terça-feira, 3 de março de 2009

Lina, aquela que “roubou” um argumento meu




Nas minhas fantasias de cineasta como adolescente/jovem adulto imaginava fazer um filme sobre um indivíduo que faria tudo para sobreviver numa guerra. Esta idéia me perseguia mesmo tendo visto, me emocionado e gostado muito de “Giordano Bruno”( Itália/1973) de Giuliano Montaldo, onde Gian Maria Volanté na pele do monge dominicano, filósofo, astrônomo e matemático, considerado um perigoso herege, é julgado pelo clero e declara de uma forma inesquecível: “Tendes mais medo vós de proferirdes a sentença contra mim do que eu em recebê-la”. E assim como tantos na História da Igreja Católica foi queimado nas fogueiras da Santa Inquisição, um braço direito que ganhou hoje outros contornos, mas que metaforicamente e com alguns efeitos práticos bem danosos, ainda continua existindo.

A grandeza de Giordano em afirmar suas idéias me comovia. Sua humanidade ao tomar porres que o tirassem de sua lucidez também. Mas na realidade me sentia muito distante dele e me identificava mais com o homem comum que tinha na minha cabeça enquanto um argumento, mas cuja história ainda não havia sido encontrada e construída.

Em 1975, pouco tempo depois dos meus primeiros devaneios neste sentido, surge então o memorável e espetacular “Pasqualino Sete Belezas” (Itália/1975) de Lina Wertmüller. Ora, o argumento desta obra-prima do Cinema Italiano, desta ex-assistente de Federico Fellini em “Fellini 8 e Meio”, era o mesmo que acalentei desenvolver durante anos! A danada chegou na frente! É nisto que dá procrastinar as coisas! Uma arte bem brasileira....

Pasqualino ( Giancarlo Giannini, fenomenal) tem sete irmãs feias (daí o título) e acaba matando acidentalmente o amante de uma delas. Chega a esquartejar o corpo, desesperado, colocando-o em malas. Preso, confessa o crime e depois de algumas peripécias se alista no exército italiano em plena Segunda Guerra Mundial. Por cuidados com a própria vida acaba desertando. Mas é preso pelos nazistas e levado para um campo de concentração.

Por mais canalha que seja o personagem, sua humanidade é desconcertante. Sua única ideologia num tempo em grande colapso é sobreviver. Chega até mesmo a paquerar uma carrasca nazista bem gorda e arrogante para obter ganhos na prisão, enquanto um companheiro se joga numa fossa por não suportar mais o mundo fétido em que foi mergulhado.

“Pasqualino Sete Belezas”, com mais uma extraordinária fotografia de Tonino Delli Colli, de tantos clássicos, foi a mais politicamente incorreta incursão de Lina Wertmüller no cinema que chegou aos cinemas brasileiros. Ela nos deu filmes tragicômicos fantásticos como “Mimi, o Metalúrgico”(1972), “Por Um Destino Insólito”(1974), “Amor e Anarquia”(1973), “Dois na Cama Numa Noite de Chuva”(1978), “Tudo Certo... Mas Nada em Ordem”(1974), etc. Neste último temos uma de suas cenas mais impagáveis e emblemáticas da captura da fragilidade humana em seus limites extremos, sem nenhuma hipocrisia: num edifício cabeça-de-porco uma mulher está para ser estuprada, sua televisão começa a cair devido ao corpo a corpo com que resiste e chega a apoiar com uma perna o aparelho; ela agora tem duas opções, ou salva sua preciosa televisão ou se deixa ser estuprada; opta então por salvar a televisão....

O sarcasmo e humanismo de Lina com filmes de títulos quilométricos, bastante atenuados nas versões brasileiras, eram quase que insuperáveis. Durante anos acalentou o projeto de filmar no Brasil, “Tieta do Agreste” de Jorge Amado com Sophia Loren, o que acabou sendo feito por Cacá Diegues. No festival do Rio de poucos anos atrás foi exibido o belo “Francesco e Nunziata (2001), último contato que tive com sua apaixonante obra.

Não sendo esquerda nada convencional, mas muito menos de direita, nem feminista óbvia e xiita, Lina representou um grande sopro criativo no Cinema Italiano mesmo com tantos grandes mestres, com uma visão de mundo iconoclasta bastante peculiar. Infelizmente ainda que tenha continuado filmando, a exibição de seus filmes foi abortada do mercado exibidor brasileiro, mesmo tendo dirigido uma versão para a TV e cinema do clássico da dramaturgia italiana de Eduardo de Filippo, “Sábado, Domingo e Segunda” (1990) que ganhou nos palcos brasileiros estupenda montagem no Teatro dos Quatro do Rio de Janeiro, nos seus áureos tempos.

Lina de uma forma sensacional “roubou” meu argumento. Toda gana de viver de Pasqualino, alheio a ideologias e idéias nobres, ao seu modo, é uma eloqüente resposta particular a todos os conformismos e automatismos ideológicos que geraram o fascismo, o nazismo, o stalinismo, o castrismo, o neoliberalismo com sua ditadura do mercado, o sionismo sem limites e assassino, os fundamentalismos islâmicos, as ações policiais inconseqüentes, etc.

Numa época em que vários destes vestígios de falta de civilização ainda mostram a sua cara, em que a vida e a morte estão completamente banalizadas de uma forma mais generalizada (extrapolando a outros rincões os horrores da Segunda Guerra Mundial), a visão/revisão deste filme seria muito oportuna. Com toda loucura e obstinação de Pasqualino, ele, ao seu modo, com seu grande apego a este mundo tal como o conhecemos (sem deixar-se entregar a um “atrás da porta” sobre o qual quem disser que tem alguma certeza de como será, estará mentindo), com todas as suas misérias e pequenez sensata, mesmo muito longe da dignidade de um Giordano Bruno, tem muito a nos ensinar. Esta é a grande força do filme e a razão dele ter me exercido tanto impacto e fascínio, tornando-se um daqueles que são fundamentais e formadores, o que me fez perdoar o “roubo” da idéia básica.


Ps. Claude Lelouch filmou uma seqüência inesquecível que está num filme que vi na televisão há anos e do qual não me lembro do nome nem da história. O que me marcou profundamente é que ao contrário de muitos filmes em que condenados à morte acabam se conformando e caminham para o fim, um tanto apaziguados, nesta obra de Lelouch acontecia justamente o contrário: há uma longa cena em que o condenado esperneia, é contido, reage de novo, fazendo tudo o que lhe é possível para que não chegue ao fim de linha da vida. É fantástica a seqüencia toda. Neste sentido inconformista, só anos depois, Lars Von Trier com seu essencial “Dançando no Escuro” lograria efeito equivalente ao final, com grande força, mostrando os últimos momentos de vida da protagonista Selma (Björk) de forma arrepiantemente bela.


Nelson Rodrigues de Souza

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