domingo, 1 de março de 2009

Teatro Completo- Um Conto


Teatro Completo

Eu não diria que o estudo da História não serve para nada. Não é uma certeza minha, mas também não posso esconder que tenho esta desconfiança. Afinal de que adiantou tanto escarcéu em torno dos horrores e atrocidades da Alemanha nazista se volta e meia tragédias correlatas surgem à tona? O povo americano tem caído em tantos contos-do-vigário fatais! O povo argentino, dentre outros célebres, no das Malvinas, agora neste 14 de junho de 1982, em que vivo, onde capitula depois de mais de 700 mortos (o povo inglês no das Falklands, por que não? Morreram uns 250 ingleses!) e outras loucuras mais.

Será porque a História é sempre contada por aqueles que sobrevivem e estes, no mínimo, carregam o pecado da omissão? Não foi um renascentista que taxou a antiga era de Idade-Média? Não estaria ele sim mergulhado numa era de trevas sutis em que as cores vivas mascaram um negror fugidio, mas com uma presença ainda mais marcante? Será que se todos soubessem quem realmente afundou os navios brasileiros no litoral Nordeste e nos conduziu ao palco europeu da Segunda Guerra Mundial, frustrando a nossa condição de platéia perplexa e colaboracionista, os acontecimentos decorrentes, para nós, teriam sido os mesmos?

Não sei... A História é uma coisa muito complicada. Eu, aliás, nem sei contar direito a minha própria história, que estranhos desígnios fizeram-se estar aqui agora em 1982 divagando assim sobre estas questões. A História: o Teatro Completo de Deus!... Só sei que estou entretido nesta maldita tarefa mecânica de copiar documentos antigos (será que um dia isto será mais fácil?) e minha mente ociosa, fica patinando no vazio, tentando desesperadamente dar sentido ao tempo que se esvai sem que nada realmente importante aconteça.

É... Não é nada confortável assistir a aulas de História surradas à noitinha, discutindo o sexo dos anjos e passar o dia estagiando neste Arquivo do Estado que é um tugúrio, manuseando esses alérgicos papéis amarelados que colecionam poeiras de outras eras. Meus dentes precipitam-se uns sobre os outros, tilintando, quando toco essas soturnas folhas centenárias, mesmo com a ponta dos dedos.

Ah! Que vontade de espalhar estes papéis todos pelos ares, assustar estes companheiros “artistas” que estão aqui abúlicos, comendo com os olhos, docilmente, essa papelada toda e alheios ao meu sofrimento, crentes que estão fazendo um trabalho da mais alta relevância!

Oh! Que ironia do destino! Quando entrei para aquela Faculdade e pensei que estudaria confortavelmente na Varanda o eterno conflito da Senzala com a Casa Grande, eu não imaginei que na prática do aprendizado eu vivenciaria isto sim a condição de escravo! Escravo privilegiado sim, mas que não deixa de ser escravo!

Quando aquele professor gosmento... (Sim, procurei que procurei um adjetivo para qualificá-lo e só encontrei este, definitivo, que lhe cai como uma luva!). Quando aquele professor gosmento pelo qual a princípio eu nutria certa simpatia, convidou-me para este trabalho, dizendo-me que eu aprenderia bastante com a cópia de documentos antigos imprescindíveis, os quais serviriam de alicerce para sua inquestionável tese de doutoramento, eu imaginei que teria de ter, dali então, muita paciência. Eu precisava e preciso de dinheiro e aceitei o trabalho de imediato. Mas a extensão do tédio que esta atividade me provocaria, isto estava fora do alcance da mais pessimista das minhas expectativas.

Duzentos e vinte e três arrobas de café transportadas... Nossa! Estou com mania de grandeza! Não é que eu acabei lendo dois dois? É apenas um! Essa paralaxe me mata! São vinte e três arroubas! Vamos conferir o resto...

Pronto, esse foi meu único deslize. Essa tarefa é medíocre demais para que eu me dê ao luxo de errar.

Ah!... Hoje não vou à aula, tenho de fazer uma coisa diferente. Não agüento mais chá-de-cadeira durante o dia e à noite para variar, também. Meu corpo tem de funcionar. Não posso ficar simplesmente, eternamente passivo, um depósito dócil do lixo cultural acumulado pela humanidade nestas eras todas: “A constituição é como as virgens, foi feita para ser violada”; “Quando ouço falar em Cultura, tenho vontade de puxar o revólver”; “Os orientais não dão valor à vida como nós”; “O país vai bem, ainda que o povo vá mal”; “O que aconteceu no Natal de 800? – A coroação do Rei Carlos Magno...” etc... etc... Quem sobreviverá incólume a tal lúgubre coquetel de sandices?

Hoje vou é procurar Tereza, convidá-la para irmos ao cinema, levá-la sem que se dê conta a um poeira desses por aí que exibe um pornô e depois quando estivermos motivados... Mas tem de ser um pornô decente, íntegro, verdadeiro! Chega de mentiras! Quero cenas de sexo explícito mesmo! Que pelo menos as histórias marginais sejam reais!

Tereza... Tereza... Tereza que se distrai com a Psicologia esperando marido... Será que este infeliz serei eu? Não sei! Se as coisas assim continuarem, eu não vou corresponder aos sonhos desta menina! Ela vai se enjoar de mim! Já não agüenta mais ouvir-me queixar da insegurança que tenho em relação ao futuro. Com essa barra econômica violenta, tendo de humilhar-me neste inferno daqui, com a pressão da família que me queria médico, engenheiro e não cantador de cordel de luxo como tendo a ser como professor de História, o que farão de mim? Em que me transformarei? Na melhor das hipóteses um professor de meias-verdades? Mas com essa concorrência e esse salário de fome que recebem conseguirei uma boca e conseguirei sustentar as bocas que dependerem de mim?

Tereza eu te amo! Eu juro, você ainda vai se orgulhar de mim! Você verá! Eu não só vou contar a Historia como vou fazer a História! E não vai ser copiando ou mandando alguém copiar esses documentos que eu vou fazer uma boa História. Que garantia temos de que o que está escrito nestes volumes é verdadeiro? Se um historiador do ano 2982 (se esse planeta ainda existir naturalmente) for estudar o atentado do Riocentro no ano passado e se baseasse nos laudos oficiais a que conclusões chegaria? Esse trabalho que me consome, além de chato, irritante, é inútil. Sísifo foi condenado a carregar uma enorme pedra ao alto de uma montanha e deixá-la rolar para em seguida carregá-la novamente, eternamente, mas pelo menos teve a grandeza de desafiar os deuses. E eu o que faço? Carrego enorme pedra simplesmente pela razão mais torpe possível: preciso de uma granazinha! Ah! Mas isto não pode nem deve ficar assim! Eu vou começar agora, já, neste momento, a mudar o destino que para mim traçaram! Como é que eu não pensei nisto antes?

Matar uma velhinha usurária para ficar com os seus penhores como fez aquele desvairado personagem do Dostoievski em “Crime e Castigo? Não!... Isto é coisa do século passado! Eu sou um Raskólnikov moderno! Eu não me atrevo a sujar as mãos de sangue! Este ato eu reservo para os tolos! Agirei de modo bastante sutil.Antes de qualquer coisa lerei esses documentos de cabo a rabo e depois irei reescrevê-los com paciência, muita paciência, mantendo o estilo e fazendo mudanças significativas, mas de tal maneira que não torne o texto grotesco porque senão chamarei a atenção. Infelizmente não poderei contar os fatos exatamente como acho que devem ter acontecido pois o choque ideológico do professor quando da leitura me denunciaria instantaneamente.Mas se as mudanças forem feitas de maneira bem discreta, com bastante elegância, leveza e tato, ele vai cair que nem patinho!Vai ser um trabalho de artista! De ourivesaria!Depois que o professor Epaminondas acabar sua tese, eu procurarei outros. Oferecer-me-ei para trabalhar até por menos! Esses meus coleguinhas alienados, que estão apenas em compasso de espera do titulo de doutor, não merecem esse trabalho! Tomarei o lugar deles! Eu farei e acontecerei na História deste país! Sacudirei a sua memória! Eu sou a fênix que renasce das poeiras!

Tereza, minha adorada musa, saio desta vidinha inglória, para entrar na História!

Nelson Rodrigues de Souza

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