quarta-feira, 11 de março de 2009

Mas Não Se Matam Cavalos?




Algumas pessoas que lêem minhas postagens, muitas com ênfase em questões sociais, econômicas e políticas, podem imaginar que eu tenha uma formação marxista. Nada mais enganoso. De Karl Marx li apenas o “Manifesto do Partido Comunista”, “Karl Marx - O Apanhador de Sinais - Col. Encanto Radical” de Horacio Gonzalez da Editora Brasiliense e me detive mais pontualmente em meus volumes de “O Capital” para entender melhor o conceito de mais-valia e o de fetichismo da mercadoria. Estou até hoje aguardando a oportunidade de formar um grupo para aí sim me deter no estudo meticuloso desta obra “capital”, como li que aconteceu com Florestan Fernandes e discípulos nos tempos da ditadura militar.

Assim o que chegou até a mim de Marx, mais do que estas pequenas leituras foi o contato com textos de várias personalidades do mundo intelectual direta ou indiretamente influenciadas por ele, como Emir Sader, por exemplo. Bastante importantes foram os cineastas com ecos do marxismo como Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Ettore Scola, Giulio Pontecorvo, Miguel Littin, Elio Petri, Glauber Rocha e outros, em que cujas obras aí sim mergulhei. Mas estes artistas, além de estarem tomados por uma visão bastante poética do mundo ( o que fazem muito bem), têm muitas obras em que o foco passa a transcender a questão social, econômica e tocam aspectos fundamentais da condição humana. Em suma, rotulá-los como cineastas marxistas é bastante redutor, para todos eles.

Nasci em 1954. Não carrego em mim o pecado de ter apoiado os regimes totalitários de esquerda, seja Cuba, Rússia, Leste Europeu, etc. Quando a Revolução Cubana aconteceu era uma criança preocupada em fazer pequenas estradas no terreno de barro vermelho da casa onde morava para brincar com meus carrinhos. Quando surgiu o relatório Krushev em 1956 dando conta dos grandes crimes do stalinismo, o que provocou grande celeuma e desilusões em muitos comunistas de carteirinha, eu tinha apenas dois anos. Logo não me sinto carregando nenhuma culpa intelectual por adesão a regimes totalitários e muitas vezes assassinos, mesmo que temporariamente.

Quando li “Antes que Anoiteça” de Reinaldo Arenas sobre as condições de vida terríveis dos homossexuais em Cuba, sobre as perseguições horríveis que ele sofreu, tendo que se esconder num parque de dia para poder escrever antes que anoitecesse e este escritor memorialista teve ainda que contar suas histórias (agora em Nova York, doente de Aids, desiludido com a América, onde ganhou a vida como porteiro), antes que a vida anoiteça também....Quando li esta obra essencial de alguém que de início apoiou a Revolução, nunca mais enxerguei Cuba com os mesmos olhos de antes, que já não eram tão admiradores assim, pois nunca suportei a idéia de saber que Fidel e Che fuzilaram os vencidos em paredões. Acredito que a Revolução necessária e vitoriosa, começou a apodrecer nestes eventos iniciais.

A via-crúcis de Reinado Arenas para publicar seus livros no exterior e fugir de Cuba são momentos da Literatura que não se esquece jamais. Há um filme de Julian Schnabel, “Antes do Anoitecer”, com Javier Bardem como Reinaldo. O filme é muito bom, apesar de algumas confusões misturando línguas e de não explorar várias situações explosivas do livro em que se baseou, como um exílio do qual Reinaldo participou em uma embaixada e não conseguiu nenhuma ajuda de Gabriel Garcia Marquez, amigo de Fidel. Ao resenhar o livro de Arenas no Estado de São Paulo, o escritor e crítico José Castelo escreveu que não deixaria de apreciar a obra de Garcia. Mas o homem Garcia ele não conseguiria mais enxergar com os mesmo olhos de antes.

Mas mesmo com todo este caldo cultural e histórico já conhecido, não consigo deixar de ansiar por uma sociedade com um socialismo construído em bases sólidas em que Liberdade, Igualdade e Fraternidade (este é o item das conquistas da Revolução Francesa mais espezinhado no mundo contemporâneo...). Assim, ainda acredito que o Estado deve interferir e gerir áreas estratégicas da economia, com grande qualidade, como Saúde, Educação, Cultura, Habitação, alguns Bancos chaves e outras áreas prioritárias que cabe a cada país, numa análise aprofundada de seus recursos, definir e defender, como Chaves faz com o petróleo na Venezuela, o Chile fazia com o cobre, como a Vale do Rio Doce e a CSN no Brasil , antes da privataria....

Isto não impede que a iniciativa privada faça complementações destas áreas num nível mais elevado ou não atendido e que ela tenha várias outras atividades econômicas para explorar, além das que que foram citadas. Exemplo: não vejo como obrigação do Estado produzir eletrodomésticos, celulares, móveis, grampeadores, maçanetas, etc...Enfim, uma vez satisfeitas com grande dignidade necessidades básicas, ainda sobra muitas áreas para a iniciativa privada atuar. Não há, portanto, por que advogar um Estado mínimo, demonizar o Estado como mau administrador indiscriminada e irremediavelmente.

Nunca acreditei no sistema capitalista como promotor de bem estar social, em nenhuma de suas versões: selvagem, neoliberalismo, mundo globalizado, “soft “. Um filme foi decisivo e formador para tal insight definitivo que já estava se construindo em mim. Quando vi “A Noite dos Desesperados” (EUA/ 1969) de Sidney Pollack, aos quinze/dezesseis anos foi como se tivesse visto um cometa raiando o céu, mas ameaçando cair na minha cabeça. Fiquei transtornado e num êxtase conflituoso, com as extraordinárias interpretações (a de Jane Fonda /Glória principalmente), a beleza que Pollack conseguiu extrair de todo aquele horror, a sintonia que via naquele filme com a visão de mundo que tendia a construir, dentre outros aspectos.

Em “A Noite dos Desesperados”, já de início sabemos que Robert (Michael Sarrazin), parceiro de Gloria numa das maratonas de dança nos anos trinta, na Era da Depressão Econômica, a matou. Entenderemos depois que foi a pedido dela, pois fragilizada ainda mais do que quando entrou na disputa, ela não suportou mais os dias e noites que passaram dançando exauridos completamente, tanto espiritual como fisicamente, com grande grau de humilhação. Afinal quando os cavalos estão imprestáveis eles não devem ser sacrificados? O romance em que o filme se baseou é de Horace McCoy, “They Shoot Horses, Don’t They?”. O livro foi lançado no Brasil com a tradução correta “Mas Não se Matam Cavalos” e é encontrado no Brasil pela LPM Pocket.

Robert é preso e em flashbacks vamos acompanhando todo o horror da Maratona animada por Rocky (Gig Young), com seu sadismo travestido de mestre da comunicabilidade, papel que lhe deu o Oscar de melhor ator coadjuvante, algo que não remediou a injustiça com relação à Jane Fonda, aqui no seu mais luminoso e brilhante papel no cinema.

Dentre os maratonistas da resistência, (algo que havia há anos atrás no Brasil na época do Carnaval com foliões esbaforidos e exaustos, num programa cruelmente televisionado, mas ainda longe dos horrores que vemos no filme) sob um globo enorme e de brilho duvidoso que contrasta com tanto sofrimento, há até uma mulher grávida, Alice ( Susannah York). Uma sirene estridente toca num certo período e os maratonistas podem ir num tempo bastante reduzido tomar banho, água, etc. Na maratona, muitos ficam pelo meio do caminho, exaustos, sem mais nenhuma força para continuar. Alguns desmaiam. A câmera lenta que flagra os casais acentua a solidão e o desespero, os rostos suados e angustiados. Com poucos casais restantes em busca de um grande prêmio que lhes traga redenção na vida, ainda ouvimos o diabólico mestre de cerimônias ironizar: ”Quanto tempo mais ainda eles vão agüentar?”

“A Noite dos Desesperados” é um extraordinário filme formador de meu patrimônio afetivo e intelectual. Nunca consegui ver o filme como simplesmente um retrato de uma época de grandes agruras que foi a Depressão de 29. Ele não deixa de se comprometer com esta vertente. Mas vai muito além: o que vemos ali retratado é o próprio sistema capitalista como um todo. Agora que esta crise atual coloca este sistema econômico, em xeque novamente, este filme premonitório se torna ainda mais essencial, atual e urgente. O filme é um microcosmo de uma sociedade mais ampla onde os valores humanos se dissiparam, onde o dinheiro/moeda (uma invenção benigna para que não tivéssemos mais que trocar dúzias de ovos por vacas na época do escambo), na História Econômica contraiu câncer e hoje, doente, afeta a todos nós e aquilo que deveria ser um meio passou a ser aquilo que dá sentido aos movimentos da vida. “Eu consumo, logo existo”.

Algo análogo se deu com “O Poderoso Chefão” de Francis Ford Coppola. A visão da máfia italiana nos EUA está no filme, mas tem-se por tabela uma ótica que também reflete o mundo dos negócios dos executivos no sistema capitalista, sempre dispostos a sacrificar, seja colegas ou funcionários, a própria moral, qualquer sentimento ético mais nobre, tudo em nome de negócios imperiosos que surgem quando se quer vencer concorrentes ferozes.

Através de amigos recebo notícias aterradoras dos EUA que os jornais têm escamoteado: há muitos casos de suicídio e se conjetura até em relação a uma família básica (pais e filhos) em que todos se mataram. Vivemos uma grande tragédia social, política e econômica. Sem querer bancar o profeta do apocalipse cabe aqui a pergunta do animador Rock, mas sem ironia: “Quanto tempo ainda mais nós vamos agüentar?” Simplesmente vamos dançar conforme a música que tocarem? Não seria o caso de rever todas as partituras, os compassos, as melodias, as orquestras e os maestros?

Nelson Rodrigues de Souza

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