segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

No Tempo da Delicadeza em Meio a um Histórico de Barbaridades


Quando já pensamos que vimos “todos” os questionamentos e óticas sobre o nazismo no Cinema, dada a profusão de filmes sobre o tema, surge este surpreendente e majestoso “O Leitor” (EUA/Alemanha/2008) de Stephen Daldry, uma obra de delicada construção que faz jus ao que já vimos do mesmo diretor: “As Horas” envolve três mulheres com problemas com pontos de contacto em três tempos distintos, com encaminhamentos bastante diversos; ”Billy Elliot” é um dos mais belos retratos da força da vocação e pertinácia do ser humano para uma atividade, desde a adolescência, no caso o balé, num ambiente proletário refratário e preconceituoso.

Daldry tem incontáveis detratores. Com este filme não é diferente. Há pessoas que parecem ter vergonha de filmes que tão contundentemente nos leva a fortes emoções no cinema. Quem leu meu post “Respeito Muito Minhas Lágrimas” sabe do valor que dou às emoções genuínas, sem golpes baixos, que alguns filmes bastante especiais nos provocam. Com “O Leitor” não foi diferente. Este drama humano suis generis trouxe-me lágrimas que reputo como sagradas, como em “A Troca” de Clint Eastwood, outro grande filme da temporada.

O que tem “O Leitor” de Stephen Daldry de especial? Primeiro, assim como o admirável “A Vida dos Outros” é um filme sobre o poder cicatrizador da arte , ou então como bálsamo ainda que temporário para dores profundas. Segundo, é um retrato perturbador da contaminação do indivíduo pelas perversidades sociais.

No pós segunda guerra mundial, na Alemanha, o adolescente de 15 para 16 anos Michael Berg (David Kross quando jovem, Ralph Fiennes quando adulto) tem um tórrido romance com uma cobradora de bonde com passado misterioso e eclipsado, num misto de estratégia, vergonha e tentativa de esquecimento, Hanna Schmitz (Kate Winslet, ainda mais luminosa do que em “Foi Apenas Um Sonho”, já comentado em outro post), uma mulher com o dobro de sua idade. Hanna gosta muito que ele leia livros para ela, pois é analfabeta. Assim entre uma transa e outra (mostradas sem pudor e com plasticidade aliciante) ele lê trechos de “A Odisséia” de Homero, “A Dama e o Cachorrinho”, conto de Anton Tchekhov, dentre outros textos. Ela, atenta, apesar da instabilidade emocional, se acalma com o prazer de ouvir as belas histórias escritas e no mergulho numa sexualidade revigorante.

Hanna desaparece misteriosamente. Michael vai reencontrá-la oito anos depois quando ele é estudante de Direito, num tribunal onde ela e outras mulheres são julgadas por crimes de guerra dado que foi escrito um livro em que elas são citadas, tendo sido guardiãs de prisioneiros no campo de concentração de Auschwitz. Com vergonha de declarar-se analfabeta, o que Michael percebe, mas respeita com grande dor, ela aceita uma culpa maior que não é sua e recebe uma pena bem mais pesada que as outras.

Michael adulto vai ter relações instáveis com as mulheres, marcado que foi para sempre pelos episódios vividos e vai tentar uma forma de reparação que vai ser tanto a salvação de Hanna, como de certa forma sua perdição final, pois a consciência maior dos seus atos vai quebrar os muros de ignorância que criou em torno de si, para se proteger da brutal cumplicidade que praticou.

“O Leitor” toca em várias questões delicadas e candentes. Pode alguém ser condenado por colaboracionismo simplesmente porque foi citado num livro quando se sabe que milhares de alemães praticaram o mesmo, muitos em formas bem piores?Uma paixão forte na juventude pode ser determinante para o resto da vida e que contornos pode tomar? Quais as formas de reparação possíveis num caso melindroso para os antigos amantes, cada um com suas culpas?A ignorância cultural pode justificar a adesão ao fatídico e nocivo (até hoje) lema “manda quem pode, obedece quem tem juízo”? Até que ponto a arte pode redimir, ser um lenitivo forte ou trazer uma consciência insuportável de si, numa auto-leitura, num efeito contraproducente? Como lidar com os impasses em que a frieza da lei nem sempre converge com sentimentos morais e éticos? Quais as fronteiras que separam a inocência da culpabilidade num universo em derrisão e caos oficializado?O que podemos fazer em grupo que jamais faríamos isoladamente?Até onde podemos ir quando trazemos no íntimo um forte sentimento de vergonha paralisante?Etc.

Bergman nos contou que uma das razões para ter feito “O Ovo da Serpente” sobre os primórdios do nazismo, é o sentimento de vergonha por ter ido quando jovem à Alemanha e ter feito saudações nazistas junto à uma multidão. Um caso mais sério e bastante polêmico foi a declaração do prêmio Nobel de Literatura alemão Günter Grass, de “O Tambor”, um dos maiores críticos da Alemanha (dividida ou não) em vários estágios de sua História, de que quando jovem pertenceu aos quadros da SS, em seu livro autobiográfico “Nas Peles da Cebola”. Günter obviamente tinha um grau de instrução infinitamente superior ao de Hanna.

“O Leitor” baseado no best-seller homônimo de Bernhard Schlink, numa produção dos notáveis artistas Anthony Minghella e Sydney Pollack, já falecidos, não procura absolver Hanna automaticamente. Apenas tenta mostrar, de forma complexa, como os seres humanos podem cair numa grande encruzilhada ética e moral e se deixar levar por caminhos que são paradoxalmente facílimos e dificílimos ao mesmo tempo.

Hanna é uma nossa semelhante, gostemos ou não. Ela traz em extremos o pior e o melhor de todos nós. Seu analfabetismo tem ecos com o não menos brilhante “Mulheres Diabólicas” de Claude Chabrol onde esta condição recalcada e oculta em uma empregada, leva uma família burguesa de província a quem servia a uma tragédia, em mais um memorável trabalho de Isabelle Huppert.

Há quem considere que “O Leitor” se sustenta em obviedades mastigadas. Não concordo absolutamente. Com a antológica performance de Kate Winslet nos mergulhamos em desvãos, em um profundo abismo que povoa sua alma e nos reflexos que provoca ao seu redor, tanto em Michael adolescente como mais adulto. Este último vivido com a sensibilidade, força e os olhares tristes, que já nos acostumamos a esperar de Ralph Fiennes, em perfeita sintonia com seu passado representado por um memorável ator jovem descoberto que é David Kross, o qual nos passa uma admirável carga de maturidade precoce aliada ao encantamento pela descoberta da sexualidade e suas doces e amargas torturas.

“O Leitor” é um filme de grande nobreza ainda que aborde sentimentos nobres que se misturam a sentimentos torpes. Mas o filme está longe de qualquer morbidez. Sua delicada tessitura nos convida a ampliarmos nossa visão de mundo e compreendermos melhor as armadilhas a que o ”humano demasiadamente humano” está sujeito. “O Leitor” extrai o sublime que pode emergir dos pântanos existenciais.

Nelson Rodrigues de Souza

2 comentários:

  1. Nelson, faço minhas as suas palavras. Você abordou, com profundidade e beleza, as questões centrais desse filme, que muito me tocou. O Leitor provocou em mim mais do que lágrimas: um choro sentido que brotou do fundo da alma. Além da delicadeza na composição dos personagens e de suas relações, marcadas pela dúvida moral e pela culpa, um grande mérito da obra é relativizar a participação de alemães, muitos limitados culturalmente e solitários como Hanna, no episódio horripilante do holocausto.
    Embora Meryl Streep esteja estupenda em Dúvida, minha torcida no Oscar é para Kate Winslet, por sua atuação inesquecível em O Leitor e também em Foi Apenas um Sonho, capaz de colocar Hanna e April ao lado das grandes personagens femininas do cinema.
    Bjs. Gina

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  2. Mais um filme para justificar as barbaridades dos israelenses aos olhos do mundo. Estava clarao, para mim, que iriam mudar a estratégia elaborando um roteiro não tão obvio como a Lista de Shindler e O Pianista.
    E que oportunos são colocando para representar a judia milionária de Nova York um tipo mais para Michelle Obama do que para Barbra Streisand.
    Ridiculo e odioso esse filme. Mais um!

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