quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Pequenos Furtos do Maior Abandonado- Um Conto Sobre um Crítico dos Anos 80


Quando estudava no IMPA, Instituto de Matemática Pura e Aplicada, não suportava colegas meus virem me dizer que finalmente tinham visto um filme brasileiro realmente bom, que era “Pixote-A Lei do Mais Fraco” de Hector Babenco. Não adiantava argumentar que existiam já muitas obras primas do Cinema Brasileiro: “A Lira do Delírio”, ”Terra em Transe”, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Macunaíma”, “Limite” dentre várias outras. Agora como surgia um filme que falava sem rodeios do estado em que se deixava as crianças no Brasil, enfim surgia um “bom filme brasileiro”, algo que acreditei ser muito mais sintonia com a consciência culpada da classe média do que com as qualidades do filme. Assim foi com certa antipatia que fui ver “Pixote-A Lei do Mais Fraco” e gostei, mas ele não me impressionou, não me entusiasmou tanto assim. Anos mais tarde revi o filme e realmente dei a mão à palmatória: é um filme extraordinário! Todas as restrições que fazia foram derrubadas. É desta perplexidade toda que saiu este conto sobre um episódio da vida de um crítico de cinema no início dos anos 80.


Pequenos Furtos do Maior Abandonado

Ah!... Por que esse filme “Pixote” tinha de ser reprisado assim, prematuramente? Marília Pêra acaba de ganhar neste 1981, o prêmio de melhor atriz da Associação de Críticos de Nova York.Marília, maldito o prêmio que ganhaste pois em martírio o meu trabalho transformaste! Esse jornal cobrando-me essa crítica em cima da hora e eu sem tempo de rever o “bandido” e fazer uma coisa mais equilibrada... Mas vamos lá:

“Existem dois filmes brigando entre si, “A Terra é Redonda Como Uma Laranja” (titulo inicial) X “Pixote, a lei do Mais Fraco”. O primeiro, preocupado com a poesia, com a arte; o segundo comprometido com os apelos da bilheteria, com a sensacionalista “apreensão da realidade”... E é uma pena que este último vença a maioria dos rounds!... É inegável o talento de Marília, a sua garra! Sua explosão de raiva ao expor o feto abortado à criança abortada pela sociedade é antológica. Mas não é sempre que o lirismo que flerta com a violência consegue vencer. O plano demasiado longo de aflição de Lirica ante o amigo morto é esvaziado, beirando o abismo do melodrama barato.

É, entretanto, na caracterização do garoto, o Pixote, eixo central da história (história essa que se arrasta e perde força na segunda parte), que Babenco expõe com maior evidência o calcanhar de Aquiles do espetáculo. Com argúcia, sem dúvida, a câmera de Babenco explora naturalistica e poeticamente, com toda vontade de “contar a verdade”, as agruras perpétuas que esta criança teve e terá pela vida afora. Mas Babenco e seus roteiristas me parecem um tanto tímidos ainda. A criança mostrada no filme, apesar de toda violência que pratica e sofre, me parece prima-irmã do filho do cartazista do “Ladrão de Bicicleta”, de De Sica. Isto é, mesmo carente em todos os níveis, exala ternura por todos os poros. Dá vontade de acariciá-la e dizer: vem cá meu garoto, que eu lhe dou bastante afeto e você vai seguir um bom caminho na vida. Pode parecer covardia lembrar aqui “Os Esquecidos”, de Buñuel, mas os grandes mestres estão por aí para nos dar lições mesmo. Sem ter essas cenas de crueldade explícita com que Babenco nos brinda os olhos, Buñuel consegue fazer um filme, vamos dizer assim, muitíssimo mais violento e, contundente É exemplar a seqüência em que os diretores do internato resolvem dar uma chance ao pivete, pedindo-lhe que vá comprar cigarros, dando-lhe toda liberdade, esperando que ele volte de livre e espontânea vontade. Depois deste gesto de caridade-estratégia-pequeno-burguesa-típica-cristã, o que acontece? O garoto volta? Que nada, dá no pé com o dinheiro! O que a vida (a sociedade burguesa-capitalista) construiu não vai ser um simples gesto que vai resolver. O buraco é mais embaixo! Aquela infância foi destruída, não tem volta!”

Que dizer mais, Meu Deus! Essa reflexão me deixou deprimido.Ah! Sim, o roteiro...

“O roteiro me parece um tanto óbvio demais no seu afã de didatismo: uma seqüência de brinquedo-tortura aqui, uma cena de displicência-insensibilidade administrativa ali, uma seqüência de “suadouro” (assalto de cliente de prostituta) acolá... Uma receita!

O filme termina de modo bem poético: o garoto andando nos trilhos sem rumo. Bonito final. Só que mais uma vez, como no desastrado “Chuvas de Verão”, do Cacá Diegues (mas essa é outra história) a poesia emana do “inconsciente coletivo cinematográfico” ou mais exatamente “by” Fellini de “Os Boas Vidas”. O final é o mesmo: o pequeno carteiro, única testemunha da partida de Moraldo, o fugitivo da província, fica também passeando pelos trilhos...”

Nossa! Já é madrugada avançada. Eu estou morrendo de sono e ainda tenho de passar isso a limpo, para entregar cedinho no jornal. Vou ter de varar a noite e amanhã a mãe leva pra mim a matéria na redação. Socorro!

Puxa, que sufoco!Terei sido severo demais, injusto? Não é melhor reconsiderar certos pontos, acrescentar mais coisas, falar do impacto provocado, que é inegável, da belíssima cena em que Marília amamenta o garoto, dos outros atores...? Não é melhor falar ainda da evolução experimentada por Babenco desde a estréia em “O Rei da Noite” (um Nelson Rodrigues diluído, mal assimilado) passando por “Lucio Flávio, o Passageiro da Agonia”, um razoável thriller tupiniquim? Não! Não tenho mais tempo! Tenho de fechar essa crítica agora! Vai assim mesmo!

Meu Deus, será que eu também sou um trombadinha, um sofisticado trombadinha? Será que não passo de um trombadinha intelectual? Com o perdão do neologismo, um “Pixete”?

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. O que me saltou aos olhos, vendo este filme no final dos 70, foi o quanto o cinema brasileiro havia se distanciado do seu público. Depois de mais de 15 de espera pela queda da censura e de filmes de baixíssima qualidade (a chamada pornochanchada), no que concerne à forma e ao conteúdo, finalmente conseguimos (os brasileiros) reatar os laços afetivos com o Brasil real nas telas. Apesar de narcisistas que somos, consideramos, à época, observar a nós mesmos e nos vermos refletidos como realmente somos. Lembro-me de ter lido em algum lugar que Marília Pêra teve restrições e reservas seriíssimas com sua personagem e sua relação maternal com Pixote. Era um personagem difícil, tal qual encarar o resultado do "pós-guerra" e os destroços que a ditadura militar havia deixado na sociedade brasileira. Devo dizer que pretendo rever este filme um dia, Nelson, mas já te digo que, para mim, este é um exemplo de cinema seminal.

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