domingo, 8 de fevereiro de 2009

Existe cinema de ator assim como cinema de autor?


Os caminhos do cinema são infinitos. Não se pode ter teorias rígidas à priori. François Truffaut, que nos anos áureos do Cahiers du Cinéma criticou muito e desprezava o que considerava apenas um “cinema francês de qualidade” sem rasgos autorais, anos depois reconheceu que “Boulevard du Crime”(1945) de Marcel Carné, antes estigmatizado, era “o melhor filme da História do Cinema francês”, para um Marcel perplexo. Isto depois de com seus incisivos artigos ter detonado diretores que considerava ultrapassados como Henri-Georges Clouzot (do enigmático “O Corvo”), descobrindo autoralidade em cineastas até então tido como menores como Hitchcock, Howard Hawks, Nicolas Ray, por exemplo.


Se ele acertou em cheio quantos ao mérito de muitos cineastas e renovou junto com seus colegas a linguagem cinematográfica mundial também na prática, além da teoria, acabou ajudando a eclipsar obras bastante importantes. Curioso e irônico é que Godard, seu companheiro de Nouvelle Vague com o tempo passou a ter acirradas discordâncias com Truffaut acusando-o de estar fazendo justamente o cinema que tanto criticaram. Godard chegou ao abuso histérico e arrogante de em entrevista de poucos anos atrás dizer que de todos seus companheiros do célebre movimento que mudou o cinema, o único que não havia se vendido ao cinema comercial seria Eric Rohmer.

Revendo Truffaut hoje ainda se nota, a despeito do que diz Godard, uma obra autoral do começo ao fim em que o fatalismo de muitos de seus filmes acaba ressaltado pela visão de mundo no exemplar “O Quarto Verde”, sobre um homem que cultua com mais ênfase os mortos do que os vivos, filme menor mas dos mais significativos para se entender algumas pedras de toque da obra de Truffaut. Claro que isto também não deixa de ser uma redução (há obras de Truffaut com outros tons, mas sempre generosos com seus personagens e seus “defeitos”), mas tem o seu sentido, quando nos deparamos com tantas obras dele que acabam de uma forma trágica por mais gana de viver que os personagens apresentem. O “nem com você, nem sem você” não é uma exclusividade angustiante do seminal “A Mulher do Lado”. Também aparece naquele que talvez seja o mais belo filme dele, “Duas Inglesas e o Amor”, por exemplo.

Complementando este cinema de autor que François detectou e representa tão bem, pode-se dizer que também existe o cinema de ator. São filmes em que não há maiores elaborações formais, mas que dão espaço para grandes interpretações. De minha parte considero-me também bastante atraído por este tipo de cinema também, sendo trabalhos exponenciais neste sentido os eletrizantes “Quem Tem Medo de Virgínia Wolf” de Mike Nichools e “Oleanna” de David Mamet, dois filmes extraordinários, adaptados de grandes textos teatrais, que não trazem qualquer ranço neste sentido, ainda que claustrofóbicos,que foram construídos habilmente para os atores brilharem e nos encantarem. Não vejo nenhum mal nisto.

“Dúvida” (EUA/2008) filme e peça de John Patrick Shanley, que ele adaptou e dirigiu com um título homônimo, não tem o vigor dos dois filmes citados, mas é uma obra em que de forma bastante hábil se contorna a pecha de “teatro filmado” e sem grandes vôos formais nos apresenta um quarteto de atores soberbos. Irmã Aloysius (Meryl Streep, em mais um de seus grandes papéis, trabalhado com técnica e emoção equilibradas e afiadas) é uma freira conservadora que não vê com bons olhos as mudanças litúrgicas que o padre Brendan (Philiph Seymour Hoffman, sempre surpreendente e emocionante) tenta implementar numa instituição católica dos anos 60 no Bronx em Nova York. Irmã Jones (Amy Adams, sem o nível dos outros dois, mas notável) conta que viu o rapaz negro Donald Miller (Joseph Foster) sair da sala do padre com cheiro de álcool, ele que é o único aluno negro da instituição. Isto é suficiente para que a irmã Aloysius inicie uma cruzada inquisitorial sem provas concretas contra o padre, acusando-o de pedofilia. Em conversa coma a Sra. Miller (Viola Davis, magnífica nas poucas cenas em que trabalha), mãe de Donald, tomamos conhecimento de uma realidade mais complexa em que a possibilidade do filho estar sendo seduzido pelo padre é um mal menor e no fundo uma proteção, dado as surras que o rapaz recebe do pai.

O mais fascinante em “Dúvida” é que se certamente a irmã Aloysius está equivocada em seus meios, a inocência do padre é um fato que cabe a nós decidir e não nos é garantida. O filme planta no decorrer de sua magnética narrativa esta grande dúvida.

Num mundo em que estamos tão assolados por horrores de quem advoga não ter dúvidas quanto a questões cruciais (e o Papa Bento XVI, com sua eterna cruzada homofóbica é um deles, assim como os militares e políticos israelenses em altos cargos) é muito importante e bem vindo uma obra que de forma incisiva e tocante trata o tema de seu título com muita pertinência e força dramática. Assistir a “Dúvida” que termina com uma seqüência que arrepia ainda mais nossa sensibilidade e instalando mais dúvidas em nossos corações é um ato de aperfeiçoamento de nossa humanidade. Pode-se desprezar um filme assim por não enxergamos vigor autoral no cineasta em questão?

O cinema é infinito, gosto de repetir. Há quem queira limitá-lo a ideais estéticos duvidosos. “Dúvida” com sua estrutura redonda me toca mais que muitos filmes experimentais e estéreis que surgem por aí. Não é toda hora que temos obras-primas de desconstrução narrativa como “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla ou “Pierrô Le Fou- O Demônio das Onze Horas” de Godard. Na dúvida se tem mesmo talento para grandes vôos de linguagem cinematográfica, optar por dar destaque ao potencial de grandes atores também é uma bela forma de os diretores fazerem cinema.


Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Prezado

    Não, não dá para "desprezar um filme assim ("Dúvida") por não enxergamos vigor autoral no cineasta em questão".

    Assisti ontem, concordo contigo quanto aos atores. Aliás, desde "Com Amor, Liza", tenho conferido tudo do Philip Seymour Hoffman (até aquela comédia, cujo protagonista era o Ben Stiller, e o Hoffman fazia o papel de um ator decadente).

    Aliás, "a dúvida" é um dos méritos da estória - mesmo em se tratando de bons filmes, não estou muito habituado a enredos que deixam para o público, o julgamento de determinadas questões da trama.

    Por coincidência, estive na locadora para pegar "Pai Patrão", e acabei justamente "O Quarto Verde", que você cita nessa postagem.

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  2. Ainda estou sob o impacto de Dúvida, visto ontem. Com certeza é um filme que perderia o seu vigor se não contasse com a interpretação de grandes atores. Eles deram cor e força ao texto - excelente, diga-se de passagem.
    O que mais me impressionou no filme, no entanto, foram as palavras da mãe de Donald (Viola Davis, estupenda!)ao conversar com a diretora da escola. A postura daquela mãe merece uma reflexão. Aliás, o grande mérito do filme é exatamente provocar dúvidas, que vão muito além, extrapolam as lançadas na tela. ´
    Memorável o duelo de titãs: Meryl Streep e Seymour Hoffman magníficos! Quanto à inocência do padre eu não tenho dúvidas, pelo menos em relação à acusação em questão. Para mim, a grande dúvida foi a que ele plantou no íntimo da Irmã Aloysius em relação a ela mesma.
    Abraços. Gina

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