domingo, 15 de março de 2009

Ao Mestre, Nossas Diferenças e Um Tanto de Indiferença




Baseado em suas experiências como professor de francês numa escola de periferia de Paris, François Bégaudeau escreveu o romance “Entre os Muros da Escola”, publicado agora no Brasil pela Martins Fontes. Quando Laurent Cantet conheceu o trabalho, logo teve vontade de adaptá-lo ao cinema, convidando o próprio autor para o papel do professor de francês François Marin.Tendo escolhido vários adolescentes de 13, 14 ,15 anos, Cantet trabalhou com todos num ateliê de improvisação na Escola Françoise Dalto, todo o ano escolar entre 2006 e 2007, ficando o filme pronto em 2008. Os alunos são constituídos das mais variadas etnias que formam o caldeirão cultural e humano da França contemporânea e que encontra correspondentes em várias partes do mundo.

Assim temos uma sala de aula em que convivem filhos de africanos, árabes, chineses, de pessoas das Antilhas Francesas, franceses propriamente ditos, etc. Por mais boa vontade e espírito libertário que o professor François tenha, vão aos poucos explodindo conflitos entre certo espírito iluminista francês que coloca a cultura francesa no “centro do mundo” e as diferenças culturais, familiares, humanas em que os alunos estão mergulhados.

O que dá ainda maior fascínio ao filme é a fantástica estética documental imprimida a uma narrativa sólida, com evoluções dramáticas bem planejadas, de tal forma que não sabemos ao certo o que é improviso, o que foi romanceado, o que pode ser um depoimento sincero de um dos alunos ou professores, o que realmente aconteceu na experiência de François Bégaudeau como professor, etc.

Dentre vários alunos temos Esmeralda (Esmeralda Quertani), inteligente, mas atrevida e sempre disposta a desafiar, ironizar o professor e um dos pivôs de uma situação dramática chave para o filme; Khoumba (Rachel Régulier) de uma petulância tal que se recusa a ler um trecho de um livro e quando instada a pedir desculpas depois, se vale de uma falsa sinceridade; Souleymane ( Franck Kelta) de uma família que veio do Mali e que se mostra o mais arredio de todos, fazendo uma sintética apresentação de si pois sua vida só interessaria a si mesmo; Wei (Wey Huang) um inteligente e bom aluno que está ameaçado de ser deportado da França junto com seus pais chineses; Louise (Louise Grinberg) aparentemente calma mas que como representante de classe junto com Esmeralda, numa situação de poder, vai provocar detonações de equívocos sucessivos, etc.

“Entre os Muros da Escola” nos defronta ainda com o universo das reuniões de professores com a presença do diretor da escola, onde a vida e destino dos alunos são decididos muitas vezes com base em preconceitos, falta de empenho, má vontade, desejo de cortar os males pelas raízes. Mas o filme é devidamente sutil para que estes personagens sejam mostrados como parte de uma engrenagem de ensino falida, sem demonizá-los. Para a classe multiétnica que se tem, há a necessidade de que os professores saiam de suas pequenas certezas e questionem mais a escola como um espaço que deveria formar antes de tudo cidadãos, mais do que futuros profissionais. François é quem tem a consciência mais aguçada desta situação singular em que vivem estes professores e alunos de periferia. Assim vai até seus limites, suportando perguntas diretas sobre se é homossexual, repetindo à exaustão tópicos para serem mais bem compreendidos, promovendo a auto-estima dos alunos ao pedirem que façam uma auto-apresentação, questionando até mesmo a autenticidade de um aluno que se diz gótico como se fosse algo de grande originalidade, dentre outros desafios, como também o delicado trato com os familiares de alunos.

Enfim, François trabalha sua matéria, o francês, de uma forma não canônica, procurando fazer com que os alunos se expressem nesta língua incorporando suas singularidades e idiossincrasias. Para dar mais força ao filme, Cantet preferiu enfatizar os esforços de um professor de francês, matéria aparentemente mais distante de uma visão pragmática utilitária como seriam ciências e matemática, por exemplo. Como vivemos num mundo onde conflitos essenciais se dão também por confusão de linguagens, com uma Torre de Babel instaurada a dividir povos e pessoas, o filme ganha maior relevância.

François não é paternalista. Em muitos momentos perde a paciência e é enérgico, seja levando um aluno à diretoria por desacato; obrigando uma aluna a lhe pedir desculpas; dizendo que certas alunas extrapolaram suas funções e se comportaram como vagabundas ou encarando alunos no pátio da escola que lhes dizem que fizeram com ele, o que ele faz com os alunos, sendo ofendido com termo chulo.

Para Ingmar Bergman o sistema de ensino é baseado na humilhação. François age como se soubesse disso e tentasse evitar este ciclo vicioso. Corre até o risco de ser também humilhado dentro desta estrutura. François tem alguns pontos de contato com o padre de “Nazarin”(México/1958) de Luis Buñuel que a todo o momento que tenta fazer o “bem”, acaba provocando o “mal”. Cantet não é tão radical como o mestre espanhol, na sua visão anticlerical, mas esta lembrança é inevitável, pois François tem um quê de missionário que é algumas vezes abandonado, pois sua paciência tem limites. Em “Nazarin” só ao final o padre vai se dar conta da “inutilidade de sua bondade”, pega um abacaxi e se dirige para a câmera com a angústia de um revolucionário armado.

Ao contrário de filmes americanos como “Ao Mestre, Com Carinho” (EUA/1967) de James Clavell em que Sidney Poitier enfrenta uma escola com alunos problemas, de forma que ao final temos um herói que promove a redenção e superação dos embates, há em “Entre os Muros da Escola” a problematização de vários conflitos, que podem ser ampliados para a sociedade francesa como um todo, dado que a escola é um microcosmo exemplar da França, com ressonâncias em outros países. Ganhador da Palma de Ouro em Cannes 2008, o filme tem tido grande penetração em vários países e conforme entrevistas dadas pelo diretor têm encontrado reflexos que transcendem a sociedade de origem.

François se imbui das melhores intenções, mas como sabemos, de boas intenções o inferno está cheio e nem tudo acaba bem. De qualquer forma, o filme nos mostra que apesar dos abalos, a vida tem que continuar e o melhor a fazer é aprender com as experiências. Para o professor, mesmo que as coisas fujam ao seu controle vale lembrar o verso mais do que pop de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”. François pode ser um tanto ingênuo em seus bons propósitos, pode ser porta-voz de um espírito iluminista tardio e colonizador (por mais que procure se afastar disto, com sua paciência muitas vezes de Jó, diferentemente dos outros colegas), mas o que não se pode deixar de reconhecer é que tem uma alma grandiosa. Se nem tudo sai como gostaria é porque os problemas são maiores do que pensava, do que está ao seu alcance. O diretor Laurent Cantet (dos ótimos “A Agenda” e “Em Direção ao Sul" que têm em comum com o filme atual, personagens em princípio integrados, mas que passam a viver pelas bordas das sociedades) enxerga mais longe que seu personagem protagonista um tanto quixotesco e não pode ser confundido com ele.

Quando uma onda de grande mal-estar passa, ainda temos surpresas comoventes como a aluna que diz que não aprendeu nada no ano letivo e que não vai fazer nenhum curso profissionalizante ou então aquela que mostra uma cultura que o professor (e nós) não suspeitávamos, dois momentos chaves do filme para enfatizar um tanto do abismo que há entre o cuidado que se tem e o resultado que se consegue.

Como respeitar as diferenças, aprender com elas, mas também não ser escravo delas de forma que os alunos progridam e os melhores não percam seu tempo? Como fazer com que alunos com graves questões familiares, gatos escaldados, não se aproveitem da “tentação de fazer o bem” do professor? Como promover um ensino que forme antes de tudo cidadãos quando isto é negado aos pais de muitos alunos? Como lidar com a lei do menor esforço de colegas professores que podem minar nossos mais elevados propósitos? Como fazer com que adolescentes enxerguem o país em que vivem se este país não os enxerga, com leis xenófobas e um presidente linha-dura com os imigrantes? Como se lida com jovens que nem se sentem bem como franceses como também perderam os elos com os países de seus pais? E muitas outras questões podem ser suscitadas, quando olhamos além do que nos mostra os limites do muro.

“Entre os Muros da Escola” é um dos grandes acontecimentos cinematográficos dos últimos anos que merece toda repercussão que está tendo. É um grande exemplo de como se pode ser simples, sem hermetismos e como diria Marilene Chauí atingir profundamente ”a nervura do real”. Há um muro entre o professor e os alunos, que ele transpõe de uma forma limitada. Mas o filme não é de jeito nenhum niilista. Suas últimas imagens com os movimentos da vida e as cadeiras e mesas da sala de aula inertes numa imensa solidão, são saudavelmente contraditórias. Há um impulso de uma benigna esperança que flerta com um controlado desespero que só vai se dissolver realmente com o filme entrando pelos sete buracos da cabeça de cada espectador, fazendo-o refletir sobre o que testemunhou e claro, agir. Assistir a “Entre os Muros da Escola”, um show de cativantes espontaneidades, que deve ter dado muito trabalho ao diretor e aos roteiristas François Bégaudeau e Robin Campillo (junto ao próprio Cantet) para atingirem, é mais do que um grande prazer ético e estético. É um ato cívico urgente. Há quem conteste a possibilidade do Cinema chegar a tanto. Estou na trincheira totalmente contrária.


Ps Vale a pena destacar trecho de entrevista dada pelo autor/ator François Bégaudeau à Eduardo Simões na Folha de São Paulo de 13 de março de 2009

BÉGAUDEAU - Todas as organizações, como a escola, a família e a sociedade, repousam sobre a convicção de que alguns sabem mais do que os outros, que alguns detêm o saber e a experiência. Aí está a ilusão. Ilusão na qual acreditamos até o dia em que nos vemos adultos, professores e pais. E aí nos damos conta de que não sabemos muito mais do que sabíamos dez anos antes. E que não dominamos de fato o tema da vida.
Daí é preciso fazer o teatro dos adultos. Não é tão difícil se dar conta de que tudo é teatro. Esse adulto, que tem autoridade, é um pouco como um policial que todos os dias entra em cena ostentando seu uniforme.

Nelson Rodrigues de Souza

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