terça-feira, 3 de março de 2009

No Vazio Da Garrafa do Náufrago- Um Conto


Quem ler/leu meus post anterior, vai entender melhor as motivações deste conto.
Nelson


No Vazio Da Garrafa do Náufrago

Quando a Junta Militar Argentina, para perpetuar-se no poder, lançou a nação numa das mais, senão a mais absurda e tola das guerras já vistas e me vi na iminência de ser convocado a lutar nas ilhas Malvinas, o meu primeiro impulso foi fugir. Eu me sentia igual a quando criança recusei-me terminantemente a ir ao “primeiro dia de aula” do curso primário, me segurando com todas as forças num dos pés da mesa da sala, pois pressentia que talvez a minha infância, a minha liberdade de aprender e brincar fosse terminar ali e eu passaria então a ser mais um a ser adestrado para uma engrenagem infernal, como essa agora que pretendia dar cabo do jovem que preenche os contornos desse espanto chamado “eu”.

Por mais atormentado que fosse pela idéia, não tive a coragem de fugir. Não é fácil tomar uma decisão dessas, quando até mesmo a família, que teoricamente deveria ter o maior apreço pelas nossas vidas, nos incita, empurra, encurrala:

- Você não pode envergonhar o nome dos Borges! Além do mais pode ser morto, preso por traição. O mínimo que pode acontecer é não poder mais trabalhar. Ninguém daria um emprego a um desertor! Você não pode jogar fora tudo o que conquistamos até agora, com o maior sacrifício!

Eu já nem posso mais distinguir exatamente quem disse o que. Ainda agora ressoa no meu ouvido um coro de vozes implacáveis: papai, mamãe, titio, os Sanches e Heloisa, você Heloisa que não disse uma palavra o tempo todo, mas o seu olhar cúmplice fulminava-me com a implacabilidade de um raio, como que insinuando “Que vergonha! Que vergonha!”.

Não me restou nenhuma alternativa, senão ir a essas inóspitas ilhas lutar. Só que antes de embarcar no “navio negreiro moderno”, eu encasquetei uma idéia definitiva, vital: aqui chegando faria tudo para sobreviver. Na primeira oportunidade eu me destacaria dos demais, embrenhar-me-ia matagal adentro e me valeria do meu aprendizado de acampamento para resistir, enquanto durassem esses horrores todos. Eu não mataria nenhum suposto inimigo nem morreria gratuitamente, lutaria apenas para preservar aquilo que para mim é o fenômeno mais importante de todos os tempos, algo irrepetível, único e inalienável, algo que nem a mim caberia o direito de colocar em risco: minha vida!

Na primeira noite em que passamos numa das ilhas, eu cuidadosamente juntei todos os apetrechos possíveis e sorrateiro, como quem dá um passeio par fumar, afastei-me o mais rápido que pude do acampamento, com a alma possuída, o coração disparado, os nervos cintilando e um desespero que de tão intenso transubstanciava-se em esperança.

Esse estado de assombro-encantamento em que eu me senti o mais solitário dos homens, o mais isolado de todos, o marginal dos marginais, é inenarrável!(”O homem mais forte é aquele que está mais só”- escreveu Ibsen). Só experimentando!... Mas não durou muito essa minha heróica solidão: o soldado Carlos sem que eu tivesse dado conta, notou os gestos suspeitos, seguiu a minha trilha, alcançou-me a quatro quilômetros do acampamento e me fez levantar sobressaltado de um irresponsável e fatal descanso que me permiti fazer, com uma metralhadora impiedosamente apontada na minha fronte.

A batalha que se travou dali então, acredito, não pode ter tido precedentes:

- Eu gostaria de adiantar-me ao pelotão e fuzilá-lo com o maior número de rajadas possíveis! O seu gesto é não só vergonhoso, como imperdoável! Seu traidor...

- Vamos, me mate! Não é para isso que nos mandaram aqui? Para exercermos a nossa sanha assassina liquidando os inimigos da pátria?!

Eu sabia que Carlos não teria coragem de justiçar-me ali naquele momento. Eu já o conhecia da viagem. Já tínhamos inclusive esboçado uma discussão antes, mas agora ela se tornava ironicamente real, vital: a prática zombando da teoria!

- Você acha que nós todos viemos aqui porque gostamos, somos uns lunáticos inconseqüentes? Olha, nós estamos todos nessa guerra porque a soberania do nosso país está ameaçada!

- O que está ameaçado é a soberania desta Junta Militar. Você não entende que eles nos lançaram a essa tragédia, como um último e desesperado recurso, como uma maneira de desviar as nossas atenções da corrupção desenfreada, dos crimes perpetrados contra esses jovens que se revoltaram contra o descalabro político, social, econômico e porque não dizer moral? Como se não bastasse os milhares de desaparecidos, eles querem nos fazer desaparecer também!

- Você está confundindo as coisas! Um erro não justifica outro! Justamente porque o nosso país andou perdendo terreno no seu desenvolvimento, agora é que não podemos entregar de mão beijada uma terra que nos pertence!

- Fomos nós que atacamos essas ilhas, simplesmente porque não tivemos a sensatez de canalizar as nossas energias reprimidas para derrubar essa ditadura atroz que nos tortura até a alma! Esses estúpidos ingleses vieram aqui defender essa porção de terra, não tanto pelo valor (não é uma ilhota dessas que vai remendar um império falido!), mas pelas mesmas razões que nos impingiram a danarmos neste inferno: aquele macho da Inglaterra (macho no pior sentido) chamado Margareth Thatcher também deseja a permanência no poder, inventou essa balela, império ameaçado, para poder sair só embalsamada daquele parlamento! E esse “lords” vieram aqui lutar porque estavam cansados do tédio matinal dos “pubs”, onde se embebedavam na ausência de algo mais digno para fazer!

- O seu medo, a sua covardia está criando-lhe os mais disparatados fantasmas! O que uma pessoa não inventa para fugir ao dever! Olhe aqui rapaz, se esses caras são uns bêbados incompetentes nós vamos descobrir isso é na raça, no peito! Enfrentando-os com coragem, com dignidade! Não vai ser aqui escondido, procurando a chupeta da mamãe que as coisas irão se resolver. Enquanto nós estamos aqui discutindo o sexo dos anjos, eles estão avançando e daí para perdermos as nossas ilhas e as nossas vidas não custa nada!

- Mas você não entende que nós estamos sendo tratados como marionetes? Enquanto estamos aqui sofrendo, os tiranos maiores que nos lançaram a essa desgraça estão em seus gabinetes refrigerados, preparados para computar o número de baixas e dispostos a sacrificar mais pessoas se necessário...

- Você está indo contra a idéia básica de qualquer sociedade em qualquer tempo: a obrigação dos cidadões de defenderem a sua nação quando necessário, quando de uma ameaça externa.

- A ameaça maior à nossa soberania, à nossa existência , é interna mesmo! Um Estado que não dá as condições mínimas para que o seu povo viva com dignidade, que é capaz de prender, torturar, matar os seus próprios cidadões, não tem o menor direito de exigir-nos que nos sacrifiquemos por ele. Quando uma guerra é realmente justa (se é que tal fenômeno já aconteceu...), digamos , o caso de uma nítida invasão, não há a menor necessidade de obrigar, constranger os cidadões a lutar, pegar em armas. As pessoas iriam naturalmente, espontaneamente à luta!

- Para você até a luta dos aliados contra o Nazi-Fascismo deve ter sido um fiasco, não? Uma bravata apenas...

- Olha, essa é uma história muito mal contada! De qualquer modo ninguém me tira da cabeça que a verdadeira causa da Segunda Guerra Mundial foi a Primeira Guerra Mundial, a desta foram as guerras travadas anteriormente e que a causa desse colapso internacional que estamos vivendo (essa Terceira Guerra Mundial não declarada) é a Segunda Guerra Mundial! Não foi para ver o mundo dividido em duas fatias, uma dos Estados Unidos, outra da Rússia, que nossos pais se sacrificaram! Por falar em americanos, onde andam os nossos aliados nesse momento?

- Quanta sandice meu Deus! Quanta sandice meu Deus!

- Olha essa tal de guerra nuclear que pode estourar a qualquer momento, pelo menos um mérito tem em meio a tanto nojo: a possibilidade de tudo se esboroar numa explosão torna a nossa guerrinha aqui, uma coisa mais do que anacrônica, uma tragédia ridícula, uma brincadeira de crianças!

- Esse palavrório todo com o qual você tenta me engambelar é uma máscara, um disfarce! Você quer é esconder por trás de toda essa capa intelectual, a sua covardia, o seu medo, a sua vileza!

- Você tem razão! Essas razões todas que eu levantei são muito fortes, mas o que me dá a maior força para lutar (para não lutar) é o medo! O medo de morrer. O medo de matar. O medo de matar e morrer em vida, carregando cadáveres fantasmas pela vida afora que sobrar, o medo de me arrepender, me punir por ter sobrevivido, ser eternamente infeliz porque não morri também e não me aliviei dessas culpas!... Você tem toda a razão! Eu não me sinto nem um pouco à vontade nessa nossa atividade. Isto tudo vai contra as minhas mais recônditas convicções. Eu desconfio, não aprovo, “não gosto e tenho raiva de quem gosta” daqueles que acreditam que a vida pode engendrar uma situação tal em que seja construtivo, seja racional, seja a melhor saída, matar alguém. A única violência admissível para mim é a da fera encurralada, porque sem saída, em legítima defesa, sem racionalização, completamente instintiva, compreensível porque em nome da vida! Que mundo é este que nós vivemos? Um mundo em que as direitas querem nos matar, querem que matemos! Um mundo em que as esquerdas querem que nos matemos, querem que matemos também! Estão todos a serviço da morte e não da vida!

- Você é uma pessoa vazia, não tem mais nenhum ideal, se você vivesse (não vão deixá-lo viver, depois do que você fez) sua vida seria mísera. Não valeria um peso sequer!

- Você mais uma vez tem razão, eu não acredito em mais nada! Ou melhor, em quase nada, a não ser duas coisas. Primeiro, o ser humano é uma ilha cercada de mentiras por todos os lados! Segundo: só um valor tem realmente consistência para mim: a vida humana. Essa ilha não tem preço!

- A essa altura devem estar achando que eu fugi também. Vamos embora!

- Essa sua capa de desprendimento e heroísmo também não seria uma maneira (um tanto perigosa, admito) de se esconder dos seus sentimentos mais profundos: a atração pela morte, o medo da rejeição social, uma última e patética tentativa de dar um sentido à vida, arriscando-a e comprometendo a vida alheia?

-Você já foi longe demais com sua loucura. Vamos!

-No angustiante caminho de volta o soldado Carlos ainda perguntou-me se eu tinha planejado receber as medalhas também, quando voltássemos, são e salvos, vitoriosos. Senti vontade de responder-lhe que as receberia sim, mas as daria par meu sobrinho jogar botão... Mas me contive, não aceitando a provocação.

Não, as coisas não aconteceram, exatamente, “ipsis-litteri”, como aqui relatei. Mas a essência da guerra espiritual que travamos, está toda aqui. O leitor que me desculpe se aqui ou ali, a memória, que é muito imaginativa, falhou. Mas francamente, como último esforço de alguém que pela manhã será fuzilado por um implacável pelotão, até que o texto não está dos piores.

Os primeiros raios de sol já surgiram há algum tempo e eu aproveito segundo a segundo para desfrutar dessa belíssima paisagem. Lá embaixo as ondas erodindo as pedras, aqui neste despenhadeiro o álcool erodindo as minhas entranhas. E eu que sempre fui abstêmio!Mas Carlos não se negou a atender esse meu ultimo pedido, dando-me caneta, papel e essa garrafa de aguardente. Eu pretendia despedir-me de Heloisa, para depois encher a cara, mas preferi beber apenas o suficiente par espantar um pouco o medo (se é que está sendo possível...)

Daqui a pouco todos estarão de pé e a primeira missão será dar um fim neste que lhes aturde com as suas insanidades. Mas essa corrente que me prende à árvore, apesar de humildemente curta, não é o suficiente par impedir-me de realizar um ousado e último gesto. Esses meus algozes devem vir logo, logo fazer-me companhia no lado de lá. Que pelo menos a minha desgraça não tenha sido em vão.

Vai minha garrafa, cuide bem desse misterioso e perigoso papel com este sofrido texto, essa bomba que como uma vingança, lanço ao mar numa (vã?) tentativa de que um dia ela possa explodir cabeças viciadas.

“Vai buscar quem mora longe, sonho meu”... – conforme cantam nossos vizinhos brasileiros...

Falkvinas, abril de 1982.


Nelson Rodrigues de Souza

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