quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Debaixo do Tapete Mágico- Um Conto








Debaixo do Tapete Mágico

A maior astúcia do demônio está em fazer-nos crer que ele não existe.

Charles Baudelaire

Rio de Janeiro, anos 80

Aquela já era a hora da alcatéia, tal o número de fantasmagorias que perambulavam pela mente insone de D. Ruth. Extenuada, levantou-se e apelou para o calmante receitado para a tranqüilidade dos seus sessenta anos. Antes de voltar ao seu quarto, por alguns leves murmúrios, sentiu que o filho Flávio ainda estava acordado. Mas este não estava sozinho. Será que mais uma vez Márcio brigara com o pai e apelou para uma pousada na casa do amigo? Inquieta, D. Ruth esteve na eminência de encostar o ouvido à porta para descobrir que palpitante questão atraia a vigília dos amigos mesmo numa madrugada adiantada como aquela. Como outras vezes em que a tentação havia lhe tocado, ela também recuou envergonhada do seu ímpeto de indiscrição.

Não. Não seria desta vez que D. Ruth descobriria que o seu caçulinha Flávio e o filho de sua amiga Ester, Márcio, ambos já ultrapassando o status de balzaquianos, eram amantes inveterados, cada um tendo no outro a sua benigna droga pesada, com a qual procuravam aliviar as vicissitudes de um cotidiano entorpecedor. Com o pretexto das brigas freqüentes que Márcio travava em casa, os dois ousavam amarem-se no próprio apartamento de Flávio, às portas fechadas, contando com a compreenção de D.Ruth que não podia privar o filho de dar uma acolhida e estava longe de poder aquilatar a extensão daquela amizade. O homossexualismo para D.Ruth estava associado a criaturas mais desvairadas e não a homens feitos, barbados a la Che Guevara, com aparências graves e másculas, enternecendo sempre mas sem perder a dureza.

Foi o próprio Flávio quem apresentou a mãe do amigo. A amizade das duas foi instantânea. Ligava-as além das idades próximas, dos dramas de uma mesma geração, um fio condutor preciosíssimo: os problemas relativos a dois filhos teimosos, para os quais elas sonhavam um requintado matrimônio tradicional e danados que eram, não davam o menor sinal de que elas poderiam morrer tranqüilas, se eles tivessem encontrado companheiras que caso não fossem capazes de substituí-las completamente, o que era mais provável, fossem habilidosas o suficiente para sobrepujá-las em boa parte.

Mesmo conhecendo-se há quase quatro anos, as amigas ainda tinham muito que se descobrirem, principalmente quanto a uma fase aguda da vida de D.Ester, que as duas apesar de não gostarem de lembrar, misteriosamente todas as vezes em que se viam juntas descobriam-se depois de algum tempo meditando sobre esses anos de chumbo. Já havia um bom tempo que D.Ester não visitava o apartamento da amiga como fazia antes, pois esteve adoentada.

Sim. Márcio quando estudante de Direito, lá pelo final da década de sessenta teve uma leve participação nos movimentos de resistência ao regime. Sua colaboração foi coadjuvante, sem maiores elucubrações teóricas e ideológicas. O que o moveu foi uma indignação mais ao nível do estômago do que advinda de elaboradas conceituações como as que moveram muitos companheiros seus. Ele participou da urdidura da logística de um assalto. Mas foi só essa desesperada empreitada, da qual tinha consciência mas não participou diretamente, ser mal sucedida, colegas deram com a língua nos dentes compulsoriamente e ele viu-se envolvido numa teia pesada o suficiente para ter a trajetória de sua existência abalada e comprometida.

Numa via-crúcis compartilhada por muitas outras mães, D.Ester acompanhou todas as transferências de prisão do filho, apelou para militares conhecidos, outros conhecidos de conhecidos e evitou que Márcio sofresse dissabores mais complexos e definitivos que as marcas das sevícias a que tinha sido submetido e que tinham impregnado corpo e alma irreversivelmente. Quando depois de três anos a realidade do cárcere transfigurou-se em memória para o filho e este se viu finalmente livre, graças aos esforços sobre-humanos, principalmente da mãe, é que esta teve tempo de voltar-se para si e descobrir que seu coração já não tinha o mesmo vigor de outros anos e inspirava cuidados.

Foi depois de uma longa convalescência após implantação de mais uma ponte de safena, que D.Ester viu-se animada para fazer uma visita à casa da amiga. Enquanto os filhos trocavam olhares carinhosos e perplexidades no quarto, as duas mulheres trocavam confidencias e dúvidas na sala:

­- Esses nossos filhos são uns vampiros que nos sugam todo o sangue e nós somos umas tolas porque sentimos o maior prazer nessa sangria – disse D.Ester.

- É. Mas tem hora em que a gente perde a paciência. Parece que meus filhos casaram-se na hora exata. Mais um pouco e eu não os agüentaria mais. Quando eu me lembro que estou viúva, os filhos já encaminhados, quase todos casados, eu tenho já dois netos, morando apenas com o Flavinho, eu suspiro aliviada.

- Que é isso D.Ruth? Eu sei que a senhora gostava bastante do Sr. Sérgio, não é verdade?

- Gostava claro. Mas olha, eu acho que a gente conseguiu viver tantos anos juntos porque nem tínhamos tempo de brigar. Minha vida com os filhos todos era um corre-corre e o Sérgio como militar vivia viajando. Algumas poucas vezes eu o acompanhava, mas na maior parte das vezes não Eu disse que não brigávamos, mas não é esta bem a verdade. Certa vez insisti muito com ele para que me explicasse o teor do seu trabalho. Ele tinha impulsos violentos, imagina. Sabe o que ele fez?

- Não!

- Agarrou-me, colocou meus dedos na fresta da porta do quarto e ameaçou apertá-los se eu insistisse naquele tipo de pergunta. Eu nunca mais toquei no assunto. Se era segredo militar que ficasse com ele. O importante é que não deixava nada faltar na casa.

- Então a senhora não sabia o que ele fazia?

- O meu Sérgio fazia de tudo de tudo um pouco: isto eu sabia. No começo me contava das aulas que dava para os novatos. Mas depois, como já disse as missões dele eram segredos que não compartilhava comigo. Não gostava de falar muito sobre o trabalho não. Quando voltava, continuava com as aulas com os novatos e em casa só queria saber dos filhos... É. Morreu novo depois de uma viagem que fez para o Pará. Tinha ainda muitos postos a serem galgados pela frente!

- Mas garanto que se a senhora estivesse com todos aqui como há alguns anos atrás ainda encontraria forças para cuidar bem de uma casa. Quando necessário a gente descobre forças que jamais sonhou que possuísse.

- É. Quando eu me lembro de sua peregrinação para salvar a vida do Marcinho eu me pergunto se eu teria tido o mesmo sucesso.

- Teria sim... teria sim.

Neste ponto a conversa viu-se ameaçada de estagnação. D.Ruth arrependeu-se de ter tocado no assunto. D.Ester sentindo a amiga um tanto embaraçada procurou quebrar o gelo, enfrentando o tema com firmeza:

- Come é que era a sua vida em sessenta e oito, sessenta e nove, mil novecentos e setenta D. Ruth ?

- Minha memória anda já tão fraca. O que eu me lembro é que nós já morávamos aqui no Rio de Janeiro, os meus filhos entrando já para a faculdade, o Sérgio trabalhando bastante, passando até muitas noites fora. O país ganhou a copa do Mundo, não foi? Mas de política mesmo eu não me lembro de muito pouca coisa. Sabe, eu nunca gostei disso. A única coisa que eu me lembro é que ficamos num engarrafamento monstro no túnel porque tinham seqüestrado um embaixador, alemão ou americano, sei lá...

- É, eu também vivia como a senhora. Sempre voltada para os filhos. A senhora ainda deveria estar mais bem informada do que eu. Afinal o seu marido era militar. Mas eu... O Olívio, como faz ainda hoje, vive mergulhado na papelada do comércio. Eu, que nunca gostei de ler nem as manchetes dos jornais, quando recebi a noticia da prisão do Márcio é que eu caí em mim. Como que aquelas coisas todas estavam acontecendo e nós não sabíamos de nada?

- Eu hoje também me assusto, lendo algumas coisas que o Flávio traz para dentro de casa. Esses jornais ditos alternativos... Como é que tanta coisa podia estar acontecendo e nós completamente alheias?

D. Ester ficou ainda mais séria. As lembranças todas que lhe assomavam à mente agora e ao mesmo tempo em que lhe transmitiam uma invejável sensação de orgulho, de batalha vencida, traziam-lhe angústias que quase a faziam emudecer-se completamente e retirar-se do recinto de forma prematura. Por fim controlou-se e ainda teve fôlego para levantar mais uma questão.

- Sabe, D.Ruth, às vezes chego a pensar que as pessoas todas sabiam muito bem do que estava acontecendo, mas fingiam que não sabiam de nada para não sofrerem, não se comprometerem. Eu é que não pude, infelizmente, ficar alheia a tudo aquilo, por mais que não gostasse. É como meu filho adora repetir, aquele danado nasceu com o pé esquerdo: “Se a gente não cuidar da política ela cuida da gente”...

D. Ruth sentiu-se um pouco atingida pela observação da amiga. Mas a uma mãe que padeceu tanto, tudo se perdoava. Tentou, entretanto, concentrar a conversa nos filhos:

- O Márcio sempre foi assim revoltado com tudo?

- Os outros irmãos dele também não são fáceis. Mas estes acabaram mais cedo ou mais tarde se aprumando na vida, se engajando numa profissão e se casando. O Márcio é que sempre foi realmente o mais difícil. Algumas vezes é o filho mais carinhoso do mundo. Outras,é o diabo personificado! Um cão chupando manga! Uma árvore cheia de espinhos!

- Flávio também me dá essa impressão!

- Ele nunca se deu bem com o Olívio. Meu marido é muitas vezes, bruto, grosso, autoritário, mas é a maneira dele ser. Sempre trabalhou o máximo que pode para dar o melhor para a família. Já era tempo do Márcio criar uns anticorpos .Mas nada. Desde que largou a faculdade de Direito não se estabilizou em nenhum trabalho. Não suportava ver ninguém lhe mandando fazer o que quer que seja. Assim não dá. E olha que já está com os seus trinta e três anos!

E era justamente sobre o trabalho que os dois amigos conversavam no quarto. Depois de trocarem algumas carícias ligeiras, Flávio julgou que já houvesse acarinhado o suficiente o amante para poder dar início então, coração a coração, às cobranças:

- Já sei que você vai dizer que eu estou parecendo com o seu pai, mas realmente está na hora de você dar certo adeus a essa sua eterna disponibilidade. Não sei como você se suporta 24 horas por dia nesse marasmo. Aquele trabalho que seu pai lhe arrumou por mais enfadonho que fosse pelo menos desviava você dessas suas neuroses, desse seu ensimesmamento. Você está sempre esperando um amigo daqueles velhos tempos que hoje está na política ou se “aburguesou” de vez como tecnocrata de uma grande empresa, um amigo que vá lhe redimir desses anos todos em que você passou acabrunhado, mas esse amigo, esse “tio da América”, esse “Godot” não vem, não veio... ou veio? Será que sou eu esse amigo, alguém que além desses trocados que lhe empresta, do quarto que compartilha de vez em quando, só tem esses carinhos e essas palavras para lhe dizer?

Ora seu danado – respondeu-lhe Márcio, abraçando-o e beijando-lhe a boca, um tanto forçosamente, obrigando-o a calar-se. Flávio tentou reagir, franziu a testa, tentou manter-se frio, irredutível, mas não foi forte o suficiente. Cedeu à argumentação irrefutável do desejo. Mas até certo ponto também, pois se lembrou que por ser ainda de tardinha, os dois vampiros ainda tinham de recolher as asas até a madrugada, quando estariam livres do exorcismo dos olhares e barulhos intimidadores.

Flávio deixou o companheiro novamente alinhado, reparando-lhe a gola, dando compostura aos botões da camisa, à braguilha e censurou-o suavemente:

-Você é impossível! Quando eu quero falar bem sério com você, você me desmancha...

-Eu já sei tudo o que você quer me falar. Eu me digo isso todos os dias, a toda hora. Não é por falta de consciência não. Eu sei que as coisas do jeito que estão não podem continuar, mas qual seria esse novo estágio, eu não sei...

- Não é possível que você não goste mais de mim. Ainda bem que você não perdeu o gosto por sexo...

- É só tomar parte de um grupo que não dá nem um mês, eu descubro que tem algo falso ali, as relações começam a se deteriorar. Sabe, eu começo a perguntar, o que eu estou fazendo aqui? Não seria melhor estar em casa? Lendo, estudando? Entretanto até isso eu não tenho feito direito!

- Você perdeu o gosto pelo Direito. Considera o Direito a burocratização da Justiça!Ou o que deveria ser justiça. Tudo bem, mas você precisa descobrir o prazer por outras atividades. Escrever... sei lá...

- Daqui a pouco você vai me dizer que eu tenho de escrever as minhas memórias...

- Não graceje Márcio..

- Olha, eu tenho pensado em pintar... Mas é só eu falar em levar uns cavaletes, pincéis e tintas para casa que meu pai tem um troço... Nós precisamos arrumar um lugar só da gente. A arrogância, a brutalidade e insensibilidade do meu pai, querendo me fazer de qualquer jeito um homem de negócios como ele e a culpa por ver a minha mãe neste estado com essas crises periódicas me paralisa! Minha vida tem sido cuidar dela de hospital em hospital, como ela fez comigo de prisão em prisão...

- Tudo bem. Mas eu acho que dá muito bem para você cuidar da sua mãe e de você também... Eu tenho vontade de sair daqui também, de não ter essa vida vigiada, mas descubro que não posso deixar minha mãe mais sozinha. Meus irmãos com essa roda-viva deles já não tem condições de dar atenção a mamãe. A vontade que eu tenho é contar-lhe tudo a nosso respeito para que você venha definitivamente morar conosco. Mas cadê coragem? Eu acho que ela jamais nos compreenderia, nos perdoaria. A cabeça dela precisaria dar uma guinada de 180 graus. Ela precisaria nascer de novo!

- Eu também tenho essas mesmas desconfianças em relação aos meus pais. Uma noite em que mamãe estava no hospital, já fora de perigo de uma operação seriíssima, nós dois estávamos juntos, tão contentes que eu quase que aproveitei o momento de encantamento para me revelar por inteiro para ela. Mas eu me contive a tempo. Eu disse pra mim mesmo: “seu louco você está querendo é matá-la de vez, ficar livre dela, cortar o mal pela raiz, destruir o objeto da culpa.” Você não imagina como me senti mal...

- Eu imagino... Eu imagino... Quantas vezes me surpreendi pensando como me sentiria aliviado depois que a velha morresse? A gente não pode evitar que esses pensamentos nos possuam. Depois eu me belisco e digo: Que bobagem Flávio, que bobagem...

A conversa estava assumindo um tom sombrio demais para o espírito dos amantes. Márcio tentou então solucionar o problema com a exposição de um novo problema:

- E o seu trabalho Flávio, como vai? Pelo menos ele tem lhe dado prazer?

- Olha, estar em contacto com as crianças é uma coisa que ainda me fascina. Eu adoro dar-lhes aula. Até certo ponto compensa o filho que não tenho e provavelmente não teremos... mas o ensino da matemática, isto já está me aborrecendo. Estou tomando certa alergia da lógica. A lógica pra mim só existe nos compêndios de matemática. Onde está a lógica nesta vida absurda que nós vivemos?

Flávio e Márcio teriam ainda muitas queixas para desfiarem. Entretanto as duas mães bateram na porta para chamarem os filhos para desfrutarem de um saboroso lanche. Enquanto cada mãe, à mesa da cozinha servia as guloseimas, misturava o café e o leite e os adoçava, cada uma cuidando de sua ovelha negra, Flávio emitindo cúmplices piscadelas para o amigo, sugeria-lhe em transmissão de pensamento: “Como seria bom se esse quarteto pudesse se desvencilhar dessas cruéis amarras invisíveis que atavam suas vidas e estivessem livres para desfrutar não de um, mas mil momentos como esse!”

Sem terem como convencer D.Ruth que naquele dia Márcio havia brigado em casa e estando com pouco dinheiro, os dois amantes, ávidos por se entregarem, dissiparem os fantasmas que vieram à tona durante o dia, não resistiram e foram à rua mais suspeita da cidade, aquela onde em diminutos e recônditos quartos de lúgrubes hotéis para cavalheiros, certas espécies ocorriam para render tributo a certo império da falocracia. Ao subirem as escadas, estavam tão ansiosos que quase atropelaram o guarda que descia após ter recolhido a propina habitual, que dava aval ao estabelecimento.

Um tanto instigado pelas investidas de Flávio, Márcio comunicou à família que compraria uns cavaletes, pincéis e tintas. O Sr. Olívio transmitiu o seu pensamento a respeito com uma só palavra: “Ridículo!”. D.Ester tentou colocar panos quentes: “Deixa ele fazer o que tem vontade. Isso é uma terapia para ele”.

Márcio sentiu-se mais atingido com a observação da mãe do que a do pai. Deste, já tinha entronizado a peculiar falta de tacto. Mas a observação da mãe o chocou, pelo modo sutil com ela declarava que dava pouca importância ao evento. “É um trabalho! Não é passatempo! Não é uma terapia que eu estou procurando!” O pai como era habitual, suportava que o filho às vezes até lhe levantasse a voz, mas que respondesse exaltado à mãe recém-convalescente, isto não perdoava: “Dobre a língua quando se dirigir à sua mãe! Com essa atividade que você quer arranjar, você não paga nem uma caixa de remédios para ela!.Como se não bastasse tudo que você já lhe aprontou!...

Como nas outras vezes a Márcio só restou procurar alívio no regaço do amante. Ao chegar no apartamento do amigo, este sentiu que os olhos de Márcio apresentavam uma inquietação, um desespero que fugia do de costume. Nesta noite não se deram nem ao trabalho de fazer companhia a D.Ruth em sua odisséia televisiva e foram logo para o quarto confabularem sobre as previsíveis frustrações do dia.

Márcio estava como que possesso:

- Eu já estou farto de ter de aturar meu pai! Ele está sempre me jogando na cara o quanto custa a minha “hospedagem”. Mas o que ele gasta com as suas amantes, isso não tem importância... Você sabia que eu tenho no interior de São Paulo uma irmã?

- Como?

- Eu nunca lhe contei antes porque eu queria esquecer essa história. Eu descobri que ele teve uma filha com uma de suas amantes. Sempre escondeu ao máximo esta história. Mamãe sempre soube que ele tinha outras mulheres, mas se resignava. Eu soube dessa filha porque o flagrei numa conversa com um ex-sócio. Ele nem imagina que eu ouvi e sai devagar do escritório, sem ser notado. O meu ódio por ele só fez aumentar.

Flávio ficou atônito. Não imaginava que os conflitos familiares do companheiro fossem assim emaranhados. Mesmo assim arriscou um comentário:

- Tudo bem. Eu sei que essa sua raiva é incontrolável, mas você não pode se deixar contaminar, se consumir por ela. Você tem que ultrapassar essas barreiras. Você não pode passar a vida inteira em branco porque essas rédeas todas lhe prendem. Esse circulo vicioso tem de ser rompido em algum ponto... Esse torvelinho de pressões paralisantes tem de ser desfeito...

- Eu sei que essa conjuntura familiar não é a principal causa. Esse meu desacerto é culpa minha. Certa vez fui a um pai de santo, ele jogou os búzios e me disse que eu reencarnei nesta vida à força. Não queria vir. Pode? Mas eu já escolhi uma trajetória, mas eu preciso de certa ajuda, de alguém como você.

- Eu não sei direito como lhe ajudar. A minha vontade é trazê-lo para cá. Mamãe não iria entender!

- Você pretende contar tudo à sua mãe?

- Eu não sei o que faço, eu não sei. Mas vou tentar fazer mamãe compreender que você é meu amigo, você é filho de uma amiga nossa, nós temos o dever de ajudá-lo...

Nem bem D.Ruth preparou-se para ir deitar e D.Ester lhe liga perguntando pelo próprio filho. Estava muito preocupada, pois desta vez ele havia se retirado de casa mais furioso do que de costume. D.Ruth tranqüilizou-a. Ele estava em longa conversa com o filho. D.Ester acalmou-se.

A viúva mais uma noite gramou uma inquietante insônia, levantou-se, tomou o comprimido de praxe e ao se dirigir ao seu quarto teve a impressão de ouvir alguém chorando no quarto do filho. Relutou várias vezes antes de encostar o ouvido na porta para descobrir quem chorava. Assustou-se com a resposta: eram duas almas que choravam. Mas as revelações não pararam por aí: não eram apenas dois corações em frangalhos, mas dois seres que para se consolarem dos labirintos que a vida lhes lançava, juravam amar-se, se ajudarem sempre e quaisquer que fossem os empecilhos, faziam questão de lembrar-se que mesmo todo respeito que devotavam às mães, não era mais digno do que o amor que se dedicavam. D.Ruth ouviu tudo aquilo em estado de choque. O primeiro impulso foi bater bruscamente na porta e interromper aquele interlúdio amoroso. Mas não teve coragem. Cambaleante, dirigiu-se ao seu quarto, caiu na cama petrificada e mordeu o travesseiro com toda gana possível.

Na manhã seguinte o simples fato de Flávio, desatento, deixar o leite que estava sendo fervido entornar, foi o suficiente para a mãe lançar-lhe recriminações:

- Onde é que você está com a cabeça? Veja só o fogão como é que ficou... Depois é a empregada aqui que tem de limpar...

- Mamãe!...

Já há um bom tempo que Flávio não via a mãe assim tão mal humorada. Por uns segundos passou-lhe pela cabeça que a mãe ouvira tudo que conversaram. Resolveu então inquiri-la:

- A senhora passou bem a noite, mamãe?

Com medo de que o filho pudesse descobrir que ela o espionava D.Ruth fez questão de pintar outro quadro:

- Dormi otimamente como há muito tempo não dormira. Por quê? Estou com uma má aparência?

Antes de uma próxima visita de D.Ester, os amantes em todas as vezes que se encontraram só tinham uma idéia fixa: a oportunidade em que comunicariam a D.Ruth que o filho Márcio precisava de ajuda e precisava vir morar com eles.

Era exatamente sobre isso que os dois amigos conversavam enquanto D.Ruth e D.Ester entretinham-se na cozinha com uma nova receita de bolo.

- Meu marido anda tão estranho – contou D.Ester à amiga. Disse que precisava resolver um negócio urgente no interior de São Paulo e viajou. Quando voltar vai ter um troço com o ateliê que o Márcio montou no quarto! Meu marido me critica muito. Diz que eu vivo dando trela para as manias do Márcio. Que eu nunca o deixei educá-lo como ele queria. Que eu estraguei a educação do nosso filho. Essas coisas. Põe a culpa toda em cima de mim!

- Nós não somos culpadas de nada!

D.Ester a princípio não entendeu o que a amiga quis dizer, mas depois se lembrou que Flávio também criava problema para sua mãe e completou:

- Esses nossos filhos poderiam arrumar uma mulher logo, casarem-se e nos deixar mais tranqüilas...

- É D.Ester poderiam... poderiam...

Quando o filho transmitiu à mãe a notícia da necessidade de transferência, pelo menos por algum tempo, do amigo para o apartamento deles, ela a princípio criou objeções, insistia que Márcio não podia deixar a mãe sozinha, que alguém precisaria socorrê-la nos momentos de crise, mas depois cedeu diante da argumentação de que seria pior ele ficar em casa criando diariamente atrito com o pai que não suportava a idéia de ver o quarto do filho transformado num ateliê de pintura.

A presença do amante do filho na casa e convivendo com eles diariamente, por mais que a perturbasse, não foi forte o suficiente para que D.Ruth se denunciasse que já sabia de tudo. Ela o tratava com educação, respeito, mas com calculo excessivo. Por mais que Márcio tentasse cativá-la, sacudi-la de suas concentrações vespertinas, quando ela elaborava trabalhos de cerâmica, ela não se dava por vencida e cautelosamente mantinha distância. Ela nem mais ousou ouvi-los encostando um ouvido na porta. Considerou essa experiência como encerrada.

Constituído este estado das coisas, não provocou estranhamento quando Márcio terminou o seu primeiro quadro e estando Flávio a essa hora dando aulas, foi mostrá-lo, exultante, à sua anfitriã e esta não expressou a menor emoção diante da obra do namorado de seu filho: uma figura andrógina que sobrevoava a cidade do Rio de Janeiro, passeando em um tapete mágico.

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://www.desconspiracao.com/images/Disney/aladdin.jpg&imgrefurl=http://www.desconspiracao.com/tag/conspiracao/&usg=__r2qEgcck8NfWD6JBK4656HNgZAw=&h=374&w=382&sz=30&hl=pt-BR&start=30&tbnid=rgSdcOpeAtba_M:&tbnh=160&tbnw=163&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Rio%2Bde%2BJaneiro%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=556&vpy=325&dur=2587&hovh=222&hovw=227&tx=115&ty=107&ei=yfNrTKCuCcKqlAfcqsShAQ&oei=uPNrTOyACYa8lQfcmdXrDw&esq=2&page=2&ndsp=17&ved=1t:429,r:8,s:30&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjpo_IEBLpghUMHidD7z2wojt37s4YYliEyjmC546YUiVxNRC4C1VxDgu1TRmTsP05WUMtRXpbOsVrY9Q9OgkvDYfMpeEURn0xRTbJc6ulQb_25lseA0a-OXy-V1U3doaub0CvyFocuhhk/s1600/chagall05a.jpg&imgrefurl=http://opiniatica.blogspot.com/&usg=___Q1hbvah7jAAElC45p2G_BICLq4=&h=705&w=500&sz=41&hl=pt-BR&start=30&tbnid=XoWWdwTxKw_mDM:&tbnh=169&tbnw=120&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Rio%2Bde%2BJaneiro%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=558&vpy=126&dur=3766&hovh=267&hovw=189&tx=108&ty=120&ei=yfNrTKCuCcKqlAfcqsShAQ&oei=uPNrTOyACYa8lQfcmdXrDw&esq=2&page=2&ndsp=17&ved=1t:429,r:2,s:30&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj3EzaWiFMOgrZ6WTQWnurIr2lRhqfplhtG6R929X8pEF26jMCdrtQaiqEyeMMqbzaixQB7Ca_V9QeJXx6OR1qDykBbC_hEMfJXvpOjm116PcVSs3G4fyAO6AcWuO75ip4_D-XZ4oqdyko/s400/For+the+gays.jpg&imgrefurl=http://detalhesdaavida.blogspot.com/2009_08_01_archive.html&usg=__G23wjIJZLHm5mF8770L14dWuzvE=&h=399&w=400&sz=24&hl=pt-BR&start=0&tbnid=PhwSJqTeUQPY5M:&tbnh=134&tbnw=165&prev=/images%3Fq%3D%2522Tapete%2BM%25C3%25A1gico%2522%2522Gays%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=1102&vpy=67&dur=557&hovh=223&hovw=224&tx=163&ty=129&ei=efZrTMWBIYGdlgeJ5PzUDw&oei=efZrTMWBIYGdlgeJ5PzUDw&esq=1&page=1&ndsp=32&ved=1t:429,r:7,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://veja.abril.com.br/180298/imagens/cinema1.jpg&imgrefurl=http://veja.abril.com.br/180298/p_086.html&usg=__lnnGy7-59jAvZiWrAPbgIgwVkFw=&h=170&w=450&sz=24&hl=pt-BR&start=168&zoom=1&tbnid=PERFLvihHLqccM:&tbnh=70&tbnw=184&prev=/images%3Fq%3D%2522O%2BQue%2B%25C3%25A9%2BIsso%2BCompanheiro%253F%2522%2B%2522Bruno%2BBarreto%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DG%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:10,4520&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=959&vpy=259&dur=3713&hovh=136&hovw=360&tx=157&ty=79&ei=mS5tTMj0F8WqlAe-memmDw&oei=Ny5tTM7DO4W8lQf94bSEDQ&esq=2&page=9&ndsp=21&ved=1t:429,r:13,s:168&biw=1360&bih=671

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://50anosdefilmes.com.br/wp-content/uploads/2009/12/oficial3.jpg&imgrefurl=http://50anosdefilmes.com.br/2009/a-historia-oficial-la-historia-oficial/&usg=__-yedP42VOow9Ah1BJA4Q83WIe5w=&h=433&w=800&sz=26&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=8cShDvcgqu0MBM:&tbnh=126&tbnw=169&prev=/images%3Fq%3D%2522A%2BHist%25C3%25B3ria%2BOficial%2522%2522Luis%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=654&vpy=88&dur=8471&hovh=165&hovw=305&tx=163&ty=105&ei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&oei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&esq=1&page=1&ndsp=36&ved=1t:429,r:5,s:0

http://www.google.com.br/imgres?imgurl=https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgS4IQM1QM03ZuCI7bdztO-6FjF1aB0PXZnwucpeiWuyGXyqPW3UMeZM9TDvM_rP2yvy8_l4vM37638gL87keXFAcRKGluGzLkuLXNda-fnugnLo-owLz_I9Zs7jx79ouPLJC9fHZwzWslE/s320/HistoriaOficial.jpg&imgrefurl=http://filmespoliticos.blogspot.com/2009_09_01_archive.html&usg=__FLdlB5KKtFNfo7WmNR3ndJV-OpY=&h=320&w=226&sz=25&hl=pt-BR&start=0&zoom=1&tbnid=dqfbk8PV8h6d_M:&tbnh=126&tbnw=92&prev=/images%3Fq%3D%2522A%2BHist%25C3%25B3ria%2BOficial%2522%2522Luis%2522%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DN%26biw%3D1360%26bih%3D671%26tbs%3Disch:1&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=234&vpy=43&dur=1213&hovh=256&hovw=180&tx=103&ty=133&ei=bTFtTKoGxoCUB-G0mKwO&oei=VzBtTKOoL4OClAeqvYCjDQ&esq=20&page=1&ndsp=36&ved=1t:429,r:1,s:0

Nelson Rodrigues de Souza

Nenhum comentário:

Postar um comentário