Clandestinos do Universo
Pátrias, famílias, religiões e preconceitos, quebrou não tem mais jeito. Agora me diga o que você ama de verdade e o mundo pode ser seu- Antônio Cícero/Marina
Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2010
Querida,
Perdoe-me se não tiver pressentido pelo meu olhar, no nosso ultimo encontro: não irei ao nosso casamento na Igreja Nossa Senhora da Pacificação hoje à tarde. Uma pena, pois a Igreja é lindíssima. A razão é muito simples: apesar de todo amor que sinto por você, dado a minha inquietação espiritual atual, seria um mal-estar muito grande (para não dizer uma enorme violência) participar de um ritual com o qual não comungo. Depois de um longo período de ateísmo desenfreado, agora que esboçam-se sinais de crença, num credo divergente do credo oficial, mesmo que eu tenha encontrado a paz na sua pessoa, eu não posso contrariar as minhas inclinações para satisfazer as vontades de sua família.
Supersticiosa como eu sei que você é, não deverá passar maior vexame pois avisou-me que só sairia de casa, com o véu e a grinalda a envolver-lhe o seu belo corpo, quando sua irmã lhe desse um toque pelo telefone de que eu já teria chegado à Igreja: é a vantagem de você morar perto dela na Rua Cândido Mendes da Glória.
Por que não lhe revelei ontem as minhas intenções? Querida, você sabe da minha dificuldade em articular um discurso: eu só expresso perfeitamente o que penso/sinto quando escrevo. Além do mais, eu só amadureci integralmente as minhas idéias depois de amargar uma braba insônia nesta madrugada de sábado. Daí o tom distante, frio que esta minha carta pode perpassar.
Querida, você deve se lembrar que as nossas desavenças realmente foram detonadas neste fatídico “cursinho de noivos” que fomos compelidos a fazer, dado que você insistia em satisfazer o desejo de seus pais. “Não nos custa nada” – você dizia. Eu, que tinha ido, já com um pé atrás, acabei reiterando os meus conceitos (ou preconceitos?). Também pudera! Convenhamos: o Padre Babosa é de morte! Uma figura, digamos, nos valendo de um eufemismo, inefável!
Contando com a passividade de uma platéia que parecia estar ali só de passagem (e estavam mesmo!), um púlpito pelo jeito, simples e unicamente interessado em obter o seu diplominha-passaporte para o céu e o casamento no religioso, o reverendíssimo desatou um arrazoado que faria inveja ao criolo-doido do Stanislaw Ponte Preta!
Eu reconheço que muitas das críticas que ele fez, mesmo que ousadas, são pertinentes, mas o estilo metralhadora-giratória que ele empregou, os conselhos eróticos-cabalisticos que ele nos deu (como “se olhares com lascívia para uma mulher que não seja a tua, já terás cometido adultério no coração”), a imagem petrificada da descrença (fantasma que tento exorcizar no momento) e o que é mais grave, o tom autoritário do discurso, sem nenhuma abertura para o diálogo, provocaram a minha ira.
Querida, com você , apesar de constrangida com tudo que estava ouvindo, parece que os “laços de sangue” falaram mais alto e foi contra mim quando tentei intervir:
- Padre, o senhor que acha um absurdo as pompas do Vaticano, desfia-nos um rosário interminável de ladrões-homens-públicos, joga na nossa cara que a finalidade precípua desse curso é arrecadar dinheiro, por que é então que consente em participar dessa farsa? De individuo aturdido, perplexo, angustiado, já não me basta olhar no espelho?
- Você é muito jovem ainda para entender certas contradições... Como eu ia dizendo, o sexo só tem sentido, dentro do matrimônio e para a procriação...
Eu ameacei levantar-me, você me fulminou com o olhar, lembra-se? E me segurou. Foi um autêntico calvário suportar aquela interminável maratona toda. E as músicas? Ah, as músicas carolas!
O que mais me incomodou não foi, em meio a lampejos de lucidez, o desfile ininterrupto de impropérios (ainda que dizer-se a favor da pena de morte porque Cristo supostamente disse que “as arvores que não dão bons frutos devem ser cortadas” é demais para qualquer mortal...), o que mais me perturbou foi a visível falta de fé! Tudo menos isso! Ele é em primeira instância um profissional da fé: a universidade da vida pelo menos devia tê-lo formado nesta especialidade, não pode ter colado! Beatriz, me compreenda: eu não posso, não devo, não quero voltar ao inferno de antes!
Beatriz (agora sou eu que vou apelar para um tom paternalista), você ainda é jovem. Eu sei que também ainda é muito dependente da família, tem medo de magoar principalmente a sua mãe, mas acho que está na hora de você pensar um pouco mais pela sua cabeça e crescer. Sinceramente, não fique ofendida com isso: eu não sinto sinceridade na sua religiosidade. Não me parece uma coisa de dentro para fora (muito pelo contrário). Não pense que essa é uma crítica que eu lanço a você simplesmente. É um comentário que vale para a maior parte dessa sociedade em que navegamos. Essa pseudo-religiosidade de muitas das pessoas que me rodeavam era uma das causas maiores dessa minha longa viagem, descrença adentro.
Ah Beatriz, como eu gostaria de ver e ouvir as pessoas conversando, serenamente, sem medo algum, expondo com clareza, com a maior sinceridade, com o coração aberto, as suas convicções (ou intuições) a respeito de Deus e tudo que O cerca. Ou se for o caso (por que não?) as suas dúvidas, vacilações ou descrenças completas. Em suma, a religiosidade real do momento que estão vivendo, não a religiosidade oficial, virtual, conveniente. Eu sei que este exercício é muitas vezes doloroso, diabólico até, mas não custa sonhar... sonhar... Não é Deus o maior sonho que o inconsciente coletivo humano já engendrou?
Oh! Beatriz, se tal acontecesse não seríamos esses corpos solitários, clandestinos de um universo inapreensível...
Beatriz minha doce Beatriz, como seria bom se você cortasse de vez o cordão umbilical que lhe prende à família e viesse ao meu encontro. Lembra-se como demorou a consentir que lhe tocasse, que desfrutasse das delícias do seu corpo, uma coisa tão bela, tão simples e ao mesmo tempo tão vital? Beatriz, larga as amarras desse mastro já por demais erodido pelas mesquinharias, hipocrisias, intolerâncias e venha atracar neste porto, onde um navio com um formato de um tênue coração lhe espera...
Se você, passado o susto, está rindo por dentro agora, pensando assim: se esse bandido quer que eu largue minha família, saia da área de influência dela, deixe de “pensar como eles” e caia numa nova teia de aranha, para “pensar como ele”, está muito enganado! - já é meio caminho andado. Fico até satisfeito.
Garanto querida que até que a nossa convivência possa se tornar uma nova e tirânica gaiola, você terá vivido muitos momentos daqueles que “preenchem toda uma vida”. De qualquer forma será algo muito diferente do marasmo em que lhe querem mergulhar agora!
Beatriz, estou de partida para São Paulo e tão logo defina aonde vá morar, ainda que provisoriamente, eu lhe mandarei uma carta, com mais detalhes e o endereço.
Espero que você, minha pássara vadia, venha comigo se acasalar e deixe esses estilingues cruéis lançando pedras ao vento...
Até mais ver...
Um beijo afetuoso
(eu te amo muito)
Dantas
Nelson Rodrigues de Souza
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