para dentro da água. A idéia difundida de que “o ócio é a oficina do diabo” é a mais pura verdade.

Enfim, fiquem tranqüilos, pois agora estou me sentindo muito bem por ter sobrevivido ( havia momentos em que havia uma sensação de morte iminente, por só enxergava a vida em cores cinzentas e me avizinhava da loucura).

2) Sinopse não convencional detalhada de Anticristo de Lars Von Trier

O filme começa com belíssimo preto e branco em câmera lenta mostrando um casal transando com sexo explícito (Ela: Charlotte Gainsbourg, magistral, Palma de Ouro mais do que merecida em Cannes 2009; Ele: Willen Dafoe, num trabalho admirável). Enquanto isto vemos uma criança que sai de seu berço, derruba soldadinhos no chão e voa pela janela como um pássaro, morrendo na marquise. Corte: passamos para o cortejo fúnebre da criança com os pais arrasados. Ela chega a desmaiar. Corte: já se passou um mês depois da tragédia e ela esteve internada num hospital. Ao chegarem em casa, Ele que é psicanalista, considerando-se a pessoa que mais a conhece, critica a quantidade de remédios que o médico receitou e diz que vai cuidar dela como se fosse um dos seus pacientes. Remédios são jogados no vaso sanitário. Ela passa a ter crises sucessivas. Numa delas chega a ferir a cabeça batendo com força no vaso. Ele procura saber quais são os maiores medos dela. O arrependimento e a culpa que a contagiam têm como uma das razões o fato dela saber que o filho costumava se levantar à noite. Ela que interrompeu uma tese que estava escrevendo sobre o Feminicídio (assassinato de mulheres na História da Humanidade) aponta como medo maior a floresta, em especial a casa que eles lá têm que ironicamente se chama Éden.

Os dois encaminham-se para Éden e a floresta que a rodeia. Ele procura fazer exercícios com ela para que ela aprenda a andar por ali sem medo, mas às vezes ela sai correndo. Diz que o chão a está queimando. Ele diz que quer ter “a coragem de estar na situação que te apavora para ver que o medo não é tão perigoso”. Numa das conversas na casa ela diz que “A Natureza é a Igreja de Satã”. A Natureza passa a soar perigosa. Ele passa a ver signos demoníacos. Ela tem a impressão de que o filho está vivo.Ele lhe apresenta a autópsia do filho, algo que havia escondido dela e consta uma lesão no pé. Tomamos conhecimento de que ela calçava o filho com os sapatos trocados.

Animais surgem na floresta: corvo, servo, lobo. Uma raposa falante surge e fala que o caos reinará. Surgem três mendigos: a dor, o luto e o desespero. Em muitas das crises dela, eles acabam transando convulsivamente. Numa delas, ela machuca o peito dele e ele se torna ainda compreensivo. Mas a loucura vai tomando conta do ambiente. Ele de pênis ereto ejacula sangue. Ela acaba por fazê-lo desacordar e enfia-lhe numa das pernas um esmeril (com a haste) de amolar ferramentas. Com isso no período em que ela saiu, para esconder a ferramenta que usou, ele acorda e com dificuldade se arrasta até a floresta, onde se esconde num buraco. Ela o procura e o encontra. Em um gesto de fúria, o soterra. Ao ver que ele iria morrer, o retira do buraco e o leva à Éden. Lá ela em um dos seus delírios, se auto-mutila, cortando com uma tesoura o clitóris. Fica desacordada.Ele acha a ferramenta para remover a haste de esmeril, sentindo bastante dor. Ela acorda e parte pra cima dele. Ele acaba estrangulando-a na casa e com uma muleta sai pela floresta. Um contingente de pessoas sobe a floresta enquanto ele desce, mancando. Volta na trilha uma ária de ópera que remete ao sagrado, a mesma que pontuou o prólogo do filme.

Enfim esta é uma sinopse possível para este filme altamente instigante, misterioso, com fortes camadas psicanalíticas. Outras diferentes, ressaltando outros aspectos podem ser feitas.

3) Cannes 2009

O filme aturdiu tanto o festival de Cannes 2009 que na entrevista coletiva um jornalista indignado chegou a exigir que Lars explicasse o que quis dizer com seu filme. Lars, imperturbável, disse, com toda razão, que não devia nenhuma explicação. No material que foi distribuído em Cannes o diretor escreveu que convida os espectadores para “uma olhada por trás da cortina, uma olhada no mundo obscuro da minha imaginação”. Se pensarmos bem nenhum autor pode verdadeiramente explicar sua obra (que o diga David Linch...). Cabe às pessoas que a virem/lerem, amando-a, odiando-a ou indiferentes, tirarem suas próprias conclusões. Lars mesmo com toda virulência e contundência de suas obras é um poeta de imagens e sons perturbadores e “ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível” ou então “deixe a meta do poeta fora da disputa, pois ao poeta cabe atingir o inatingível”, conforme Gilberto Gil em uma de suas mais belas canções, uma autêntica teoria da Literetura e por extensão do Cinema também. ”Deixe-a simplesmente metáfora”. O jornalista foi agressivo e mal educado com Lars, algo muito comum hoje em dia para gerar notícias e lucrar com elas.

4) Se atentarmos bem, o psicanalista foi irresponsável. Não foi à toa que vemos uma tragédia em evolução. A psicanálise exige distanciamento entre o paciente e o terapeuta. Ele faltou com a ética profissional ao atrever-se a tratá-la, por mais que a conhecesse. Criticar os remédios receitados também foi uma temeridade. Estes muita falta fizeram a ela.

5) Numa seqüência ela diz que ele se mantinha distante do filho e dela. Ele se defende alegando que ela é que queria ficar sozinha com o filho em Éden para escrever sua tese. Irônica e sugestivamente ela que estudava o feminicíduo acaba por mutilar-se, sentindo prazer na dor. Também quis punir-se por estar transando enquanto o filho morria. Ao mesmo tempo, inconscientemente, queria também matar o filho, calçando-o com os sapatos trocados. Muitas mães sentem o desejo de matar suas crias. Já vi num sinal fechado de uma travessia movimentada e perigosa, aqui no Humaitá-RJ onde moro, uma mulher usar o carrinho de bebê para obrigar os carros a pararem para ela atravessar, apressada. Não podia esperar o sinal abrir como todos nós.

6) Ao atravessar a haste do esmeril na perna dele, ela quis fazê-lo ficar com “todo o peso deste mundo” para que ele compartilhasse com ela sua dor, culpa e arrependimento.O deprimido é um tirano que quer os outros sentindo a sua dor. Ainda pode-se lembrar que no mito de Édipo (“pés inchados”) quando Laios, o pai, descobriu que o filho o mataria e casaria com a mãe Jocasta, fez com que ele fosse levado para floresta, onde furaram-lhe os pés e o amarraram de ponta cabeça em uma árvore para ser devorado pelos animais selvagens. Pastores de Corinto o salvaram e ele foi criado pelos reis desta cidade grega. A fuga do psicanalista ao final, mancando como Édipo, é bem significativa deste mito. Ele também foi um grande transgressor como Édipo, matando a mulher.

7) Ainda que fruto da depressão de um grande artista de obras geniais e comoventes como “Ondas do Destino” (1996), “Dançando no Escuro” (2000), “Dogville” (2003), diferentes formas de como a tentação de fazer o bem até seus últimos limites, pode levar à auto-destruição e deve ser trabalhada ( a protagonista de Dogville, exceção, passa de vítima a algoz), Anticristo é uma obra solidamente construída em que nada é gratuito.O que provoca horror tem suas motivações e pertinências, sendo o filme estruturado em um prólogo, quatro capítulos e um epilogo bem definidos em que evoluem imagens inesquecíveis.

8) Acredito que depois de comparar o relato de minhas depressões com Anticristo, o leitor entenda melhor do porquê este filme me tocou tanto. Curiosamente em minha última crise houve momentos em que eu acreditava sinceramente que iria morrer e assim conseqüentemente iria desencadear muitas perdas. Eu me sentia também um Anticristo..

Domingos de Oliveira já disse certa vez que o mundo enlouqueceu, está doente e que só a arte salva. Eu concordo totalmente. Salvei-me pela arte seja escrevendo ou como espectador e espero continuar assim daqui por diante, não digo totalmente feliz sempre, pois isto é uma quimera, conforme Bergman demonstra no seminal “Gritos e Sussurros” ( sempre alternamos altos e baixos; a felicidade a rigor não existe; o que existe são momentos felizes como quando Agnes está numa paisagem florida numa cadeira de balanço com as irmãs). Estou determinado a degustar a vida, o que resta do tempo.

Lars Von Trier nos deve ainda, dentre outras criações a terceira parte de sua trilogia sobre os Estados Unidos, depois de Dogville e Manderlay. Aguardo com carinho, curiosidade e ansiedade a produção e exibição de Wasington (é assim mesmo). É mais um bom motivo para viver bem até lá, vendo filmes, lendo, escrevendo, conversando com amigos, etc.

A escritora de Von Trier tomou trilhas erradas para sua cura. Mas as pessoas para um mesmo problema acabam tendo sentimentos e reações diferentes. A rigor, não podemos julgá-la nem ao marido por querer ajudá-la de uma forma errônea.

Lars Von Trier nos mostra em suas obras a complexidade, as contradições e ciladas da arte de viver. Viver é muito perigoso, diz Riobaldo em “Grande Sertão:Veredas” de Guimarães Rosa. Mas vale a pena viver. Mesmo num mundo que conspira contra nós.

É melhor parar por aqui.

The End.

Ps. Textos que me ajudaram na construção do post:

http://cinema.uol.com.br/ultnot/2009/08/27/ult26u28833.jhtm

http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/?s=Anticristo

Links das Imagens

http://www.semanacineespiritual.org/crit/anticristo_sanchez_files/Anticristo.jpg

http://ideiasabstratas.files.wordpress.com/2009/09/2009horrormovieantichristphotocall1yxnmt9mvg-l.jpg

http://cheioderaminho.files.wordpress.com/2009/09/antichrist_lars_5-1024x434.jpg

4 comentários:

  1. Sensacional o texto. Muito obrigado por se abrir desse modo e contar um pouco de sua experiência. Eu tive o prazer de ver no cinema e comprei o dvd, porém ainda não consegui ver, por conta de tempo e por conta de não saber como será dessa segunda vez.
    Muitas idéias são possíveis após ver esse filme do Trier.
    Ainda criarei coragem. No blog que escrevo com meus amigos já escrevemso sobre ele e não foi possível uma conclusão sobre o que significa - talvez chegue à conclusão que não significa absolutamente nada.

    Até mais

    Vitor Stefano
    Sessões

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  2. Trabalhar com você foi e é Fantástico.... é ver os matizes.... a luminosidade... que vem da Alma, principalmente, quando mesmo no escuro, se pode vislumbrar a mais poderosa Luz que é, sem dúvida, o Amor...mesmo quando a dor era imensa "A Luz dos seus Olhos" nunca deixou de mostra-la...de refleti-la...adorei seu texto.

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  3. É ótimo tê-lo de volta, Nelson, com a sua lucidez e olhar sensível. A experiência de assistir a Anticristo após uma crise de depressão deve ter sido realmente muito forte. Também gosto muito do filme e transcrevo um breve comentário que fiz quando o assisti: "... não consigo resistir à assinatura Lars Von Trier. Ele está sempre espantando o marasmo e nos convidando a pensar. Lastimo por aqueles que ficaram na superfície e tacharam a obra de misógina, irresponsável etc. e tal. Von Trier não tem medo de exacerbar as feridas até o limite inimaginável da dor, para mostrar como o ser humano pode se tornar irreconhecível a si mesmo quando vitimado pelo sofrimento, medo, culpa e incompreensão. Feminino/sensibilidade/água versus masculino/racionalismo/fogo. O Prólogo e o Epílogo já valem a ida ao cinema – sublimes! Mas, a experiência só se completa se passarmos pelo martírio do Éden. A ária de Handel praticamente resume tudo: “Deixe-me chorar pelo meu destino cruel ... que a dor possa romper os laços da minha angústia”. Se uma mãe não pode chorar a perda do filho, o caos reina (melhor dizendo: o caos chove-chora fazendo brotar o sobre-natural). E em vez de três reis aparecerem celebrando o nascimento do salvador, chegam os três mendigos anunciando que tudo está perdido e a morte é inevitável. Eros e Tânatos em duelo nos jardins do Éden... pulsão sexual e pulsão de morte levadas ao extremo. Bela a cena em que Ela está deitada semi-nua, cercada por três animais (alguma relação às avessas com os evangelistas?). Que cada um tire as suas conclusões, mergulhando bem fundo no seu próprio inconsciente até o ponto em que ele se funda com o inconsciente coletivo. Difícil e inesquecível."
    Gina

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  4. Excelente texto. Entrei apenas para ler o que acontece no final do filme (já que o meu DVD decidiu me atrapalhar logo "nos finalmente") e fiquei surpresa com o texto. Ler o texto foi de grande valia pra mim. Muita coisa eu podia até entender (com os sentimentos, sensações, reconhecimentos), mas expressar, conseguir falar do que foi visto era um dilúvio. Seu texto foi muito elucidativo, nossa, você escreve muito bem!

    É isso, parabéns.

    Elen

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