quinta-feira, 5 de março de 2009

Ecos da psicopatia de um clássico no nosso mundo


Um dos grandes filmes políticos e policiais em qualquer tempo é “Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” (Itália/1970) de Elio Petri. O trabalho conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o Prêmio Especial do Júri em Cannes e junto com “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971), Palma de Ouro em Cannes, do mesmo Petri, forma um dos mais brilhantes duetos do Cinema, que sem nenhum pudor se assume como cinema político, o que hoje pode soar como heresia, limitação e fraqueza estética para muitos. Tal fato diz muito mais sobre o estado de entorpecimento que vivemos, do que sobre supostas possibilidades destes filmes estarem datados.

Em “Investigação.....” um chefe de polícia de uma seção de homicídios, o Doutor, sem nome explicitado (Gian Maria Volante, ator maior, ícone do cinema político italiano nos anos 60 e 70) mata sua amante Augusta (Florinda Bolkan) e deixa vários tipos de pistas de seu assassinato por todo o apartamento, espalhando vinis sobre o corpo da vítima com requinte, imprimindo propositadamente impressões digitais suas em vários lugares do espaço. Liga para seu departamento, avisa que aconteceu um crime no endereço onde esteve com Augusta e ao chegar ao trabalho, recebendo a notícia de mais um caso de homicídio, vai junto com seus subordinados investigar o que aconteceu...

Em seu delírio para se mostrar acima de qualquer suspeita e da lei, gozando com isto, o Doutor tenta também incriminar um amante esquerdista de Augusta. Mas o auge do fascismo assumido e introjetado nas veias se dá quando ele confessa a um homem comum das ruas que cometeu um crime, o faz ir à delegacia e quando este lá chega para a denúncia vai encontrar justamente como delegado chefe, o que se dizia assassino. Não haverá coragem do cidadão comum para mais nada além de dizer que se equivocou. Poucas seqüencias do Cinema nos passaram de uma forma tão contundente e atordoante o que é abuso de poder. O policial é nitidamente um psicopata e mesmo descoberto como criminoso, depois de muitas relutâncias de seus subordinados, vai ser convidado a desfrutar de uma licença para se recuperar do stress de que estaria acometido.

Tanto no Brasil como nos demais países deste tabuleiro intrincado de jogo de poderes e crises generalizadas em que se transformou o planeta, encontram-se ecos em maior ou menor grau desta psicopatia que observamos em estado agudo e bem objetivo no assustador clássico de Elio Petri.

Se fizermos nos jornais e revistas semanais brasileiros, no que se chama “grande imprensa”, uma boa pesquisa sobre o que editorialistas e outros jornalistas pensavam e escreviam sobra a falta de controle dos Estados em relação às tramas econômicas do sistema financeiro, antes da crise eclodir em setembro de 2008, vamos encontrar em muitos deles, textos caudatários da máxima de que o Estado deve ser mínimo e não intervencionista. Agora diante da catástrofe ocorrida surgem os profetas de fatos consumados, dando sugestões, palpites, apontando caminhos como se por omissão e ideologia não tivessem sido também responsáveis pelo que aconteceu.

Não posso afirmar categoricamente, pois não sou leitor aplicado da grande imprensa internacional (apenas recebo seus ecos aqui), mas desconfio que o mesmo se deu em outros países, principalmente no epicentro da crise que é os EUA. Personalidades como Paul Krugman, Noam Chomsky, Viviane Forrester e outros no plano internacional seriam exceções que confirmam a regra. No Brasil sempre tivemos as visões críticas e lúcidas de Jânio de Freitas, Elio Gaspari, Fritz Utzeri, Mino Carta, Emir Sader, Mauro Santayana, Clovis Rossi, Cristovam Buarque, dentre outros. Mas constituem minoria. num quadro bem mais geral. Não acontece nesta crise de valores ( em todos os sentidos desta palavra) um tanto da síndrome “Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”? Ou seja, “criminosos” não estão agora investigando o “crime” que cometeram? É bom ressaltar que inclui a expressão “dentre outros”. Quem quiser vestir a carapuça do outro lado, ao meu ver majoritário, que vista.

Parte dos que estão discutindo e tomando soluções intervencionistas do Estado para salvar grandes bancos e empresas, em vários países, principalmente nos EUA, são os mesmos que incentivaram esta farra especulativa no passado. Aqui temos uma versão “pós-moderna” das intrigas de “Investigação sobre....”.

As milícias em algumas favelas cariocas expulsaram os traficantes ou os mantém a certa distância. Entretanto o que seria um fator de segurança para a população destes lugares acaba se transformando numa nova grande forma de tirania, com benfeitorias impostas, cobranças e ameaças a quem não se submeter. Mais uma vez “o criminoso” está destacado para cuidar do próprio “crime”.

Mesmo em 2009 ainda temos a questão de bambambans do tráfico ou das milícias presos que controlam seus negócios de dentro das prisões com mordomias e celulares. O que dizer das autoridades que deveriam cuidar para que isto não mais aconteça? Se estiverem investigando mesmo o problema a sério e propondo soluções eficazes eles também não fazem parte deste problema?

A imprensa deu destaque esta semana à questão da superlotação nos centros de triagem de animais apreendidos em tráficos ilegais pelo Ibama e que estão sendo bastante maltratados. Um dos diretores vem a público para dizer que isto também acontece com os hospitais e prisões, como se fosse um atenuante. Talvez fosse melhor estes bichinhos, mesmo que ilegalmente, caírem nas mãos de europeus para serem mais bem cuidados ou melhor, sobreviverem...O que temos aqui? “Criminosos” cuidando de “crimes” que cometem.

O senador Jarbas Vasconcelos dá entrevista bombástica à suspeita Veja sobre ampla corrupção no PMDB. Mas não dá nome aos bois como deveria, o que compromete seu depoimento e que sugere uma campanha sub-reptícia para apoiar o PSDB. Agora participa de um grupo parlamentar anti-corrupção. Não é estranha esta história toda?

Aqueles que não moveram de forma incisiva e consistente uma palha sequer para acabar com o massacre de palestinos na Faixa de Gaza em janeiro, agora se reúnem para dar uma boa quantia ( provavelmente insuficiente) para remediar os estragos espetaculares materiais e de saúde humana ocorridos, mas não darão vida aos mortos inocentes, dentre eles muitas crianças, velhos, mulheres, homens adultos, fora o pessoal do Hamas tão odiado. Não teria sido melhor cortar o mal pela raiz e terem sido enérgicos com os assassinatos israelenses enquanto estes ocorriam? Do jeito que as coisas estão se processando temos mais uma vez “criminosos” cuidando de “crimes” que indiretamente cometeram.

No Brasil, os hospitais superlotados muitas vezes estão cuidando de doenças agravadas e de contágio que eles mesmos acabam criando. Os presídios superlotados são fábricas de criminosos. Entra-se delinqüente menor para se sair um bandidão, isto quando se sobrevive. Não existe alto grau de psicopatia “eliopetriana” nestes casos?

Até hoje não surgiu entre nós uma reforma agrária realmente poderosa, ampla e séria como já aconteceu em outros países há mais de um século. Surge o MST que é uma reação possível a este estado de coisas e comete grandes excessos. Investigar isto no fundo é investigar a si mesmo, é adentrar no terreno de omissões graves e seculares. Se o necessário e urgente tivesse sido feito não haveria necessidade de termos um MST. Será necessário enfatizar mais uma analogia com a situação básica do filme?

Há auditores brasileiros que são afastados por corrupção que são reintegrados para continuar com seus trabalhos de auditores. Precisa acrescentar algo mais?

Não há nenhum esforço realmente hercúleo para lidar com as carências históricas de um ensino de grande qualidade no país, em todos os níveis e atividades. Os artigos sucessivos de Cristovam Buarque são extraordinários em seus diagnósticos e propostas para o estado da educação no país. Surge então o provão, para avaliar a qualidade do ensino....

Luis Inácio da Silva foi blindado em relação a todos os escândalos que ocorreram em sua era e culminaram com a saída de José Serra, Antônio Palocci e José Genoíno do governo. Este esquema de blindagem cuja abrangência e agentes nos é desconhecido, que condições têm de investigar estes escândalos mais a fundo?

Fernando Henrique Cardoso aprofundou o desmonte do Estado iniciado por Collor, promoveu a privataria, cujo caso mais emblemático é a entrega da Companhia Vale do Rio do Doce de mão beijada à iniciativa privada. Com se não bastasse promoveu a compra de votos para reeleição. Com que sinceridade e boa vontade podemos encarar suas palestras e artigos agora, para discutir alternativas para o país sair da crise em que se eterniza?

No trânsito do Rio de Janeiro o governo Eduardo Paes está promovendo um esquema de mudanças de sentido no trânsito em certos horários em que se despe um santo para vestir outro, ajudando uns e prejudicando outros. Já cheguei a ver aqui no Humaitá uma pista dividida em três, sendo que em dois terços se vai numa direção e num terço bem apertado na outra. Criam-se problemas para depois ter de resolvê-los. No Joá um carro bateu em duas motos que vinham em sentido contrário e matou um dos motoqueiros. No Humaitá um homem foi atropelado por um carro, ainda bem que sem maiores escoriações, que vinha num sentido que ele não esperava. Dado a boa vontade da CET-Rio de melhorar o trânsito pode-se considerar este caso, relativamente, algo mais light?

José Sarney, Renan Calheiros e até Fernando Collor de Mello voltam com maiores poderes. Que Deus nos proteja!...

Claro que mais casos não faltam. Sobre a Itália poderíamos comentar a nova reeleição de Berlusconi e seus atos. Quais você incluiria?

Resumo da Ópera (Bufa): quem ainda acredita que “Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita” é uma obra circunscrita a certo período do século XX e que esteja datada deve, no mínimo, tomar um banho de jornais e revistas, pois para tudo o que foi dito aqui não há necessidade de grandes pesquisas. Basta ter um mínimo de contato com todas estas extravagâncias (nos valendo de uma palavra mais elegante), com que somos bombardeados todos os dias.

Nelson Rodrigues de Souza


Ps Tenho me permitido fazer algumas correções pontuais nos posts anteriores. Se você notar alguma mudança não estranhe. Como exemplos, no “Conto Erótico do Cinéfilo” lembrei-me de dois filmes que não poderiam faltar e os inclui; descobri um cartaz maior e melhor de “Pai Patrão” e o troquei; percebi que num post fiz num trecho o que não queria que era dar nome a um analista que tive e o tirei.

Um comentário:

  1. A propósito da volta com grandes poderes de Sarney e Collor, comentada no post, é muito interessante o artigo adiante da Folha de São Paulo.
    Nelson

    São Paulo, segunda-feira, 09 de março de 2009

    FERNANDO DE BARROS E SILVA

    Os Donos da Salada

    SÃO PAULO - Aclamado como novo "gerente do PAC" pelos seus correligionários do PTB, o senador Fernando Collor, eleito presidente da cobiçada Comissão de Infraestrutura, assume, enfim, papel de destaque no consórcio lulista de poder, conduzido ao novo cargo pelas mãos hábeis do PMDB de José Sarney, auxiliado pelas reinações de Renanzinho, o senador Calheiros.
    O inventor de Miriam Cordeiro, o "caçador de marajás", aquele cujos métodos e slogan de campanha já anunciavam a delinquência e o desmanche do Estado que viriam a seguir, torna-se, 20 anos depois, linha auxiliar do PT e da candidatura Dilma Rousseff. A unir as duas pontas -Lula e Collor- estão os indefectíveis bigodes de Sarney, o presidente da Arena, o antigo inimigo comum, o "mais corrupto" dos governos, conforme berravam colloridos e petistas nos idos de 89.
    O que mudou? Collor? Lula? O Brasil? Ou ninguém? A resposta passa pela capacidade das oligarquias, que a figura de Sarney ilustra tão bem, de permanecer no poder desde os tempos da lamparina. Em outras palavras: podemos continuar a dividir o mundo entre esquerda e direita, mas o nexo decisivo da política brasileira não está aí.
    O que explica as alianças esdrúxulas, as clivagens frouxas, a dinâmica tortuosa, a vocação acomodatícia e o eterno faz-de-conta do jogo do poder entre nós é o velho, porém tão atual, patrimonialismo -a apropriação privada da República. O "homem cordial" de Sérgio Buarque ainda é o nosso tipo ideal.
    Esquerda e direita, no Brasil, se se confundem na boca do caixa, no assédio aos cofres públicos mais ou menos ostensivo, da pilhagem descarada do Estado à simples boquinha hoje capaz de calar a disposição crítica de tantos radicais de ocasião (ou que antes viviam sem ela).
    A seu modo, Lula intui tudo isso quando pede ao PT que faça do episódio Collor "uma boa salada". O prato é conhecido. Nosso "chef" de São Bernardo apenas acrescentou à velha receita caseira o tempero sindical e chamou à mesa a burguesia do capital alheio.

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