sábado, 7 de março de 2009

"O Belo e as Feras"- Um Conto Homenagem a Visconti a moda brasileira




O Belo e as Feras

Quem diria que aquele quadro hiper-famoso que o industrial aposentado Visconti arrematou num audacioso lance há alguns anos num célebre leilão pudesse lhe trazer tais contratempos? No começo daquela tarde memorável de quinta-feira, ele não poderia supor que na sua preciosa pinacoteca particular, surgisse inesperadamente, sem pedir licença, um inefável e invulgar amante das artes, mascarado como um Robin-Hood moderno e mecenas, apontando um revólver, um tanto trêmulo, delicadamente ameaçador:

- Se o senhor se comportar direitinho conforme eu lhe ditar, nem mesmo o seu abominável cachorro que está desfalecido lá fora com o dardo que lhe lancei, sofrerá o menor arranhão...

- O que o senhor deseja de mim?

- Eu não sou o que o senhor está pensando. O que me traz aqui é um sentimento de nobreza, coisa que o senhor me parece não ter, apesar de todo o dinheiro!

- Mas o que é então?

- Eu vim para que o senhor possa se redimir do seu nefando egoísmo...

- Como assim?

- O senhor nesta tarde ensolarada de quinta-feira vai cometer uma ação desprendida, extraordinária: vai doar este “Luz nas Trevas” de Bertold Fricht, este que está deslocadamente pendurado aí nesta profana parede para o Museu do Estado!

- O senhor está louco! É o meu quadro mais belo!

- O mais belo ou o mais valioso, Comendador?

- É o mais valioso porque é o mais belo!

- Pois então, com o seu generoso gesto, todos poderão apreciar este belo e valioso quadro junto ao acervo do Museu do Estado!

- O senhor pode levar qualquer outro quadro, menos este!

- O senhor não está entendendo direito Sir, eu não vou levar nada, nem este nem outro quadro. Estou aqui em missão de paz. O senhor vai telefonar ao Museu, dará a notícia da doação e um funcionário aqui virá, acompanhado de um escrivão juramentado para realizar a transferência. O pessoal do Museu é suficientemente graúdo para desatravancar a burocracia e tudo ser feito com o máximo de prontidão hoje à tarde mesmo. E eu estarei atrás desta cortina ali lhe apontando a arma para que o senhor não me apronte nenhuma!... Ah! Sim!Quero que faça constar de modo bem explícito que o senhor de modo algum está sendo coagido a tal atitude. Quero que fique bem claro que são os imperativos da consciência que o movem a tal arroubo magnânimo. O senhor vai ditar o texto por telefone, eles virão com tudo pronto e bastará ao senhor assinar!

- Eu nunca conheci alguém tão petulante!

- Petulante não meu senhor! Altruísta! Estou aqui defendendo uma causa nobre!

- Que nobreza é essa que se respalda no cano de um revólver?

- O revólver é apenas em instrumento, uma ferramenta para podermos construir um mundo mais justo!

- Que justiça é essa que se escora na violência?

- É só o senhor se comportar direitinho que não haverá nenhuma violência!

- Como não? Já está havendo! Há um bom tempo o senhor vem me torturando psicologicamente, quer me constranger a entregar algo que até já faz parte de mim! Onde está a sua sensibilidade? O senhor não deve sentir nada diante deste quadro!

- Olha aqui Comendador, este é um momento necessário de endurecimento da minha parte. Mas se eu tivesse perdido a sensibilidade, a ternura, o senhor acha que eu estava aqui tendo toda essa paciência? Se fosse outro já teria dado mostras do que é capaz! Mas se essa linguagem que estou usando o senhor não entende, eu posso começar a endurecer mais um pouquinho. Eu tenho a consciência tranqüila: eu não estou aqui em causa própria. Eu gostaria que as consciências despertassem por si mesmo, mas como tal não acontece, a gente precisa acender uma centelhazinha.

- O senhor não teria a audácia de praticar nenhuma violência comigo!... Afinal pelo menos temos alguma coisa em comum: a fixação neste quadro. Eu não acredito que o senhor seja capaz de matar-me!

Lembre-se Sir, que Van Gogh desesperado, dentre outras amarguras, por se sentir abandonado por Gauguin, cortou a orelha! Só que eu não tenho a generosidade, loucura e gênio do mestre! A agressão no meu caso dirigir-se-á à fonte do meu incômodo!

- O senhor está blefando!

- Então o senhor paga para ver?

O cavalheiro mascarado aproximou-se de Visconti, com o revólver apontado em uma das têmporas dele, o olhar fulminante!

- O senhor está louco!

- Que seja! Que o furor e loucura criativa de todos os grandes mestres me possuam agora!

- Está bem! O senhor venceu! Mas saiba que o senhor é indigno da beleza! O senhor jamais poderá contemplar algo belo, de um quadro a um ente amado, sem que isto não lhe cause repulsa, sem que os seus olhos não se sintam queimados, não vertam sangue!

- O senhor vem me falar de beleza! Com toda esta soberba e egoísmo, esse elitismo crônico, esse horror e desprezo pelas pessoas comuns, essa desconsideração toda para os que vivem fora dessa redoma, vivendo junto a essa corriola fútil, interesseira e novidadeira que o cerca! Esses especialistas de primeira-viagem, esses levianos e dissimulados hedonistas que só sabem o que é ter suor no rosto quando se estendem pachorrentamente na beira de suas piscinas! Esses pseudos-amantes da Arte que amam isto sim, os valores em dólares e euros associados a essas telas! Mas tudo bem! Diga o que quiser, mas cumpra o que lhe determinei. Eu já estou a ponto de perder a classe e me igualar aos seus!

- O que determina realmente a classe de uma pessoa são as concessões que ela faz à violência!

- O senhor fala como se todos esses seus bens lhe houvessem caído como uma dádiva dos céus! O senhor não me engana! Por trás de cada souvenir, bibelozinho desta pinacoteca (os quadros para o senhor não passam de eloqüentes souvenires...), por trás de cada pecinha deste masturbatório museu particular, existe uma cadeia de insensibilidades atrelada, pequenas e grandes omissões, simples e complexas violências. Violências que podem até ser não ser sanguinárias, mas sem nenhuma grandeza!

- Vamos acabar logo com isso! O cavalheiro já passou dos limites! Eu nunca fui tão insultado! E ainda na minha própria mansão! Vamos, seu sórdido vândalo, o que eu preciso fazer para ver-me livre da sua ignóbil presença?

E tudo transcorreu conforme o cavalheiro mascarado havia previsto. O diretor comercial do Museu do Estado compareceu com a máxima presteza e estava tão eufórico que não deu maior importância a algumas piscadelas que o senhor Visconti lhe lançava. Eu mesmo, confesso, estava emocionado, com receio de me fazer notar. Afinal tudo acabava da melhor maneira possível, sem sangue e violência maior.

Levei um grande susto quando com tantas cortinas na pinacoteca o cavalheiro mascarado quase que se dirigiu a onde eu estava escondido já há algum tempo. Quando ouvi o latido do cão, abandonei o repouso merecido depois de uma noite inteira como guarda-noturno da mansão e me deparei com esse quadro: meu patrão sendo encurralado por um mascarado! Eu estava preparando o melhor momento para agir, mas a ousadia e o inusitado das razões que moviam esse homem foram suficientes para deixar-me alerta, mas irresistivelmente fascinado, estupefato e por que não, ouso dizer agora, um pouco vingado!

Pena que a minha admiração pela coragem, destreza e determinação daquele homem mascarado tenha se esmorecido logo depois. Foi só o escrivão se retirar, o diretor do Museu apossou-se da tela, despediu-se sorridente, agradeceu a doação seguidas vezes e saiu. O Robin-Hood das Artes saiu do seu esconderijo e lançou ainda algumas ironias a mais ao patrão, à guisa de encerramento ( “saiba que agora, graças à sua bondade, todos terão direito de contemplar essa obra-prima universal , “Luz nas Trevas”!).Foi-se logo em seguida, não sem antes lançar um novo dardo no cachorro já acordado e delicadamente pedir ao patrão que depois de uma tarde tão atropelada por emoções fortes, tomasse um calmante ligeiro, espontaneamente...“Fará bem aos seus nervos!”

Sorrateiramente, segui-lhe os passos e minha vontade foi atirar nos pneus quando o vi entrar no carro do diretor comercial do Museu que o esperava uma rua adiante. Contive-me e apenas guardei o número da chapa branca e a fisionomia marcante do ex-mascarado: cabelos negros levemente encaracolados, os olhos perturbados por olheiras, as maçãs do rosto brancas e carnudas, o sorriso metálico próprio dos dentes excessivamente obturados. Meus compromissos com o patrão são à noite e um tanto pela manhã. Aproveitei o resto da tarde bebendo cerveja na esquina e filosofando sobre o acontecido.

Eu fiquei mais tranqüilo quando já no dia seguinte os jornais todos noticiaram a doação. Foram incontáveis os repórteres que tive de despachar no dia seguinte, pois o patrão não queria receber ninguém. Nada teria a declarar. Teve vontade de assim agir e ponto final. O que me surpreendeu foi que quando os amigos, parentes e filhos chegaram à mansão deste homem que sempre quis viver só, depararam-se com o patrão imperturbável, não querendo recebê-los, quanto mais discutir o assunto. Disse que estava numa fase de crise espiritual, que só se sentia bem junto às lembranças da falecida esposa e que respeitassem o seu desejo de solidão.

A mansão permaneceu vazia, com exceção dos criados, até que quinze dias depois voltou o diretor comercial do Museu, em ponto de bala, o dedo em riste, acusando o patrão:

- O quadro que o senhor nos doou é falso! Peritos examinaram, a imitação é quase idêntica ao original com exceção de alguns pequeninos detalhes grosseiros só percebidos por especialistas! Como o senhor teve coragem de comprometer o nome do nosso Museu assim! A cidade inteira está indo visitá-lo!

- Eu não sabia! Isso pra mim é uma autêntica surpresa! Eu o arrematei no leilão em Berlim a peso de ouro! Eu tenho todos os documentos!

O diretor pediu-lhe então o mais estrito silêncio porque caso contrário o nome de ambos seria maculado pela imprensa sensacionalista. Os peritos do Museu agilizariam uma investigação sigilosa mais aprofundada para descobrirem o real paradeiro do quadro original. Enquanto isto o quadro falso seria exposto sem alarde.

Se eu sei desses detalhes todos e outros mais, é porque o patrão quando já mais idoso ainda, desprestigiado, tornou-me seu confidente. Eu realmente senti o quanto sua sublimada amizade para comigo era forte, quando me contou um segredo que só ousou revelar a alguns raros e selecionados amigos e à sua filha mais ou menos dileta: ele tinha guardado num de seus inúmeros cofres espalhados na cidade, o quadro original: durante esses anos todos ele tinha exposto no seu acervo um quadro falso que tinha comprado, em suas andanças na Europa, de um falsário genial. Sua obsessão com este quadro era tanta que não tinha coragem de expô-lo livremente. Os admiradores que curtissem este tempo todo esta cópia eficiente que arranjara!

As reações dos amigos e da filha, de tão próximas pareciam combinadas: lançavam piscadelas uns aos outros como se insinuassem: “Perdoai esse velho senil que ele não sabe mais o que diz!”. Como ele se recusava terminantemente a mostrar-lhes o quadro original, o tinham por um velho ardiloso que criara um álibi para a dor e o desatino sofrido com o ladrão. Tudo que disse teria sido um mito que criara.

Realmente, não é fácil entender uma pessoa que obsessivamente preparou o legado desse bem supremo – a contemplação de uma grande obra – para apenas depois da sua morte. Pelo menos, era essa a sua intenção, segundo declarou a mim e às pessoas, incrédulas, mais chegadas. Mas havia mudado de idéia, o que confidenciou só a mim:

- O mundo anda tão falso hoje em dia que ele, realmente, só é digno daquele quadro que está lá no Museu! O verdadeiro irá é para onde eu for. Eu não acredito em mais ninguém. A não ser em você, meu fiel companheiro! O Criador de todas as obras-primas deste mundo irá me compreender e perdoar. Breve irei beijar a sua paleta de pincéis com as mais belas cores. Guarde bem este papel. Aqui tem o Banco, o número do cofre grande que aluguei e a combinação do segredo. Para os outros eu darei um endereço falso. Eu quero que você queime o quadro, espalhe as cinzas do “Luz nas Trevas” no jardim da mansão, poucos dias depois de espalharem as minhas. Não vá me decepcionar, eu confio em você!

Para mostrar-lhe como era digno das suas confidências, eu quase lhe contei o que sabia do audacioso mascarado. Mas tive medo de que ele não confiasse mais em mim se soubesse que eu poderia ter evitado tudo e me omiti.

O venerável senhor Visconti morreu sem saber que o desprendido ladrão mascarado, conforme investiguei, já não é mais um modesto funcionário do Museu. Hoje ele é o atual diretor-comercial do Museu Estadual. O anterior exerce o mesmo cargo, agora no Museu da República de Alecrim.

As cinzas do patrão já foram espalhadas no jardim há três dias e eu estou com esse quadro nas mãos sem saber ainda o que fazer! Ele pode representar um grande salto de qualidade de vida pra mim!....Reparando bem: um quadro sombrio? Será que há mesmo luz nestas trevas? Posso pelo menos iluminar a minha vida....

Nelson Rodrigues de Souza




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