terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A violência nossa, ainda que recôndita, cães de palha que somos


Eu fui uma criança pacífica. Sempre envolvido com história em quadrinhos, livros didáticos (e mais tarde romances, contos e novelas), além da programação da televisão e o cinema. Nunca fui uma criança briguenta, violenta. Era de índole tranqüila e conciliadora, de modo geral. Isto não me impediu que em briga com meu irmão mais próximo chegasse um dia a morder a mão dele. Mas este rompante não era difícil de explicar.

Eu era aquele tipo de criança que tendia a viver isolada, voltada para os estudos. Chegava ao requinte de subir num pé de goiaba diariamente, contar em voz alta um seriado de super-heróis que imaginava e terminava todo dia com um gancho forte, o qual seria resolvido no dia seguinte. Com as demais crianças fazia algumas incursões ao largo de um córrego da região e ia com elas com um estilingue caçar passarinhos em meio a trilhas de bambuzais. Gostava desta aventura, mas atirava para errar. Não tinha coragem de matar um passarinho sequer. Jogar bola até que eu tentava, mas era um perna de pau. Decididamente esportes não era o meu forte.

Como o mundo das crianças não tem nada de inocente (quem duvida assista “Cria Cuervos” de Carlos Saura) a minha homossexualidade, mesmo que eu não fosse aquela criança tida como “pintosa”, era facilmente percebida pelas outras crianças e como eu era um aluno, modéstia à parte, muito inteligente e cheguei a ganhar até um prêmio como melhor aluno do curso primário, eu despertava ódio feroz em certos garotos que não me deixavam em paz.

Suportei os xingamentos de três deles na vizinhança por um longo tempo. Um dia, veio-me uma força que não sabia que tinha. Eram todos mais ou menos da minha idade e eu que não sabia nem o que era dar uma porrada, não suportando mais tanto achincalhe, peguei um deles pelas mãos, usei os pés dele como uma arma e bati nos outros dois, girando meu improvisado porrete. Enfim, dois deles receberam uma surra com as pernas de um dos companheiros, todos ficaram completamente assustados com minha reação e saíram então em debandada, sendo que nunca mais me incomodaram, nem ousaram se vingar.

De onde veio esta força, esta agressividade toda que não sabia que tinha?Como a adrenalina subiu tanto? Até hoje sou bastante controlado no que diz respeito a reações físicas, procurando resolver minhas pendengas pela força das palavras. Nisto sou forte mesmo. Sou de escorpião e minha linguagem é cortante. Já enfrentei meu pai com as palavras, de uma forma que meus irmãos mais velhos jamais ousaram. Cheguei a pensar que teria de sair imediatamente de casa, o que aconteceu um pouco mais tarde de uma forma menos conflituosa, mas esta não é a história que me importa aqui agora.

No meu trabalho o pessoal sabia que quando aprontavam alguma coisa, viria nem que fosse no dia seguinte, uma resposta contundente. Eles já preparavam os ouvidos. Mas no que diz respeito a embates físicos, o que aconteceu entre mim e as três crianças foi muito marcante e inusitado.

Sempre fui superdotado para Matemática, Letras e História. Para as Ciências não. Nesta última área aprendi o que fui obrigado a estudar, penando com os laboratórios e oficinas como se fosse um desastrado Woody Allen em suas comédias. Por isso sempre fui um Engenheiro atípico, voltado para áreas mais conceituais e matemáticas.

Quando assisti no final da adolescência “Sob o Domínio do Medo” (EUA/1971) de Sam Peckinpah “a Gestalt se fechou”. Eu saí do cinema, sem nenhum exagero, completamente sem rumo, “não sabia o que fazer do resto da minha vida”. Minha identificação com o matemático vivido por Dustin Hoffman foi total, visceral e bastante perturbadora.


David Summers (Dustin Hoffman) é um pacato matemático que se isola num sítio no interior da Inglaterra com sua mulher Amy (Susan George) para realizar seus estudos. Há pessoas que passam a trabalhar numa obra em sua garagem. Amy, entediada com o casamento acaba se envolvendo com os operários e é estuprada por um deles. Sendo a casa cercada e David envolvido num jogo de bastante intimidação e medo, ele apela para todos os recursos possíveis para defender a si e à esposa, numa orgia de violência, insuspeitada até então. A meia hora final é uma das mais marcantes da História do Cinema pela violência que o matemático consegue extrair de si, como se ela estivesse apenas adormecida, latente e precisasse de uma causa “nobre” para eclodir.

O grande mérito do filme é que se ele é inequivocamente violentíssimo, não há nenhuma gratuidade. É uma obra que a rigor sintoniza com as teorias freudianas de Id, Ego e Superego, sendo o primeiro as forças desconhecidas e impossíveis de dominar num certo estado, “um reservatório pulsional desorganizado”, sede de “paixões indomadas”, sede da “pulsão de vida e de morte”, numa visão mais simplificada, sem as contribuições que vieram de outros psicanalistas como Lacan e Melanie Klein, por exemplo. Mas com certeza é uma visão do ser humano que contrasta frontalmente com a do “homem bom por natureza” de Rousseau. Não é á toa que Freud afirma que sem repressão não há indivíduo, vida ou civilização e aqui temos uma verdade humana profunda e não uma teoria caudatária de totalitarismos. O antológico personagem Alex de “A Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick é Id em estado puro, sem nenhuma noção de Ego e Superego.

Vendo “Sob o Domínio do Medo” eu entendi de onde tirara a força que me fez enfrentar na infância aqueles garotos com tanta agressividade. Vi outros filmes de Peckinpah depois, como “Meu Ódio Será Tua Herança” em que as crianças brincando com formigas e escorpiões no início já dão o tom do que virá depois. Os banhos de sangue em câmera lenta do chamado “poeta da violência” são aqui mais fortes, mas “Sob o Domínio do Medo” permanece como uma das experiências cinematográficas formadoras. Se ainda tinha algum vestígio de ingenuidade, perdi isto para sempre depois de assisti-lo. Quando vi a versão extraordinária de Roman Polanski para “Macbeth” pouco tempo depois, aí já fiquei totalmente consciente das trevas inconscientes que trazemos dentro de nós.

Eu que me considero uma pessoa pacífica até hoje, entendo e não tenho o horror que a protagonista de “A Inglesa e o Duque” de Eric Rohmer tem em relação à Revolução Francesa. Claro que os descaminhos desta me incomodam bastante. Não tenho nenhuma simpatia pelo período de Terror instaurado por Robespierre, com a revolução comendo os seus próprios filhos, como tantas outras, mas não consigo lamentar os acontecimentos mais do que necessários que levaram à queda da Bastilha, pois nunca consegui aceitar a máxima cristã relativa a oferecer a outra face quando se apanha. Mas acredito que esta já é outra história. Fiquemos com o impacto de “Cães de Palha”, título original de “Sob o Domínio do Medo” que se apóia numa parábola poética de Lao Tse:

O universo não tem preferências
Todas as coisas lhes são iguais.
O céu e a terra não são humanos
Não tem qualquer piedade.
O sábio não tem predileções,
É impiedoso ao tratar as pessoas como cães de palha
que serão destruídos no sacrifício.
O sábio não tem predileções como os homens conhecem.

O universo é como o fole de uma forja,
que embora vazio fornece força.
Inesgotável.
Esvazia-se sem exaurir-se
Quanto mais trabalha, mais alento produz.

Muitas palavras se esgotam sem cessar
E conduzem inevitavelmente ao silêncio.
Quando mais falamos no Universo
Menos o compreendemos, o Tao.
O melhor é escutá-lo no silêncio.

O céu e a terra são imperecíveis
Se são imperecíveis é porque não dão vida a si mesmos.
E assim sendo, têm longa duração.
Por isso o sábio coloca-se em último lugar
e chega na frente de todos.
Quando esquece suas finalidades egoístas
Conquista a perfeição que nunca buscou
...
do Tao Te King.

2 comentários:

  1. Nelson,
    decididamente e, sem nenhum exagero, quero deixa registrado que este é, sem duvida, entre tantos já escrito ,na minha opinão, o seu melhor texto.
    Saliento que, com muita propriedade, você comenta filmes,pensadores, suas experiencias... de uma forma vívida e harmonica.
    Muito embora minha preferencia seja, ainda hoje, por livros, aprecio um bom filme.
    "Sob o Domínio do Medo" , ainda solteira, eu vi, isto porque tinha como principal "hobby",naquele tempo, os filmes.
    Sai do cinema assustada e, este filme, marcou os meus vinte e um anos.
    Sai do cinema com dor no peito porque a história nos faz fazer contacto com um uma ENERGIA que possuimos e, que desde cedo, aprendemos frea-la.
    Em alguns momentos, quando somos profundamente magoados, ela pode vir a tona e é sempre de forma intensa e incontrolável....Isto faz com que tenhamos medo porque nos tira do controle.
    È um vulcão extinto mas que pode entrar em erupção...
    Muitas vezes as pessoas não tem como impedir...e saber que este impulso existe dá medo sendo que é o proprio medo de ser magoado, machucado, na minha opinião, o combustivel dessa reação de Legitima Defesa e, quase sempre, da Honra...Adorei!!!!!Ana

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  2. corrigindo na primeira linha a palavra "deixar" ,ficou sem o r, e dizer que em crise gramatical e existencial não acentuei nenhuma palavra...beijos

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