domingo, 8 de março de 2009

A Astúcia Maior do Demônio em nos Fazer Crer Que Ele Não Existe


Em 1974 eclodiu nos EUA o escândalo Watergate, onde no Edifício do mesmo nome em Washington, na sede do Comitê Nacional do Partido Democrata, ex-agentes da CIA, numa invasão mal-sucedida, tentaram fazer espionagens, obter documentos, para depois comprometer democratas. Richard Nixon foi o mentor desta gravíssima transgressão e tentou desobstruir na justiça o julgamento dos responsáveis. Curiosamente não queimou fitas que o incriminavam. O caso foi mais aprofundado pelos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein (vividos por Robert Redford e Dustin Hoffman no eletrizante “Todos os Homens do Presidente” de Alan Pakula) que contaram com um informante fundamental, Garganta Profunda, de identidade só há pouco tempo revelada (era um ex-membro do FBI). Nixon renunciou sem assumir a culpa para não sofrer impeachment e acabou por ser perdoado/anistiado pelo próximo presidente Gerald Ford, o que fez que não sofresse merecido processo na Justiça americana. Durante três anos Nixon se isolou e não deu entrevistas.

Em “Frost/Nixon” (EUA/2008) de Ron Roward, capta-se o momento em que em 1977 o apresentador de televisão inglês David Frost ( Michael Sheen, o Tony Blair de “A Rainha” de Stephen Frears), que estava no limbo fazendo programas vulgares na Austrália, tem uma idéia que lhe ressoa como salvífica na profissão em decadência e de fato é: entrevistar Nixon ( Frank Langella) e obter dele as confissões públicas que não fez em relação ao caso Watergate.

Frost usa seu próprio dinheiro e de alguns poucos patrocinadores, passa a ter como assessores Bob (Oliver Platt) e James Reston Jr.(Sam Rockweel ), este mais impulsivo pois fica encantado com a idéia de fazer Nixon ter o julgamento que nunca recebeu. O plano do grupo é gravar horas de entrevistas, obter confissões definitivas para depois vender para transmissão em várias redes, que de início não quiseram se envolver com esta epopéia particular.

Nixon acata a sugestão de um assessor e aceita a oferta de Frost para as entrevistas, pois além da oportunidade de ganhar 600 mil dólares mais 10% dos lucros de transmissão, terá sua grande chance de reconstruir sua imagem junto ao publico americano. Jack (Kevin Bacon) é o assessor que melhor cuida de Nixon no plano tático, chegando até a um gesto extremo na defesa do patrão. Quatro entrevistas são realizadas com altos e baixos, como se fossem uma luta de boxe, onde volta e meia Frost e Nixon recorrem aos seus assessores para melhor redimensionarem as suas estratégias. O que está em jogo mais do que tudo, como em muitos casos da sociedade americana, é um circo midiático. Mais do que a verdade procura-se o que mais aparenta ser a verdade e aí o bom filme que é “Frost/Nixon” começa a mostrar suas limitações que não permitem que ele atinja um patamar de grandeza.

O que o filme tem de melhor em sua estrutura é o jogo dramático simples, mas forte, esboçado: Nixon quer limpar seu nome da História da podridão política americana; se Nixon conseguir o feito, a carreira de Frost, já declinante, redundará num desastre até mesmo pelo fato de que há dinheiro dele investido no projeto.

Frank Langella tem um desempenho extraordinário, pois mesmo não sendo nada parecido com o Nixon real, se vale de pequenos gestos, modulações sibilinas de voz e contrações expressivas no rosto para sugerir o presidente. O roteirista do filme Peter Morgan adaptou para o cinema sua peça de sucesso de mesmo nome e com os mesmos atores. A questão é que se Peter é bom roteirista como também vimos em “A Rainha” (sobre a relação da Rainha Elizabeth com Tony Blair e suas reações no período que sucede à morte de Lady Di, sua desafeta, por seus despojamentos sociais) e “O Último Rei da Escócia” de Kevin Macdonald (um episódio da vida de Idi Amin Dada em Uganda, quando se enternece por um jovem branco médico escocês, mas depois mostra suas garras), não é um roteirista que saia do campo da boa competência para ser brilhante. E isto acaba se refletindo nos resultados.

Nixon derrota Frost nos primeiros “rounds”, mas bêbado faz uma ligação para Frost onde mostra toda sua fragilidade ( algo que aconteceu segundo o autor mas no filme é inserido com as manhas necessárias da ficção; aqui nenhum problema). Assim, encurralado, Nixon admite que tentou obstruir a Justiça, que sabia e autorizou as invasões do Partido Democrata e se sai com uma grande pérola “Estou dizendo que quando o presidente faz não é ilegal”. Nixon que para “consumo de massa ligeira” havia se saído bem ao justificar a invasão do Cambodja e a necessidade do aprofundamento da herança maldita que era a Guerra do Vietnã ( herança maldita?..Já ouvimos isto em outro país,não?), quanto ao caso Watergate confirma suas responsabilidades. Mas num resumo da ópera: o que se vê é um homem mostrando seu lado humano demasiadamente humano, sem cinismo. Observam-se fraquezas fortes onde haveria uma arrogância poderosa e grande desvio de caráter mais entranhados. Inácio Aráujo de quem discordo veementemente de sua crítica feroz a “Quem Quer Ser Um Milinionário?”, vai com precisão ao calcanhar de Aquiles do filme em sua crítica na Folha de São Paulo de sexta-feira, 6 de março : Nixon nos é mostrado como uma pessoa simpática, o que pelo que sei/acompanhei está longe de ser verdade.
Há ainda uma questão bastante inquietante a ser ressaltada: se Nixon no caso Watergate foi capaz de tanta patifaria, o que foi descoberto, o que não poderia haver de tão grave ou mais ainda que não chegou à tona, por falta de pertinácia da imprensa? Não é toda hora que temos jornalistas do calibre de Woodward e Bernstein em ação investigativa paciente e meticulosa.

Em “A Rainha” mesmo com as brilhantes atuações e direção de Frears tudo era construído para que todos acabassem por fim ficando bem na foto. Helen Mirren ( Elizabeth) e Frank Langella( Nixon) estão soberbos mas os filmes em que trabalham seriam realmente admiráveis se fossem obras estritamente de ficção. Escudados na História que são, mesmo com todas as liberdades que a ficção deve se permitir, acabam por resultar em filmes longe de serem chapa-branca mas também de apresentar uma verdade humana contraditória mais conseqüente. Forest Whitaker constrói em “O Último Rei da Escócia” um Idi Amin Dada pleno em sua monstruosidade por mais que sua fachada humana e descontraída chegue aqui e ali a ser insinuada. Pena que o filme se perca um tanto em lances rocambolescos de aventura no final e na ingenuidade excessiva do médico.

Um dos supra-sumos de grandes filmes com personagens históricos captados em momentos de intimidade e humanismo é “A Queda-Os Últimos Dias de Hitler”( Alemanha/2004) de Oliver Hirschbiegel, onde temos um Bruno Ganz em estado de graça, mostrando-nos todo o horror e monstruosidade de um Hitler que mesmo nos estertores do regime nazista, quer a todo custo manter sua falida máquina de guerra funcionando, custe o que custar, sem nenhuma preocupação nem com a integridade de seus comandados. Mas espantosamente há também um patético humano que é bem captado.

Charles Baudelaire numa de suas boutades definitivas escreveu que “A maior astúcia do demônio está em nos fazer crer que ele não existe”. Encaremos a palavra demônio metaforicamente. Os processos de roteiro de Peter Morgan tanto em “Frost/Nixon” como em “A Rainha” aliados às inegáveis grandes interpretações de Langella e Mirren escondem o rabo de “demônios históricos”. Nixon e Elizabeth são “demônios, cada um ao seu modo, que nos passam a impressão de não existirem. O que existiria seriam fortes imperfeições humanas. Claro que este processo de suavização é mais forte em “Frost/Nixon”, onde a simpatia e quase ternura que Nixon acaba nos inspirando tem razoável distância do cinismo, oportunismo, gravidade e brutal falta de honestidade de um presidente que, por ironia da História, depois que surge um George W. Bush, relativamente, passa a ser apenas uma criança travessa... Em “A Rainha” acabamos por ter simpatia pela rainha e Tony Blair, quando não é difícil imaginar que na chamada “vida real” há muitas misérias e mesquinharias escondidas debaixo do tapete que não vem à tona.

“Frost/Nixon” concorreu a cinco Oscars (filme, diretor, ator, roteiro adaptado e montagem). Por mais magnífico que esteja Langella, seu trabalho não supera o de Seann Penn em “Milk-A Voz da Igualdade” nem o de Mickey Rourke em “O Lutador”. Nos demais quesitos o filme é bom mas nada superlativo. O diretor Ron Roward assinou trabalhos bons e competentes como “Appolo 13- Do Desastre ao Triunfo”(1995), “Uma Mente Brilhante”( 2001/ que recebeu o Oscar de melhor filme) e “A Luta pela Esperança”(2005). São todos filmes respeitáveis e bons mas que “não ultrapassam a barreira do som” para se tornarem grandiosos. É o caso também deste fascinante, envolvente, bem realizado e recomendável sem entusiasmo considerável, “Frost/Nixon”, que com justiça não recebeu nenhum Oscar e com exceção do desempenho de Langella deveria ter cedido suas indicações para os extraordinários “A Troca” de Clint Eastwood ou “Foi Apenas Um Sonho” de Sam Mendes. Neste último temos um subestimado grande trabalho de Leonardo Di Caprio como um homem que foge da mediocridade para cair na tragédia, que a rigor também rivaliza com o de Langella.

As mulheres em “Frost/Nixon” são apenas esboços e pano de fundo para um mundo dos homens. Rebecca Hall (excelente em “Vick Cristina Barcelona”) aqui está apagada e é uma mera sombra como a namorada de Frost. Patty McCormack (Pat Nixon) se limita a uma mera figuração cosmética.

Um filme que merece ser visto/revisto/descoberto é “Nixon” (EUA/1995) de Oliver Stone com trabalhos notáveis de Anthony Hopkins (Nixon) e Joan Allen ( Pat). Numa entrevista bem rápida, com uma multidão de repórteres ansiosos que cercam o presidente, uma jornalista capta Nixon mencionar estar comandando uma superestrutura, um monstro sobre o qual não tem controle. Isto é mais assustador e revelador do que o que nos mostra “Frost/Nixon”. A estigmatização de Oliver Stone na mídia pelas suas visões audaciosas e ambição de seus projetos, nos impede de lhe dar o devido valor, mesmo com suas falhas. Seu “JFK-A Pergunta que Não Quer Calar” levanta questões bastante pertinentes que a sociedade americana e outros rincões não querem encarar. É de uma pulsação cinematográfica extraordinária. O fracasso de “W.” (EUA/2008), sobre a vida de Bush filho, seu último filme, pode ser mais um sintoma da má vontade midiática do que de falta de qualidade. É uma obra, que apesar de ter passado em branco no circuito americano merece ser exibida no Brasil para conferirmos por nossa conta e risco.

Nelson Rodrigues de Souza

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