quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Insustentável Leveza do Consumidor- Um conto. Um filme?


No início dos anos 80 fiz no Parque Laje, um curso de dramaturgia com João das Neves ( de “O Último Carro”, de muito sucesso de público e crítica) e outro em paralelo com Alberto Salvá ( de “Um Homem Sem Importância”, uma obra-prima do Cinema Brasileiro pouco ou quase nada comentada). Apesar dos estilos de aula diversos os dois confluíam para uma mesma técnica. Sugeriam aos alunos que antes escrevessem um conto para depois transformarem em uma peça ou roteiro. Cheguei a escrever dois textos: ironicamente João gostou do meu roteiro (“Só falta filmar”) e Alberto se comoveu muito com minha peça. Sentiu-se como o pai retratado ali e me disse que se ela fosse montada na Europa teriam uma boa idéia do que estava acontecendo no Brasil naquela época. Já João considerou minha peça apenas um happening. Não viu ali maiores qualidades. Já Alberto, acredito eu, não esperava que eu desenvolvesse todo um argumento dado, pois havia sugerido que cada um fizesse apenas uma parte. Talvez venha daí seu silêncio. Não apontou nenhum defeito nem qualidade no texto. Apenas calou-se. O final do filme que ele sugeriu eu abandonei e criei outro, mas o argumento realmente é dele e, se não em engano, tinha sido transformado em um episódio da série de televisão “Carga Pesada”. Um dia se filmarem o roteiro, certamente constará: argumento de Alberto Salvá.

Saí destes cursos embatucado e encucado. Por que vou esperar a sorte de ter minhas peças encenadas e roteiros filmados se posso escrever contos que já são obras acabadas? Assim depois uma temporada curta no curso de Português-Literatura na UERJ à noite, conforme já comentei em outro post, passei a ler contos desesperadamente, eu que já era fã do gênero. O conto me pareceu o gênero literário mais próximo do cinema. Já o romance, principalmente os mais caudalosos, se aproximam mais do cinema quando temos empreitadas como a de Rainer Werner Fassbinder como “Berlim Alexanderplatz”, adaptação em série para televisão, depois exibida nos cinemas, do famoso romance de Alfred Döblin, com mais de 12 de horas de duração. Isto não impede que tenhamos adaptações extraordinárias de romances para filmes bem mais curtos do que o de Fassbinder. Exemplo: “A Insustentável Leveza do Ser” de Philip Kaufman, que captou cinematograficamente a essência do romance de Milan Kundera, que é o que importa. Caso contrário vamos ficar eternamente lamentado, de forma elitista, que o filme é bom, mas o romance é muito melhor...


O conto a seguir foi escrito nos anos 80, mas foi devidamente atualizado para os dias hoje, acredito eu, sem prejuízo de sua pertinência. Na forma que adquiriu não está de forma alguma datado. Tirem suas próprias conclusões, como de habito.
Nelson



A Insustentável Leveza do Consumidor

Passei por aquele armazém de secos & molhados e olhei com desdém para o português que estava plantado no balcão, boquiaberto, inconformado com a escassez de fregueses. Também... Quem mandou não se adaptar aos novos tempos e continuar naquele exíguo espaço, abarrotado de prateleiras mesquinhas, onde para obtermos o que queremos, corremos o risco de derrubar incontáveis latinhas, empilhadas segundo a lógica de um castelo de cartas?

Cheguei na praça desejada que comportava uma Babel de mambembes comerciantes, esses mascates anacrônicos que teimam em expor suas bugigangas, algumas pirateadas e as rudimentares especiarias. Não perdi tempo neste sol escaldante para contemplar-lhes as prendas precárias e dirigi-me o mais depressa possível a esse supermercado supersimpático que há alguns meses faz a delicia dos moradores do bairro. Enxuguei o suor da testa e passei a usufruir as benesses de seu ar refrigerado regenerador.

Quem diria que por detrás desses edifícios já um tanto caducos, quase que num subterrâneo, estaria um templo de tal envergadura, aonde se pode comprar de tudo sem maiores atropelos e a preços bem mais razoáveis? De posse do carrinho iniciei o passeio pela seção de legumes e frutas, pretendendo dar-lhe prioridade sobre as demais. Não é que eu quisesse entrar numa onda de naturalista obcecado como tantos, mas simplesmente queria organizar dietas mais equilibradas, para ter o colesterol, os triglicerídeos e a glicose em níveis saudáveis.

Entrei na fila de carnes, frios e queijos, mas minha nascente irritação com a demora, não passou dos limites. Foi só o tempo de acompanhar aquele rock manero que tocava nos auto-falantes e fazia zunir os ouvidos dos freqüentadores, indistintamente, até mesmo dos caretas mais refratários ao gênero.Consegui carnes, enfim, para toda semana, mas magras, cortadas já para bifes e que deveriam ser preparadas numa grelha, sem gordura! Escolhi frangos em cortes e alguns poucos peixes, pois não é qualquer um que me agrada. Fiquei assustado com a idéia de que estes frangos tivessem muitos hormônios cancerígenos, mas o que se há de fazer? Não posso ficar paranóico.

Quando encerrei a lista dos produtos de limpeza, cuidando para que em todos os rótulos constasse a qualificação de biodegradável tive um contratempo, mas de somenos importância: ninguém ali sabia o que era rodo e em que lugar estava! Tentei explicar a um funcionário que era uma espécie de vassoura de água, mas não adiantou. Uma dona de casa, solícita, veio então em meu auxilio e localizou um exemplar junto aos baldes, pazinhas e piaçavas. Estava na cara! Não sei como fui tão lesado. Mas o funcionário tinha de saber do que se tratava. Deu-me vontade de fazer uma reclamação, mas desisti. Não ia me aborrecer no meu passeio e prossegui com a minha odisséia doméstica.

Estacionando em frente às bebidas lembrei com nostalgia dos tempos em que havia etiquetas de preços e sentia-me compelido a trocá-las e “fazer um ganho” faturando um Passaport a preço de banana, por exemplo. Afinal eles não acrescentam algo mais nos preços a pretexto de cobrir a expectativa de roubos que têm? Este meu gesto não seria já esperado? Mas minha má intenção sempre se diluía neste ponto mesmo. Eu nunca tive coragem de estragar o passeio com o suspense de um possível flagra humilhante.

Já estava quase chegando a um dos inúmeros caixas quando me lembrei que havia esquecido tanto a bolacha champagne (e sem ela eu ficaria sem o meu saboroso pavê que sei fazer como ninguém!) bem como o meu shampoo predileto com cheiro de frutas para cabelos oleosos. Lá fui eu de novo, com o carrinho entulhado de mercadorias, ansioso por corrigir meus deslizes.

Entrei, enfim, numa fila de caixa (como tinha gente neste supermercado!) e me aborreci um pouco com a demora. Ora porque justamente na fila que escolhi é que deveria aparecer um individuo todo complicado disposto a discutir uma possível incorreção no cômputo do troco e no cálculo do que comprou? Será que não confia na máquina registradora com suas leituras eletrônicas dos códigos? Para aperfeiçoar o sistema e corrigir essa injustiça comigo, deveriam fazer uma fila enorme única e um dos caixas que primeiro se desembaraçasse de um freguês receberia o outro que estivesse na “pole position”, algo que muitos bancos já estão fazendo há algum tempo. Será que aplicar esta logística aqui é tão difícil assim?

Quando estava na eminência de chegar a minha vez, eu como de hábito (claro, não era a primeira vez...) sutilmente saí da fila, fiz o gesto de quem esquece alguma coisa importante, fui sorrateiro ao fundo do “parque”, abandonei o carrinho cheio num canto sem que nenhum par de olhos me visse, tão interessados estavam todos em suas compras e dirigi-me de mãos abanando, conforme cheguei, a uma saída lateral.

Fritando esses peixes da baía que me deram, num óleo que resiste há semanas, com um foguinho amigo, aqui debaixo de uma passarela do Aterro do Flamengo, junto aos meus inefáveis companheiros, eu não dou pelota para o barulho ensurdecedor dos carros que cruzam alucinados a pista acima. Somos um povo realmente mais resistente ao ruído... Mas será que já secou a roupa nova que lavei na fonte, presente de um senhor distinto ao qual socorri logo ali num acidente sem maiores conseqüências? Amanhã deve fazer um lindo dia de sol e quero passear bem jeitosinho naquele “parque”. Cristo expulsou os vendilhões do templo, mas isso foi a dois mil e nove anos atrás! Agora são outros quinhentos... ou tostões.. ou nada?

Nelson Rodrigues de Souza








Um comentário:

  1. Nelson, surpreendente o final do seu conto! Olha, dá para fazer um ótimo curta. Enquanto lia, fiquei visualizando mentalmente as cenas. É bem cinematográfico.Parabéns!
    Abraços. Gina

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