quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O Planeta Jabor e Suas Ressonâncias


Muitos falam do impacto que tiveram ao assistir “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha na época do lançamento. Eu ainda era criança e estava mais ligado nas matinês de filmes americanos. Anos depois, já adulto, vi e revi o filme. Entendo este impacto, senti que um filme super-extraordinário estava diante de meus olhos, mas não é o mesmo sentimento de quem viu o filme nascer.

O primeiro filme brasileiro que vi que realmente tirou meu chão, me deixou chapado, pois não sabia que aqui no Brasil poderia se chegar a tanto foi “Toda Nudez Será Castigada” (Brasil/1973) de Arnaldo Jabor, quando estava pelos meus dezoito anos, ainda “muito bobinho” no interior de São Paulo. Esta obra me pareceu totalmente fora de esquadro (no melhor sentido) em relação a tudo que já tinha visto de Cinema Brasileiro até então. É um autêntico Nelson Rodrigues magnificamente bem filmado com tema de Astor Piazzola onipresente que não me sai da cabeça até hoje, uma crítica virulenta à família pequeno-burguesa de classe média e que conta com um dos mais impressionantes desempenhos da História do Cinema, não só do brasileiro, que é a entrega visceral e total de Darlene Glória ao papel da prostituta Geni. O Herculano de Paulo Porto também é magnífico, mas o coração desta grande obra, magnetizante e hipnotizadora do início ao fim, é realmente Darlene, por mais vibrante que seja o trabalho de direção e a força dos coadjuvantes com Paulo César Pereio, Elza Gomes, etc. Acredito que de certa forma este filme me impulsionou, ao meu modo, a deixar para trás as “neuroses de família” e também, metaforicamente, “fugir com o ladrão boliviano”, como faz Serginho no filme, filho do viúvo Herculano, como todos, eivado de ambigüidades inquietantes.

Acompanhei depois toda a carreira de Jabor com bastante entusiasmo vendo todos os seus filmes, com exceção de “Pindorama” que ficou muito pouco tempo em cartaz, “O Circo” e “Opinião Pública”, o que devo corrigir agora em DVD. Se “Toda Nudez Será Castigada” ainda é o ponto mais alto, dentre os que vi, “O Casamento”, “Tudo Bem” e “Eu Sei Que Vou Te Amar” (que deu o prêmio de melhor atriz a Fernanda Torres em Cannes, num trabalho realmente impressionante) são também filmes para qualquer antologia do Cinema Brasileiro que se preze. Jabor vai da micro-política, do social ao intimismo (com grandes reflexos da psicanálise) como poucos cineastas sabem fazer, como Bernardo Bertolucci, por exemplo. Só que se há uma forte cultura cinematográfica por trás, seus filmes refletem aquilo que é difícil de conceituar, mas é mais fácil constatar: um toque forte de brasilidade. Seus filmes tanto atingem o status de universalidade como são fantásticos retratos pintados da “aldeia” onde vive o autor.

Assim foi com muita tristeza que vi Arnaldo desistindo da carreira de cineasta e passando a se dedicar somente à carreira de jornalista. Mas mesmo nesta atividade, ainda que haja algumas vezes pérolas que me irritam (não consigo esquecer o apoio tácito de Jabor ao governo FHC), há momentos de grande perspicácia dentro de seu estilo “apocalíptico”. Por exemplo, o melhor texto que li sobre “Kill Bill –Volume 2” foi de Jabor. Assim se às vezes leio Jabor com um pé atrás, muitas vezes sou surpreendido com análises abrangentes muito interessantes, sempre muito instigantes e bem escritas, uma prosa de voltagem poética, autênticos torvelinhos labirínticos intelectuais contra a mediocridade e o conformismo vigentes.

Agora tenho a satisfação de saber que ele está preparando sua volta ao cinema com “A Suprema Felicidade” depois de 18 anos sem filmar. Estou ansiosíssimo pelo resultado, pois se trata-se de uma pessoa polêmica, é com certeza um grande artista. Vamos ver que visão de mundo inquieta nos trará agora esta espécie de “Amarcord” que ele pretende realizar.

Em paralelo ao projeto fílmico Arnaldo continua escrevendo suas crônicas e muitas delas sinto como dolorosamente verdadeiras e com precisão cirúrgica. No Globo de 10 de fevereiro de 2009 há um trabalho com o qual comungo totalmente e vai de encontro a um post que escrevi sobre os ideais americanos, tendo como motivação “Foi Apenas Um Sonho” de Sam Mendes. Da crônica de Jabor, ressalto o final contundente, mas que merece bastante reflexão.

“Como Mudar o Coração Americano”- Moram na alma americana vícios difíceis de curar”

.....
Em um de seus discursos ,Obama disse que os americanos precisavam se “reeducar” em relação ao resto do mundo. Outro dia li a mesma coisa em um livro extraordinário: “The Limits of Power” de Andrew Bacevich, texto que pauta intelectuais hoje nos EUA , incluindo o Obama.

Andrew nos mostra que há uma estrutura psicossocial quase “genética” que tem de ser reformada no país, para que alguma mudança real se faça, para além da euforia da esperança. Ele nos mostra que a idéia de sacrificar-se pelo conjunto, de se contentar com pouco, de consumir menos é impenetrável nos corações americanos. Se Obama não conseguir, a estrutura e ignorância voltarão “com o totalitarismo da maioria”. E, aí, a barra pesará.


Jabor faz também algumas críticas justas ao governo Lula ainda que às vezes delire (“Palocci é uma ilha de lucidez dentro do governo...”). O problema maior para mim é que ele poupava FHC de críticas acerbas, o que arrefece e coloca sob suspeita o impacto de suas colocações agora sobre política brasileira na era Lula. Mas eu não deixo de prestar atenção ao que ele escreve porque aqui e ali encontramos colocações brilhantes Assim tomara que ele voltando ao cinema não deixe de escrever suas crônicas. Não é á toa que fazem sucesso quando lançadas em livros. Quem sabe o prazer de voltar a fazer um filme agora, com a alma mais aliviada, melhore ainda mais seu trabalho como cronista que pode correr em paralelo. E eu até acabe esquecendo um pouco sua adesão aos desmandos da era FHC.....Será que conseguirei?....

Nelson Rodrigues de Souza

Ps.O cartaz que escolhi fala em desnudez em vez de nudez. Será coisa da “terrinha”?....

3 comentários:

  1. Sobre Jabor, nada. Supreme felicidade seria se ele não fizesse mais filmes. Não mais escrevesse crônicas. Não aparecesse com sua imagem nas telas de TV e sua voz nos rádios.

    Sobre Nelson Rodrigues, o autor:

    É quase impossível olhar Nelson Rodrigues sob a luz da literatura contemporânea, dos conceitos contemporâneos, sob um prisma histórico, e por uma razão muito simples: ele refuta a história. Seus modelos literários são do século XIX, como Tolstoi e Dostoievski, matrizes de seus personagens obcecados, com fixações frasais, à busca do sentido, da iluminação, da transcendência. Seus modelos ideológicos provém do cristianismo e da mitologia grega. Debatem-se sobre o destino, e cada ação voluptuosa nada mais revela do que a presença constante da alma, a busca pela ação moral, guardada e secreta em suas obsessões reveladas pela carne da qual se libertarão, quase sempre, pela morte.

    Outro ponto importante a revelar o aspecto estritamente moral de Nelson encontramos nos detalhes que pontificam seus textos, marcando-os com a volubilidade dos tempos, pois para Nelson nada se encontra através do olhar histórico; olhar para o tempo que passa é olhar para os subprodutos dos enganos humanos, desde o Chica Bon até o escandaloso filme Les Amants, passando pela última marchinha de carnaval, ou os padres de passeata, a descuidar do que lhe é mais caro e essencial: a alma.

    E há alma em cada personagem de Nelson Rodrigues mas, para que haja alma, é preciso haver corpo, carne, conflito, instintos animais e o desejo sexual fundido com o desejo de transcendência, nada mais que o próprio desejo da morte, da pacificação interior obtida com o silêncio do exterior, a não mais ferir o espírito porque este, descarnado, imortal, transcendeu, despegou-se do fortuito, do comum, do banal, daquilo que nos martiriza e é apenas, para Nelson, a aparência do real, pois o real, enquanto histórico, é apenas aparente, e só deixa de o ser na medida em que ocorre o salto para a transcendência, a desvelar o real inaudito, inefável.

    Voltemos aos personagens das peças, crônicas e romances, ou mesmos das resenhas futebolísticas. O óbvio ululante não é o visível, mais o visível naquilo que só o é na forma de epopéia, de manifestação dos destinos humanos, a-históricos, imortais, eternamente se refazendo, se liquefazendo, ganhando a única substância possível: os moldes não seculares dos mitos. As paixões adâmicas, as quedas dos anjos, a busca do fogo por Prometeu. Seu olhar para a vida é o olhar daquele que revê as tragédias como destino na mãos dos deuses, e afinal apenas de um único deus, aquele que prefigura a razão e oferece a imortalidade da alma para aquele que, enquanto ser vivente e material, sofre, goza, se martiriza e, afinal, reconhece a si mesmo.

    Além de tudo, Nelson se repete. Em suas obsessões particulares, em seu combate ao homem histórico, como reacionário que se assumia como tal (sua autobiografia denomina-se, não por acaso, justamente O reacionário), nosso autor gira em torno de seu círculo teologal, sem nunca ferir-se com o cotidiano, mas tirando dele apenas o traço episódico, como já dissemos, a ressaltar sua superficialidade, o aspecto vão da vida, onde nos apegamos porque nossa natureza é dualista, mas de cunho maniqueísta: nada de fato se mistura, existem opostos irreconciliáveis, embora todos dependem de todos para manifestar a grandeza única daqueles que são dotados, como enfatizava sempre, de uma alma imortal.

    Com essa recusa primordial em reconhecer o devir histórico como práxis humana, e só humana, de suas obras derivam não contestações ou denúncias da hipocrisia pequeno-burguesa, como pensam alguns, mas o contrário, um assentimento ancestral a tudo que existe como é, sendo o esforço humano de alterar as circunstâncias históricas mero engano de mentes materialistas. Manifestam-se não as taras e as bestialidades, mas o aspecto santificado de todo pecado, como resultado de uma ação que busca a superação da condição primitiva de ser corpo, matéria e só.

    Daí que os escândalos acerca de suas obras soa absurdo, se não resultasse tão somente da incompreensão de suas obras; mas essa incompreensão tão e mais absurda é quanto mais ele repete as mesmas fórmulas, crônica sobre crônica, peça sobre peça. Há quem refute o autor e ame suas obras por que, enquanto o autor apoiava a ditadura militar, suas peças eram censuradas pela mesma ditadura. O apoio à ditadura só é compreensível como descaso à ação política das massas oprimidas, posto que Nelson interessava-se somente pelos indivíduos e a transcendência de cada um de seus espíritos, devendo-se a censura oficial, talvez e tão somente, à cegueira do censor ao conteúdo das peças, levado pela aparência delas, podendo resultar (como resultaram, aliás) em leituras "revolucionárias" de sua obra, ou redução aos limites de uma crônica de costumes (e aqui as interdições se fundamentavam, não mais).

    Em Toda Nudez Será Castigada, há uma cena criada pelo diretor Antunes Filho, a demonstrar pleno conhecimento do material sobre o qual trabalhava. Morta, Geni está depositada em seu caixão; o cortejo fúnebre se inicia, e o esquife é levantado por quatro homens, sustentando o peso nos ombros. Acima deles, levantam-se lentamente os dois braços de Geni, com as palmas da mão unidas, em sinal de prece, redenção, ascensão, elevação de sua alma ao destino fatal. Definitivamente, não é um espetáculo de costumes.

    ResponderExcluir
  2. Ótimo Jabor voltar a fazer cinema. Melhor ainda se abandonar definitivamente a sua venenosa crônica política - arrogante, elitista e pseudo-moralista!
    Como articulista da sétima arte, ele já escreveu belos textos. Apenas li alguns, porque a antipatia que nutro em relação ao Jabor cronista é tão grande que raramente me sinto disposta a conferir o que ele escreve. Vê-lo e ouvi-lo falar, então, nem pensar.
    Gina

    ResponderExcluir
  3. Sim, a volta de Jabor a direção cinematográfica é algo a ser comemorada. Sua filmografia, como você mesmo cita, faz um belo paralelo com a de Betolucci, nunca perdendo sua profunda visão da sociedade brasileira deste últimos anos.
    Quanto ao Jabor cronista e comentarista, sua adesão acrítica ao tucanato e ao neo-liberalismo me fez exercer contra ele uma profunda antipatia. Enfim, que ele seja resgatado pelo grande cinema que ele fez.

    ResponderExcluir