terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Duelos na Sala dos Espelhos- Um Conto


Duelos na Sala dos Espelhos

Quando a psicóloga Janaína, na minha presença, explicou as regras do jogo para aqueles quatro candidatos ao emprego, finalistas de um longo processo, dois deles empataram na intensidade do brilho do olhar, mas as razões para essa luminosidade seriam explicadas mais tarde, motivações estas que se revelariam totalmente divergentes.

A proposta era clara e simples:

“Vocês serão divididos em dois grupos: um representará uma tribo de índios, o outro uma expedição civilizadora. A terra em que os índios moram tem petróleo. Os brancos estão interessados em explorá-lo e em troca oferecem todos os benefícios para os índios: uma nova terra (que seria uma reserva indígena), roupas, alimentação, escolas, serviços de saúde, habitação moderna, etc. Quem quer ser branco? Quem quer ser índio? Se houver incompatibilidade a gente resolve por sorteio.”

O número 2.014 resolveu sem pestanejar ser branco ao mesmo tempo em que o 2.017 escolheu ser índio, sem titubeios também. Os demais é que se mostraram um tanto indecisos. Depois de certa pausa, refletiram e ambos desejavam ser brancos, problema este que teve de ser resolvido por sorteio. Desta forma o 2.016 foi auxiliar o 2.014 e o 2015 o 2.017. Pares contra ímpares! (Que curiosa coincidência!).

Sem mais perda de tempo, os adversários iniciaram a contenda:

2.014 – Nós estamos aqui em missão de paz! Nossos técnicos descobriram que a terra de vocês tem petróleo, uma coisa que para vocês não tem o menor valor, mas pra gente é de maior importância.

2.016 – Vejam, nós lhes damos o que temos de melhor em troca das suas terras. Nova terra, escola, hospital, casas com luz e água encanada...

2.014 – Calma, não se afobe que você assusta os índios. Assustados eles ficam perigosos.

2.017 – Bem doutores... (É assim que devemos chamar-lhes, não?) Nós não estamos nem um pouco interessado nas suas benesses.

2.014 – Para um índio, o senhor fala palavras bonitas demais.

2.017 – Como eu ia dizendo, nós não estamos interessados nas suas bugigangas. Nós fazemos tudo o que precisamos. Entregar as nossas terras em troca de escola, hospital, etc. Escola para que? Para vocês nos impingirem os seus deuses, as suas línguas, os seus vícios? Hospital para que? Para nos curarmos das doenças que vocês nos trazem? O melhor é mantê-los a distância!.... E afinal trabalharíamos em quê, longe de nossas terras, da nossa fauna e flora?

2.014 – Vocês ganhariam uma reserva controlada por nós. Não permitiríamos que ninguém invadisse os seus novos domínios. Vocês poderiam viver da exploração de madeira, por exemplo.

2.017 – E quando ela acabasse nos tornaríamos mendigos... Não... Não, muito obrigado...

2.014 – O senhor dramatiza demais as coisas. Parece-me parente espiritual de uns brancos nossos conhecidos como sindicalistas.

2.017 – Pelo menos há sinal de gente decente dentre os civilizados.

2.014 – O que os senhores entendem de decência, civilização, moral? São capazes de costumes bárbaros: comer carne humana, flagelo com ossos, sacrifícios de crianças! São capazes até, de encerrar uma adolescente por anos a fio num recinto em breu completo!

2.016 – Sem falar na poligamia e relações incestuosas.

2.017 – Refutar as suas blasfêmias é tão fácil que eu deixo esta tarefa para o meu colega, se ele quiser responder, naturalmente. Caso contrário, eu mesmo rebato com duas ou três penadas.

2.015 – Senhores, deixemos essas discussões antropológicas de lado e tratemos de negócios, que é o que nos prontificamos a fazer. Qual é a extensão da terra que nos oferece em troca? É tão grande como a que temos?

2.014 – Hã...Sim!A terra seria um pouquinho menor, mas isso será compensado com as comodidades todas que nós poderemos lhe dar: DVDs, celulares, geladeira, fogões a gás, etc.

2.015 – Nós estaríamos interessados também em automóveis, tratores...

2.014 – Claro, claro, o que vocês pedirem.

O candidato 2.017 olhou para o seu companheiro “de tribo” com tal veemência que os olhos ameaçavam saltar das órbitas. Era como se um ritual antropofágico viesse a ter inicio.

2.017 – Olha aqui camarada, não sei a quem de nossa tribo você puxou... Temo que o seu contato com o mundo dito civilizado já tenha sido precoce! Você quer ver a nossa tribo dizimada pela diplomacia desses cavalheiros peçonhentos?

2.014 – Para um índio, o senhor utiliza palavras um tanto exóticas: camarada... não sei não...

2.016 – Será que já existe índio socialista?

2.014 – Eu não queria dizer isso diretamente, mas o meu colega não é muito sutil.

2.017 – Que alívio! Quer dizer que os brancos não são todos como vocês, predatórios desse jeito... Quando essa outra raça de vocês vier falar com a gente, quem sabe poderemos discutir melhor essa coisa do petróleo...

2.014 – O senhor não está sendo nada democrático! O outro representante da sua tribo está interessado em um acordo conosco. Logo não há porque a sua palavra tenha de ser a última!

2.015 – Vocês têm de entender, o companheiro aqui é muito apegado às nossas tradições. Ele tem dificuldade para compreender os avanços de uma sociedade moderna como a de vocês e necessidade que nós temos também de mudar.

2.014 – Então seria interessante que o senhor expusesse as nossas ofertas ao povo todo de sua tribo e ressaltasse, é claro, as limitações intelectuais desse outro representante. O seu povo certamente se arrependeria do imerecido poder que lhe concedeu. Uma pessoa retrógrada assim não pode conduzir o destino de um povo!

2.017 – Se minha tribo optasse em sã consciência pelas suas quinquilharias, eu iria em busca de outras em que pudesse viver... Nem que fosse uma inimiga nossa secular!

2.014 – O senhor fugiria é com medo do escalpelamento!

2.017 – Olha aqui meu senhor, pensando bem não há esse perigo. Esse meu colega aqui é um possuído por maus espíritos. Minha tribo não se deixaria enganar!

2.014 – Eu acredito que quem deve estar possuído por maus espíritos seja o senhor. Só aqui, já somos maioria (três contra um!).

2.017 – Olha, nós já conhecemos a sua proposta. Tem alguma coisa a mais a declarar? Nós enviaremos essa proposta à nossa tribo e em reunião extraordinária decidiremos. Mas eu tenho certeza que será um não categórico! Os senhores não levarão uma negativa de imediato, simplesmente, para mostrar-lhes que não sou autoritário!

2.014 – Eu não teria essa certeza! Eu acharia interessante o senhor já ir procurando um novo trabalho... Ser líder não é uma profissão adequada para o senhor. O senhor se encurrala todo em um labirinto ético. Não é uma política viável!

2.016 – Temos uma proposta adicional: os senhores terão passagens grátis nesses “pássaros de fogo” para poderem conhecer os seus colegas americanos, por exemplo.

2.017 – Não, muito obrigado. O nosso mundo é muito pequeno, mas nele cabem todos os nossos sonhos.

Janaína nem se perturbou. Anotou as notas baixas para todos os candidatos, ainda que tenha dado uma nota um pouquinho maior ao 2.014. As suas severas ressalvas ao candidato foram as mesmas que eu fiz: tem um pavio curto demais, entraria em atrito fácil com os nossos clientes. O 2.016 foi deveras afoito. Já o 2.015 foi imprudente e precipitado demais: assim como entregou de bandeja a terra dos índios, ele poderia dilapidar o patrimônio de nossa empresa!

Eu não resisti e contrariando os procedimentos usuais do nosso trabalho, fui conversar com o rapaz de número 2.017 para saber por que é que depois de uma semana de uma batelada de testes psicotécnicos dos mais variados tipos, ele jogou fora com a sua indisciplina, uma oportunidade tão cobiçada. Sua resposta foi lacônica e, como era de se esperar, irreverente: “Eu ainda não estou morrendo de fome”. Eu teimoso, ainda insisti: “O senhor não tem mulher, filhos para sustentar?”. “Graças a Deus, não!” – respondeu.

A vontade que eu tenho agora é de lhe dar dez com louvor e ao mesmo tempo pedir à colega Janaína que reexamine a sua avaliação. “Não façamos mais testes por algum tempo! Este rapaz tem muita garra! Seria ótimo que ele aplicasse toda a sua energia em benefício de nossa organização! Eu seria seu Pigmalião e ele minha Galatéia. Eu o faria desistir de bolinar essa medíocre flautinha e vir então tocar todos os instrumentos de nossa orquestra! Inclusive os meus....” Mas este último detalhe eu não diria a Janaína...

No mínimo seria um ruído novo na nossa persistente monotonia.


Nelson Rodrigues de Souza

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