segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Horreur Concurs- Um Conto Sobre Cinéfilos


No início dos anos 80, os três cinéfilos caminhavam a largos passos pela Avenida Atlântica de Copacabana, fugindo dos pingos de chuva cada vez mais insistentes e fortes, indícios de um temporal. Tinham acabado de assistir “As Duas Faces da Moeda” de Domingos Oliveira.
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Leon- Se der cara, viva a vida! Se der coroa ...

Joaquim – É. Eu diria que é uma obra prima desconhecida .Esses críticos são umas bestas...

Arnaldo – Eu prefiro “Todas as Mulheres do Mundo”.

Vislumbraram um modesto restaurante ( modesto nas instalações, mas luxuoso nos preços – diria Joaquim mais tarde).

Leon- É. A chuva não vai passar, vamos entrar e tomar um chopinho? Que tal?

Os “parceiros da aventura cinematográfica” escolhem uma mesa no canto, sentam atabalhoadamente sob os olhares perplexos do garçom, pedem uma rodada de chope acompanhada de tira-gosto e começam então a “exalar celulóide” por todos os poros.

Arnaldo – Sabe, eu só converso sobre cinema com quem curte adoidado, se não eu enlouqueço. Lá em casa eu não abro a boca. Quando alguém me fala que viu tal filme eu já ataco logo com evasivas.

Joaquim – Eu ouvi uma vez que a vida é um plano-sequência ad infinitum... È lindo isso, não é? ... Ah!... Vocês viram no “Anos JK”? Quando Márcio Moreira Alves fez aquele discurso, que foi bode expiatório do AI-5, tem batidas de coração tiradas de filmes de Frankstein...

Leon- Por falar nisso, uma curiosidade.Vamos fazer uma brincadeira, vocês topam?

Arnaldo – Opa!... Depende...

Leon- Cada um descreve a seqüência do horror que mais o marcou. Depois a gente entra num consenso para ver qual a mais interessante. Olha, não vale o assassinato da Janeth Leigh no banheiro em “Psicose”.

Joaquim – Deixa eu começar. Eu já tenho a minha na ponta da língua. Eu não esqueço jamais.Vocês sacam aquele filme do Wyler, o ultimo grande filme dele, “O Colecionador”, com o anjo exterminador do “Teorema”, o Terence Stamp e a Samanta Eggar? Pois bem, a seqüência que mais me fez arrepiar os pelos, não é uma seqüência, foi simplesmente um close. É, um close! Apenas o rosto do colecionador... È quando fica patente que ele não pretende soltar a sua presa nunca mais... que ele não vai cumprir a promessa de libertá-la....Nossa!Eu gelei.

Leon- Pois eu estou achando que você quis ser intelectual demais. Pra mim sabe de uma coisa, a seqüência mais terrível que eu vi... vocês podem rir de mim... é horror bem explícito entendeu. Nada de pedantismo.

Joaquim – O que você está querendo insinuar, heim?

Arnaldo – Nada... nada... Deixe ele contar...

Leon – Foi no “Alien, o Oitavo Passageiro”, naquela refeição, quando todo mundo pensava que o monstro tinha sossegado, o cara começa a se sentir mal, a vomitar e o bicho sai de sua barriga, rasgando-a e surgindo imponente, metamorfoseado numa coisa parecida com foca. Teve gente que se retirou do cinema naquela hora!

Arnaldo – Bem, agora é a minha vez...

Joaquim – (cinicamente) Já sei... já sei... Você vai dizer que foi quando a amiguinha de “Carrie, a Estranha”, a visita no túmulo, depois que a mãe da Carrie morre com várias punhaladas, a casa cai, a Carrie morre... você não espera que possa acontecer mais nada e surge aquela mão por entre as flores no túmulo... puxando a Amy Irving....

Arnaldo – Não é nada disso não... Deixa eu falar.A seqüência de horror que mais me impressionou, eu vi na televisão, no horário nobre.
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Joaquim – Já sei. Já sei. Foi a moral da história editada num final de Jornal Nacional...

Leon- Não avacalha. Não avacalha.

Arnaldo – Bem, vocês sabem o que é que foi?

Joaquim – Deixa de fazer suspense cara!...

Arnaldo – Foi quando o ex-presidente Geisel discursava severamente. Tinha fechado o Congresso Nacional e decretado o pacote de abril de 1977. Eu olhava para a cara dele e tentava compreender. Os olhos dele ardiam, inclementes. Passava um pito na gente. Mas me deu um frio na espinha quando senti que ele não estava mentindo, sendo cínico. Falava sinceramente. Vinha do fundo do coração. Ele acreditava mesmo naquela loucura toda. Estava crente de que fazia o que deveria fazer, que aquilo tudo era o melhor para nós. Isso nos tirava qualquer alívio...

A esta altura até o garçom e demais convivas já estavam atentos. Joaquim e Leon escutavam estupefatos.

Arnaldo – Sabe, eu me lembrava daquela música “Somos Todos Iguais Nesta Noite” (Canta timidamente o estribilho).

“Pede à banda pra tocar um dobrado
Olha nós outra vez no picadeiro
Pede à banda pra tocar um dobrado
Vamos dançar mais uma vez.”

Leon– Opa! Vamos quebrar esse clima de tragédia grega, esse baixo astral.Golpe baixo o seu, heim?... A gente não precisa nem discutir quem ganhou.Vamos ver se a gente muda de assunto.
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Joaquim – Bem pessoal, o garçom já está fazendo sinal, pois ele quer fechar essa espelunca aqui. Não sabia que fechava tão cedo. Que tal a gente se encontrar amanhã no Ricamar pra assistir “Orgia ou o Homem que Deu Cria” do João Silvério Trevisan? O filme ficou proibido durante anos....

Caminharam então por Copacabana com os pingos de chuva agora fracos e conversaram, com um atropelando o outro, sobre as seqüências mais eróticas do cinema.

Nelson Rodrigues de Souza

3 comentários:

  1. Cinéfilo é fogo, viu? Fiquei lendo com a maior atenção para saber a cena de horror mais marcante de cada um, enquanto pensava qual seria a minha. Gostei da narrativa e do enfoque político. Mas, olha o ato falho: "Joaquim e Nelson escutavam estupefatos". De onde saiu esse Nelson? (rss). Assim você se entrega!
    Abraços. Gina

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  2. Gina,
    Obrigado pela descoberta do ato falho.É que no início o personagem Leon se chamava Nelson, como uma homenagem a Nelson Pereira dos Santos. Os três têm nomes de cineastas brasileiros importantes. Mudei todos os Nelsons para Leon para não haver indentificação comigo,pois no fundo sou todos e não um só. Mas esqueci do detalhe que você apontou. Vou corrigir.
    Beijos,
    Nelson

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  3. Olha, que legal! Eu não tinha percebido esse detalhe: os nomes dos personagens "homenageando" diretores brasileiros. Bem apropriado. Para mim, o Nelson era você (e não deixa ser, em parte). Quem sabe se não é premonitório? Um futuro de cineasta ainda lhe aguarda.
    Bjs. Gina

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