sábado, 28 de março de 2009

Mamãe Patroa- Um Conto


Mamãe Patroa


Crie corvos e eles comerão os seus olhos.
ditado espanhol

Lá está mamãe recostada no sofá com os olhos pregados na televisão. Meus dois irmãos montam o quebra-cabeça de 200 peças sobre o tapete quadriculado. Papai como de costume viaja a negócios. Eu estou aqui sozinha lavando a louça, vislumbrando-os na sala por uma generosa fresta na porta. Há pouco acabamos o jantar e eu mesmo sem mamãe mandar me dispus a esta tarefa, pressentindo no seu olhar o que ela queria. Ah! Mas enquanto a esponja embriagada de detergente desliza pelos pratos sujos minha mente divaga. Está a quilômetros de distância daqui que é Belém do Pará...

Ah! Que saudades da Ilha de Marajó! Quanta coisa deve ter acontecido desde que saí de lá, pequenina. Lembro-me como se fosse hoje: minha mãe fez-me despedir dos meus oitos irmãozinhos todos em fila (do maior ao menor, formando uma escadinha) e apresentou-me a mamãe e papai, dizendo-me para ir com eles. Eu desatei a chorar, tive vontade de agarrar-me a uma árvore que sombreava a nossa casa, mas depois me recompus dado que a decisão estava tomada e a mãe não era de voltar atrás. Ela me abraçou, beijou e sussurrou-me aos ouvidos: “sua bobinha, lá você vai ter tudo o que não podemos te dar; você vai à escola, vai aprender a ler e escrever, enfim vai ter vida de gente...”

Ah! Como era magnífica a visão dos búfalos dos donos da fazenda a correrem pelas pradarias, soltos, livres, naquelas terras que pareciam nunca mais ter fim. Tinham-me dito que a cidade grande era muito mais bonita, pois sim... Logo que cheguei me levaram para ver o tal de Mercado Ver-o-Peso. A maior parte do dia a água foi embora e os barcos chafurdavam no lodaçal, rodeados de urubus sequiosos de peixes...

Ah! A mãe e os pequenos, que a esta altura estarão bem grandinhos, como estarão? Será que voltarei a vê-los? Um dia eu preparei tudo para fugir. Descobri a hora certa em que partia o barco para a ilha, peguei um dinheirinho que mamãe guardava escondido na penteadeira, enchi a cara de coragem e me dirigi ao porto, disposta a viajar clandestinamente, pois não tinha idade para viajar sozinha. Ah! Eu cheguei lá ofegante, as pernas tremiam, o coração parecia que ia saltar pra fora e fiquei lá no cais, paralisada de medo, observando todos os preparativos para a viagem, as pessoas que embarcavam e só fui embora quando vi a embarcação perder-se no horizonte naquele pôr-do-sol suavemente alaranjado. Voltei pra casa não sei como. Percorri aquelas ruas, entulhadas de mangueiras, feito sonâmbula. Tinha a sensação de que a cidade era uma imensa floresta, as pessoas pareciam-me onças-pintadas, os carros, leões.

Cheguei em casa, que sorte! Estavam todos entretidos com a novela das sete, repus o dinheiro direitinho no lugar e mergulhei na cama do quartinho. Eu mordia o travesseiro com raiva de mim mesma por ter fraquejado. Tive medo de assim como essa torneira que às vezes escangalha e não para mais de derramar água, minhas lágrimas não secassem mais e todos percebessem minha travessura. Meu receio não era de apanhar, a dor maior seria a humilhação. Mas mamãe não ousaria bater-me desta vez. Deve ter aprendido a lição.

Naquele domingo em que eu derrubei sem querer a travessa de macarrão no chão, um pouco antes das visitas chegarem, ela se atreveu a me esbofetear. Eu compreendo que ela estava nervosa, mas ouviu tudo o que estava entalado aqui: disse-lhe que nem que eu fosse sua filha ela deveria me bater assim, que fosse a primeira e a ultima vez!Fora os palavrões que lhe lancei. Eu senti que os meus olhos flamejantes lhe queimaram bastante e ela assustada pôs-se a recolher os cacos espalhados pelo chão e os pedaços de macarrão esparramados, com o sinteco salpicado com o vermelho implacável do molho.

Apesar de tudo eu não lhe quero mal. Eu muitas vezes desejei que ela morresse, isso me angustiava, fazia-me remoer de culpa, mas depois aprendi a conviver com essas minhas fantasias e descobri que este não era meu desejo mais recôndito. Um fato foi decisivo para tal: estávamos eu e ela no ponto de ônibus após uma tarde de compras. Ela tinha comprado até um vestidinho pra mim que eu namorava há tempos. Então despencou uma manga enorme do alto, caindo-lhe na nuca como uma flecha no alvo. Ela desmaiou no ato. Confesso que por alguns centésimos de segundo eu senti um enorme alívio. Era como se uma espinha atravessada na garganta tivesse sido expelida para fora. Ah! Mas esse sentimento de vitória dissipou-se. Eu caí em mim e pensando que ela tivesse morrido abaixei-me diante do seu rosto e beijei-a nem sei quantas vezes, histérica, implorando-lhe que acordasse, que ela não podia fazer isso com a gente, pois nos fazia muita falta. Um senhor disse-me para ficar calma, que não era nada e com álcool obtido numa casa vizinha ela recuperou-se. Daquele dia em diante passamos a percorrer a cidade com os olhos voltados pro céu. As pessoas tinham-nos como malucas.

Depois daquele episódio eu senti que bem ou mal, faço parte desta família, que as pessoas com as quais convivo me são muito preciosas. Eu passei a ver mamãe com outros olhos, a sofrer até por ela, quando a via estirada neste mesmo sofá em que está agora, com lágrimas caindo tímidas dos olhos, pois papai quando chega de viagem, após longa ausência, regala-nos com presentes e depois sai para beber e discutir futebol com os amigos, deixando-a sozinha. Só eu a acompanho na sua solidão quando até mesmo as crianças-irmãs, que eu ajudei a criar, deixam-na também solitária, seduzidas que estão por umas trapalhadas quaisquer que passam aí numa dessas telas.

Um domingo vendo-a tão triste peguei a boneca de pano que eu mesma costurei, improvisei uma cortina numa corda comprida e representei para ela uma história que meu pai não se cansava de contar, nem eu de ouvir, lá na ilha.Enquanto mamãe me ouvia atenciosa e as maçãs do rosto adquiriram novas cores, eu me assustava, pois era como se o espírito de meu pai, que tinha morrido alguns meses antes de eu sair da ilha, estivesse falando por mim. Às vezes penso que sou mais irmã de mamãe do que filha. Já papai não me provoca esta confusão de sentimentos. Ele sempre me tratou bem. Fez questão que eu estudasse nos mesmos colégios para os quais os pequenos iriam mais tarde. Eu é que saí por minha conta. Após aprender a ler e escrever o suficiente eu achei que a escola não tinha mais nada a me acrescentar. Com aquela doença de mamãe eu aproveitei e me desliguei de vez. Hoje me arrependo um pouco, mas também estudar pra quê?

Eu cortei o mal pela raiz! Faculdade mesmo eles não iam me deixar fazer mais tarde, quanto mais me pagar uma! A prioridade é dos meninos... Bem, acho que não estou dizendo toda verdade, papai me confunde e muito. Muitas vezes tenho a impressão de estar apaixonada por ele. Até que é um quase coroa bem enxuto para os seus 45 anos. Mamãe não sabe, mas eu outro dia surpreendi-o ao telefone marcando um encontro com uma tal de Heleninha. No princípio ficou vermelho, sério, mas depois piscou pra mim, eu tentei retribuir e fechei os dois olhos. Rimos muito os dois então. Eu compartilhava agora um segredo com ele. Papai nem sabe, mas daquele dia em diante eu me aliviei bastante de um sentimento de culpa terrível que andava sentindo. Eu já estou bem mocinha e de uns tempos para cá me sinto possuída por uma força incontrolável que me faz observá-lo às espreitas tanto quando toma a sua ducha como quando se troca no quarto. É um belo corpo ainda. Eu antes sentia tontura depois destes meus gestos impulsivos, corria para o quartinho e me cobria para conter o arrepio ou dar vazão a ele, numa auto-complacência. Agora já nem reajo infantilmente assim, me contento às vezes até em simplesmente contemplar o seu rosto, a sua silhueta, a sua postura, os seus meneios. Ele se veste muito bem. O seu paletó e gravata caem-lhe otimamente com a barba e bigode levemente grisalhos. Também pudera! Afinal ele é um homem de negócios e deve impressionar sempre....

Bem a louça já está quase toda lavada e enxaguada e daqui a pouco a novela termina. Eu sei que mamãe gosta de um cafezinho a essa hora e vou prepará-lo já... Deixe-me lavar bem a torneira aqui e as mãos, para ela não ralhar comigo como das outras vezes, dizendo que eu só lhe sirvo café com gosto de sabão.

Pronto.... Agora é tirar o jarro desta cafeteira, pegar esse conjunto de xícaras e despejar o café. Claro que os meus queridos irmãos também vão querer... Ah! Sim. Açúcar refinado não. Tem de ser o mascavo para ela. Onde está?.... Ah! Está aqui. São só duas colherinhas!...

É só eu mexer este café e mais uma fantasia me perturba a mente: tenho a impressão de estar diluindo um potente veneno... Até quando vou ter de conviver com esse fantasma? Eu o compreendo e sei que daqui a pouco ele vai embora, mas não é fácil, dói muito perceber esse penetra em nossa festa diária.

Sim mamãe, já vou!... É ela me chamando. Eu detesto passar por isso! Prefiro adiantar-me sempre aos seus pedidos... Mas amanhã eu prometo que isso não vai mais acontecer...

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Mente fertil...ou corajosa em trazer histórias que acontecem e que as pessoas não tem coragem de escrever!!????

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