sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Sortilégios da Memória Contra a Miséria Material e Espiritual


Em 1989, Joãsinho Trinta arrebatou o sambódromo com a originalidade e impacto de seus enredo “"Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia", onde várias facetas da miséria brasileira, com áreas teatralmente coreografadas ( o que hoje ficou mais comum) eram cruamente expostas mas sem prejuízo da alegria inerente ao Carnaval.

“Quem Quem Ser Um Milionário?”, produção anglo-americana de 2008, dirigida por Danny Boyle, tendo como co-diretor Loveleen Tandan, baseado no livro Q&A de
Vikas Swarup, roteirizado por Simon Beaufoy (do sucesso contagiante “Ou Tudo ou Nada”), com trilha sonora arrebatadora de A.R. Rahman (dentre outros elementos fílmicos bastante felizes), é uma experiência incomum no cinema contemporâneo ao mesclar os truques melodramáticos e muita música de Bollywood, a precisão técnica e arte de contar histórias dos melhores exemplares de Hollywood , bem como o espírito do chamado cinema independente que trabalha às vezes com câmeras ágeis, atores muitas vezes pouco ou nada conhecidos, bastante realismo, dentre outros recursos.

O melhor de toda esta experiência, entretanto, é que se ela nos remete ao trabalho antológico de Joãsinho Trinta que não folclorizou o Brasil, roçando suas feridas, mas mantendo a alegria, o mesmo faz Danny Boyle que nos traça um retrato das contradições fortes de uma Índia moderna onde há favelas que se transformaram em prédios comerciais num sinal de pujança econômica e ainda tem arraigados costumes religiosos que criam castas rígidas, onde alguém como o protagonista de 18 anos Jamal Malik (Dev Patel) por ter nascido numa classe bastante inferior, ao ir ganhando sucessivamente um concurso de perguntas e respostas na TV indiana, “Quem Quer Ser um Milionário?”, tem sua idoneidade contestada, pois nas suas condições de origem só um trapaceiro poderia estar na iminência de obter tal deslocamento social e tender a tornar-se um milionário.

Na publicidade e no início do filme têm-se perguntas aparentemente bobas, mas que o roteiro magnífico resolve muito bem. “James Malick está a uma pergunta de conseguir 20 milhões de rúpias: a) ele é um trapaceiro, b) ele é sortudo, c) ele é um gênio?, d) é o destino”. Outra questão também permeia a narrativa em vários planos superpostos com grande habilidade: “O que faz alguém encontrar um amor perdido?: a)dinheiro, b)sorte,c) esperteza, d) destino. Numa montagem ( de Chris Dickens) das mais extraordinárias vistas no cinema em muitos anos, uma fotografia que capta muito bem matizes do esplendor e da miséria convivendo juntos e uma direção não menos que brilhante, além do engenhoso roteiro, com rendimento notável de todos os atores ( não é à toa que o filme ganhou o prêmio da classe dos atores americanos pelo conjunto), “Quem Quer Ser Um Milionário”, aliando as convenções e inverossimilhanças de fábulas, com fortes cenas de tom realista, de forma a beirarem o surreal, um filme que teria seu título original Slumdog Millionaire forte traduzido por “Milionário Favelado” muito mais adequadamente, esbanja sensibilidade e competência narrativa para tratar das questões levantadas.

O fato de Jamal trabalhar servindo chá num call-center em Mumbai, antiga Bombaim (sabendo nós que muitos serviços americanos foram terceirizados para call-centers indianos, a baixo custo, numa destas loucuras do mundo globalizado) é bastante significativo das contradições sociais gritantes desta nova Índia que causa (ou causava?) grande admiração de mentalidades exclusivamente economicistas.

Logo de início já vemos Jamal ser torturado pelo brutamontes Sargento Srinivas( Saurabh Shukla) a serviço do policial inspetor (Irrfan Khan) com a acusação de que é um trapaceiro por ter ganho muito dinheiro no programa de televisão mesmo com sua origem social precária, desconfiados, que ele se comunica com um chip oculto com alguém na platéia, dentre outras suspeitas. Como Jamal resiste em sua inocência mesmo sob tortura, o inspetor o interroga com menos impaciência e aí flashbacks quase que proustianos surgem de forma a contar fatos importantes de sua vida como a fuga de policiais até chegar à escola a tempo de uma significativa lição; a morte da mãe por fanáticos anti-muçulmanos; as armadilhas criadas por um cafetão da miséria de crianças, que dá acolhida a ele, seu irmão Salim, à fixação afetiva de Jamal, Latika e os coloca para mendigarem, Maman (Ankur Vikal ); os sucessivos desaparecimento da amada Latika (Freida Pinto, quando adulta) em regimes infernais de dominação; os truques para ganhar dinheiro como guia improvisado no Taj Mahal; o poder emergente de Javed (Mahesh Manjrekar); o encurralamento cada vez maior do irmão Salim (Madhur Mittal, como adulto) nas malhas da marginalidade, dentre outros dramas pesados.

É destas vivências que Jamal tira as respostas para o diretor do programa de televisão Prem Kumar (Anil Kapoor), acompanhado por uma platéia típica de auditório ávida por emoções baratas e uma multidão de miseráveis pela Índia que projetam seus sonhos impossíveis de ascensão social nele, algo que vemos também no Brasil, de certo modo, com os famigerados reality-shows. É a experiência como gato escaldado que fará Jamal vencer uma situação bastante delicada.

Em seu Blog http://blog.estadao.com.br/blog/zanin/ , sobre Cinema,Cultura& Afins, talvez o mais prodigioso e instigante blog de cinema do país, Luiz Zanin, que é crítico do O Estado de São Paulo, a propósito de “Quem Quer Ser Um Milionário?”, de uma forma muito feliz e oportuna, nos lembra da pedagogia de Paulo Freire, um homem de livros que não acreditava somente na cultura livresca, mas também na força das vivências. Tanto é que era contra uma cartilha de alfabetização única para o país inteiro e sim entusiasta de cartilhas adequadas ao meio social onde as crianças vivem, o que sempre acaba atraindo a desconfiança de mentalidades que se tornaram reacionárias como o Paulo Francis do fim da vida que alegava que Freire queria sim é transmitir ideologias esquerdistas.

Que Freire (assim como acontece com Augusto Boal com seu Teatro do Oprimido) tenha sido muitíssimo mais conhecido no exterior do que no seu próprio país, onde nunca teve um cargo político de peso para transformar em realidade suas idéias, nos dá um quadro eloqüente e sintomático de nossas elites que ainda detém o mando e lucram com o analfabetismo crônico e o analfabetismo funcional, para se perpetuarem no poder.

Um verso maravilhoso de Chico César da belíssima Beradêro, “E a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”, nos dá conta das contradições do Brasil, suas forças ocultas de superação de adversidades históricas, de uma forma que lembra também a Índia que o filme nos apresenta, onde Jamal, com sua comovente integridade, está muito mais interessado em descobrir o paradeiro de sua amada Latika e retirá-la do Inferno, do que em vencer o jogo de milhões em está envolvido.

“Quem Quer Ser Um Milionário?” certamente bebeu nas águas de “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles”, outro filme extraordinário. Mas se no início estas aproximações são ressaltadas, no conjunto o filme se descola, mantendo grande originalidade, remetendo-se também ao ritmo narrativo de “Trainspotting-Sem Limites”(1996), um grande filme de Boyle sobre a devastação que o consumo de heroína provoca num grupo de amigos, “sem empregos, sem cartões de crédito, etc” em Edimburgo, Inglaterra. Há neste filme atual também aspectos do não tão bem sucedido “Caiu do Céu”(2004), onde Boyle realiza uma fábula sobre duas crianças que preocupam-se em gastar uma bolada encontrada antes que as notas fiquem obsoletas com a chegada do euro. Mas a presente obra representa o apogeu criativo de Danny Boyle e se Fernando Meirelles contribuiu com algumas centelhas para isto, ponto para os dois diretores.

Os atores que vivem Jamal, Salim e Latika em três fases da vida (infância, adolescência, vida adulta) estão todos particularmente bastante inspirados, transparecendo autenticidade, sendo muito bem dirigidos. O restante do elenco também se mostra impecável. O apresentador de televisão encontra o tom certo para o suspense contínuo com sua voz de comunicador de simpatia dissimulada. Os marginais e policiais brutais não são caricaturas ( Maman numa visão lombrosiana, que é sempre enganosa, passa por um indivíduo afável), imprimindo forte realismo em meio a tantos encantamentos.

“Quem Quer Ser Um Milionário?”, produto bastante feliz da globalização do cinema ( o que em alguns casos resulta em filmes anódinos), falado em inglês e parte em hindi, é uma celebração da arte cinematográfica em todos os seus meios expressivos.É uma festa para os sentidos com muitos elementos para reflexão. É uma lufada de ar puro para a alma, um grande sopro espiritual, uma elegia à vida e ao amor em meio a tantas perversidades e materialismo. Há quem veja no filme sinais fáceis de sintonia com o otimismo da era Obama. Mas há uma diferença fundamental: enquanto Obama é alguém eleito pelo povo que vem da elite americana que pode subverter suas propostas, por mais que se ressalte sua condição de primeiro negro a chegar à Casa Branca, Jamal com sua inquebrantável honestidade de propósitos vem das classes submersas na sociedade indiana por preconceitos sociais atávicos, travestidos de determinismo espiritual kármico.

O filme ganhou 8 Oscars dentre os dez em que concorria: Melhor Filme, Diretor, Roteiro Adaptado, Edição, Fotografia, Trilha Sonora, Canção Original ("Jai Ho", deliciosamente evocada durante os letreiros finais) e Som. Ganhou 4 Globos de Ouro, nas categorias de Melhor Filme - Drama, Diretor, Roteiro e Trilha Sonora. Ganhou 7 prêmios no BAFTA, nas categorias de Filme, Diretor, Fotografia, Edição, Roteiro Adaptado, Trilha Sonora e Som .Venceu prêmios dos sindicatos americanos de produtores, diretores, montadores, fotografia e atores, além de algumas associações de críticos. Enfim, foi uma avalanche merecida de prêmios. Mesmo assim o filme tem encontrado fortes detratores no Brasil que ou minimizam esta importância toda ou ainda o consideram um péssimo filme. Mesmo com o impulso generoso de respeitar as diferenças há algo mais forte em mim que me faz lamentar este injusto desprezo. O que reforça o teor do post de janeiro “Enfrentando dois fantasmas: o público e a crítica”.

“O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa”. Sejamos por pelo menos duas horas deuses também. E levemos estes reflexos poderosos para nosso cotidiano, para a vida que segue.

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson,
    Vou rever Slumdog, com certeza, porque eu gostei do filme, mas não consegui me empolgar. Alguma coisa me incomodou - o formato/linguagem cinematográfica, o frenetismo das imagens que não dá tempo para a emoção, ou quem sabe ... uma certa artificialidade. O panorama social, descortinando a faceta pobre e cheia de contradições da Índia, foi o que eu mais gostei no filme.
    Fui ao cinema com uma prima(professora de História), o marido dela(frequentador de filmes mais comerciais) e as duas filhas(universitárias das áreas de humanas e artes, cinéfilas e bem pensantes). Só a minha prima adorou o filme. O marido e uma das meninas não gostaram nenhum pouco; e a outra fez uma série de ressalvas. Não concordei totalmente com nenhum deles, mas também tive as minhas reservas.
    Para mim, Slumdog Millionaire, enquanto realização, dialoga muito pouco com Paulo Freire, Boal e Joãozinho Trinta, citados em seu texto. Ou será que eu tô muito implicante? A verdade é que eu prefiro O Leitor, Benjamin Button, Milk, Dúvida. E mais ainda Foi Apenas um Sonho.
    Bom, podemos debater a questão. Mas, só depois do dia 10, porque vou "navegar" mares nordestinos por uma semana. Sem tv, sem jornal e sem internet. Só natureza selvagem (ou quase). Na volta, reverei o filme.
    Beijos saudosos.
    Gina

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