terça-feira, 31 de março de 2009

Clint Eastwood Compactuando com o Mistério



Numa de suas máximas deliciosas e penetrantes, Domingos Oliveira declarou: “Para se fazer arte, tem que se compactuar com o Mistério”. Acredito que também o espectador/leitor/ouvinte para apreciar arte de uma forma mais profunda, tem de fazer este pacto também. Pra mim estas idéias explicam porque a arte é muitas vezes “maior” do que o artista. Ou então o porquê de, em contacto com a arte, tornarmo-nos “maiores”.

São incontáveis os exemplos de artistas na História da Arte que em alguns momentos de sua existência nos decepcionaram bastante, num “humano muito demasiadamente humano”. Salvador Dali criou um mundo pictórico onírico surreal magistral e, no entanto, foi capaz de apoiar o franquismo. Elia Kazan é um dos maiores cineastas em qualquer tempo. Pressionado pela Comissão de Atividades Anti-Americanas, no auge do macartismo, entregou colegas como comunistas. Isto não impediu que um artista que já havia feito vários filmes extraordinários antes como “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), continuasse com obras magníficas depois como “Sindicato dos Ladrões” (1954), incontornável em qualquer lista dos grandes filmes de todos os tempos, obra que sintomaticamente cria uma situação de corrupção em que a saída honrosa é entregar os colegas corruptos. Estamos no terreno de uma das catarses artisticamente mais elaboradas e produtivas.

Jorge Luis Borges (um dos muitos injustiçados pelo Nobel) foi capaz de aceitar uma comenda da junta militar argentina assassina. Na visão que Luchino Visconti nos passa de Wagner em “Ludwig, Paixão de Um Rei”, vemos o extraordinário compositor de “obras de arte totais”, extremamente egoísta, preocupado apenas em que seu teatro exclusivo para suas óperas seja construído, sem dar a mínima para o processo de autodestruição em que seu mecenas Ludwig da Baviera está encalacrado, com omissão em relação às intrigas e complôs palacianos para derrubar quem dilapida o patrimônio do Estado com suas fantasias arquitetônicas.

Estas e outras histórias me fazem crer ainda mais na máxima de Domingos. A arte tem componentes misteriosos tais que colocam quem a produz num processo de “loucura sobre controle” em que elementos mágicos se fazem presentes e o resultado pode transcender a humanidade básica de quem a cria. Neste sentido a trajetória de Clint Eastwood , hoje sem nenhum favor, um dos dois ou três maiores cineastas americanos vivos, é bastante exemplar.

Nos westerns spaghetti que Eastwood fez com Sérgio Leone no início da carreira ( “Por Um Punhado de Dólares”-1964), “Por uns Dólares a Mais”-1965), “Três Homens em Conflito”-1966) nos deparamos com muita violência, mas não há nenhuma exaltação de heroísmos e sim uma visão lúcida (e plasticamente deslumbrante) dos embates que os pioneiros tinham para sobreviver e o clima contagiante de ganância e egoísmo instaurado, num universo sem leis.

Já em “Magnum 44” (EUA/1973) de Ted Post com o detetive “Dirty” Harry Callahan ( vivido por Clint) temos um dos filmes mais fascistas já feitos, com Harry justiçando seus inimigos, sem contradições, com notável desprezo pela morte deles.Confesso que depois desta experiência não tive ânimo de assistir nenhuma outra aventura mais deste detetive que fez história, para avaliar o “índice de fascismo” que elas contivessem.

Mas já na sua primeira direção, “Play Misty For Me/Perversa Paixão” (1971), Eastwood mostrava notável senso cinematográfico, ao narrar a história de uma mulher que persegue patologicamente um radialista. O desenvolvimento da obra se dá com sensibilidade e atraente clima crescentemente nervoso. A consagração inicial internacional mesmo se daria com “Bird” ( 1988), cinebiografia primorosa de Charlie Parker e se ampliaria com o renovador western “Os Imperdoáveis” em que ao seu modo coloca tudo que aprendeu com os clássicos do cinema e com sua experiências com Don Siegel ( com quem fez o belíssimo “O Estranho que Nos Amamos”) e Leone.

“Os Imperdoáveis” soa como um canto de cisne do heroísmo que se exaure na consciência culpada dos banhos de sangue do passado e que retornam para justiçar prostitutas barbaramente violentadas. Mas estamos aqui longe das certezas funestas de um “Dirty” Harry” e se há heroísmo aqui ele não ocorre sem perdas, dor e indecisões, com atitudes que não são previsíveis e se dão em embates que colhem o protagonista numa trajetória errática.

Claro que com o tempo, sempre surpreendendo com grandes filmes, o homem Eastwood foi crescendo como ser humano. Mas sem querer ressuscitar aqui as patrulhas ideológicas dos anos 70, ainda há no percurso como cidadão de Eastwood, elementos que intrigam e perturbam. E muito. Eleito em 8 de abril de 1986, foi prefeito de Carmel, cidade litorânea da Califórnia, pelo Partido Republicano ao qual é filiado desde 1951.Ajudou na campanha de Richard Nixon em 1968. Foi eleitor de Arnold Schwarzenegger para governador na Califórnia. Mais recentemente, quando não só o EUA como também o planeta entrou numa encruzilhada com a necessidade de escolha entre Barack Obama e John Mccain (e sua abominável vice Sarah Palin), Clint permaneceu fiel ao seu partido. Não que eu seja grande entusiasta de Obama, mas no momento histórico que se apresentou, estava-se escolhendo entre o que poderia trazer esperança de encaminhamento de soluções para o caos instaurado e o que com certeza seria uma versão um pouquinho mais light do que foi o horror da era Bush.

O mais fascinante e misterioso (aqui entra a questão do pacto comentado no início) é que os filmes que Estwood vem fazendo, emulando o estilo dos grandes clássicos americanos, em essência, são altamente transgressivos, não tem vestígios de ideais republicanos. Ocorre justamente o contrário: um implacável diagnóstico de uma America doente em que não há mais espaço para heróis redentores triviais e o que se vê são iniciativas individuais movidas muito mais pelo senso de dignidade humana do que por qualquer ideal que venha de um superego patriótico antenado com o país. Assim temos o treinador de boxe Frank Dunn (Clint) de “Menina de Ouro” que pratica eutanásia e desaparece; a telefonista obstinada Christine Collins (Angelina Jolie) do emocionante “A Troca”, que jamais desiste de procurar o filho que desapareceu e a polícia finge que encontrou (baseado numa história real) e o já antológico Walt Kolwaski ( Clint) do seu último trabalho “Gran Torino”(EUA/ 2008) em cartaz, dentre vários personagens significativos de uma visão de mundo que conflita com o que se tem observado como ideais nas eras republicanas nefastas que os EUA viveu e seus impactos no mundo. São todos personagens desviantes que tem uma crença/ética bastante pessoal e agem de acordo com ela. Mas onde em “Dirty” Harry havia o fascismo absolutista de quem acredita na sua função higienizadora (como Reagan, Nixon, Bush pai e filho, dentre outros), agora temos personagens altamente complexos, contraditórios, humanos no melhor sentido da palavra.

A rigor se mergulharmos na obra de Eastwood (e comento isto tendo ainda perdido alguns de seus filmes) vamos nos deparar tanto com elementos que serão uma grande pedra no caminho de Obama pelas complexidades captadas em jogo numa sociedade, que não são nada fáceis de se resolver, como também apontam para a fraqueza de MacCain, dado que num quadro mundial delicadíssimo, tendia, se eleito, a reciclar, atenuar apenas o status vigente, mantendo posturas nocivas e belicistas, criando um cenário dantesco em que mergulharíamos e que nos lembra o verso: ”Vós que entrais, renunciai a toda esperança”.

A contundência com que Eastwood inventaria várias facetas da perversidade humana em seus filmes (como Roman Polanski num outro estilo) e encara a morte de frente ( “Sobre Meninos e Lobos” e “À Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal” são dois outros exemplos bastante significativos nestes sentidos) e as saídas suis generis ( quando são encontradas) destes impasses que se dão de forma acutilante, nos revelam um país de injustiças atávicas e dilemas éticos agudos que só a consciência individual torturada, passando por “provações no labirinto” terá a chance de remediar. Em “À Meia Noite....” o único personagem que passa a ter uma consciência abrangente do estado das coisas que disfarçam um assassinato não solucionado é uma negra homeless envolvida em estigmatizadas feitiçarias.

Os republicanos não tiveram nem instinto de preservação do próprio partido ao não moverem uma palha sequer para que houvesse o necessário impeachment de Bush por ter mentido tanto, um grande criminoso de guerra que deveria/deve ser julgado (conforme ressaltou Harold Pinter ao receber o Nobel de Literatura num discurso enviado) que colocou o país numa das enrascadas mais fortes de sua História. Seria impensável que republicanos omissos assim, caudatários de uma das maiores infâmias da História, tivessem a visão generosa em direção ao entendimento das razões que movem os movimentos dos outros (os japoneses na Segunda Guerra Mundial), como Eastwood apresentou em sua obra-prima “Cartas de Iwo-Jima”. Em “Gran Torino” encontramos paralelos com esta saudável atitude na aproximação com o diferente.

Em “Gran Torino”, Walt Kowalski é o “estranho com nome”, veterano da guerra da Coréia, aposentado e que foi metalúrgico da Ford em Detroit nos seus áureos tempos, antes destas crises homéricas atuais que as indústrias automobilísticas enfrentam. Após a perda da mulher, não havendo afinidades como os filhos e netos, mora sozinho numa casa de um bairro decadente, com sua cachorra Dayse, uma bandeira dos EUA içada em sua porta e a rejuvenescedora e melancólica companhia de um bem conservado e lustrado carro Gran Torino de 1972, símbolo de uma era de prosperidade que se esvaiu.

Na vizinhança de Walt mora famílias de hmongs, um povo que foi espalhado entre a China, Tailândia e Laos, apoiou os EUA na Guerra do Vietnã e com a vitória dos vietcongs comunistas passaram a ser atacados e alguns conseguiram refúgio nos EUA.

A princípio ostensivamente refratário a seus vizinhos, trocando ofensas, Walt em sua solidão atroz, preocupado com invasões aos limites de seu jardim, algo que se agrava quando passa a ter certeza de que os filhos/netos só querem saber de sua herança ( chegam a uma tentativa de interná-lo num asilo “chic” ), acaba descobrindo o convívio com os “chineses” que moram perto.Theo (Bee Vang) tem um primo numa das gangues que infestam o lugar, que o obriga a tentar roubar o Gran Torino, o que redunda em fracasso. Walt a princípio raivoso passa a ser uma espécie de mentor de Theo. Desenvolve também amizade com a irmã do rapaz, Sue (Ahney Her). Um jovem padre quer que ele se confesse conforme pedido da falecida esposa, mas Walt o taxa como um homem virgem sem experiências do que seria a vida concreta, repelindo-o. Sem nem mesmo o Deus cristão fazendo companhia a ele, Walt procura por vestígios de outra cultura, que chegam também na forma de presentes rituais que ele a princípio estranha, mas acaba aceitando.

A história a primeira vista tem elementos que soam como clichês. Assim como no estupendo “A Troca” há momentos em que pensamos que o diretor se perdeu e divaga. Engano. O que Clint faz é semear um clima mais expositivo para reforçar a narrativa, adubando, para melhor colher os grandes impasses dramáticos que virão depois. E neste sentido ambos os filmes, cada um ao seu modo, são impactantes e sublimes.

Por uma reação de Walt ao modo tradicional a uma agressão que Theo sofre, uma ciranda de violência se instaura e a gangue será uma ameaça onipresente à comunidade hmong. Walt se envolve numa batalha interior que implica em sacrifício quase que ritual. A forma em que isto se dá representa um rompimento total com a ética de um “Dirty” Harry, sujeito contaminado pelo “olho por olho, dente por dente”.

Gran Torino tem como outros filmes de Clint um “molde” extraordinariamente clássico ( não é á toa que o emblema da WB surge no início, “como nos velhos tempos”, o que ele também fez em “A Troca”). Mas não há o menor cheiro de naftalina no ar e sim comunhão com aspectos grandiosos de uma narrativa já sedimentados pela História do Cinema e que são usados para comentar o nosso mundo com uma agudeza muito pouco vista. No final de “A Troca” Clint chega ao requinte de fazer uma homenagem bem explícita a "Aconteceu Naquela Noite", uma obra de Frank Capra e ao que ela tem de emblemática de uma tradição cinematográfica a ser cultuada, embora em termos de “conteúdos” não haja nada mais distante de Clint do que Frank. O primeiro corrói uma sociedade para revelar suas arapucas camufladas. O segundo procura ver sempre o lado positivo, com uma poética doce na medida para não enjoar.

Clint Estwood recebeu uma merecida Palma de Ouro pela carreira este ano. O homem às vezes nos decepciona , quando, por exemplo, sintomaticamente, num tom de brincadeira revelador, diz a Michael Moore num jantar do National Board Review, que o mataria se este tentasse fazer com ele uma entrevista com câmera como a que Moore fez com Charlton Heston, amigo lobista de armas de Clint, segundo NewsMax.com Staff, janeiro de 2005.Mas se tais restrições acontecem, o artista é um dos mais admiráveis e profícuos do Cinema, completando 79 anos em 31 de maio de 2009, dirigindo quase 30 filmes e atuando em mais de 50.

“Gran Torino” é mais um mistério gestado para a tela pelo mago Eastwood que se é um conservador politicamente, em sua obra tem sido um dos mais subversivos, um daqueles (como Martim Scorsese, os Irmãos Coen) que mergulha sem medo nas vísceras secretas comprometidas que a sociedade dos homens tenta escamotear.

Para Fellini ir ao cinema é como participar de um ritual religioso. Vá ver “Gran Torino” na tela grande e comungue com todos os presentes a experiência de ver Clint engrandecido pelos mistérios da arte, suas zonas de sombras e por que não, de luzes também, pois o filme tem um dos finais mais tristes e paradoxalmente mais esperançosos que o cinema já construiu. Esta dolorosa ambigüidade também se torna presente em “A Troca”, confirmando Eastwood com um dos mestres do cinema contemporâneo.

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson,
    às vezes penso que a vida não imita a arte mas a subverte completamente. Alguns dizem que a primeira é um milhão de vezes mais rica e surpreendente que a última. Por vezes devo concordar com essa assertiva. O que dizer de um cineasta que faz um filme seminal como "Os rapazes da banda" para, uma década depois, realizar um filme no mínimo simplista e monocromático como "Cruising"? Difícil, não? Confesso que ainda não assisti a "Gran Torino" (está na minha lista) mas lendo seu comentário a respeito do filme, decidi conferir. O trailer não me animou, mas gosto do trabalho do Sr. Eastwood (adorei "A troca" e "Menina de ouro". Quanto ao paradoxo a que se refere no seu artigo, aliás muito bem escrito, devemos sempre fazer a reflexão a respeito do contexto histórico em que se insere tal e tal obra. Spike Lee (cineasta dos mais brilhantes de sua geração) tocou no tema da intolerância cultural pós 11 de setembro no maravilho "O Plano Perfeito" e como isso permeia a sociedade americana neste contexto atual de "o fim justifica os meios". Aliás, o próprio Spike Lee sempre toca na ferida multirracial que constantemente se impõe nos corações e mentes da maioria branca norte-americana contemporânea. Ele nunca nos dá a resposta pronta, nunca as impõe ao espectador. Sempre nos dá as ferramentas que nos levam, à reflexão, ao confronto com nossos próprios medos e preconceitos. Woody Allen (que também considero um dos melhores cineastas de todos os tempos), à época dos ataques do 11 de setembro, enxergou a retaliação americana ao Afeganistão - lembremos que a mídia comprou a estória oficial de que Osama BinLaden estaria escondido por lá pelos Talibãs- como uma coisa que se fazia necessária naquele momento. Imagine só... daí, não seria muito difícil crer que Clint Eastwood seria membro de carteirinha do NFA ou apoiasse John McCain, mesmo sendo o partido Republicano considerado o grande artífice dessa barbárie que assistimos todos os dias (bélica e econômica), e realizando obras de profundo questionamento político como acredito que seja "Gran Torino". Valeu pelo artigo!

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