terça-feira, 23 de junho de 2009

Três Seres na Terceira Margem do Rio





Arnaldo Baptista Dias foi o grande cérebro por trás de Os Mutantes, conjunto que deu régua e compasso ao rock mais sofisticado brasileiro. Com a saída de Rita Lee no início dos anos 70, sua mulher na época, por razões que “Loki-Arnaldo Baptista” (Brasil/2008) de Paulo Henrique Fontenelle insinua aqui e ali de forma não conclusiva, ele continuou com o grupo sem o mesmo prestígio, passou a uma carreira solo mal compreendida (hoje bastante valorizada), criou o grupo Patrulha do Espaço, com um rock mais progressivo, envolveu-se com drogas pesadas, entrou em forte depressão e chegou a cair ou se jogar do quarto andar de um manicômio onde foi internado. Ele já tinha se casado depois com uma atriz com a qual teve um filho e logo se separou. Uma fã, Lucinha Barbosa, o visitou no hospital onde estava em coma e como num filme de ficção, com um truque forte de roteiro, Arnaldo passou a ter nela uma grande companheira que o leva para Juiz de Fora, onde ele de uma forma catártica ao modo dos artistas descobertos pela Dra. Nise da Silveira no Museu do Inconsciente, faz pinturas onde exorciza vários elementos de sua vida com citações até mesmo à sua época de Mutante.

Na organização de uma exposição sobre a Tropicália em Londres, agora com Zélia Duncan fazendo o vocal que Rita Lee não aceitou, Os Mutantes se juntaram novamente para um show lotado no Teatro Barbican de Londres onde foram ovacionados e Arnaldo passou a ter melhor noção do quanto é cultuado também (e principalmente) fora do Brasil, o que o filme já tinha mostrado com o calor humano que Sean Lennon lhe dedicou em entrevistas.

“Loki-Arnaldo Baptista” como documentário, não tem uma postura iconoclasta como a dos Os Mutantes e da carreira solo de Arnaldo, onde se destaca o trabalho Loki?, tido por muitos como uma obra premonitória da crise existencial que o artista viveria com sua melancolia intrínseca mas que não deixaria de ser um dos trabalhos incontornáveis da história da MPB, deixando patente que tudo que se fez no rock nos anos 80 para cá tem de certa forma o dedo profético genial de Arnaldo. Apoiado em belas entrevistas com Antônio Peticov, Gilberto Gil, Rogério Duprat, Tárik de Souza, Lobão, Nelson Motta, Liminha e depoimentos de sua incansável e anjo da guarda atual companheira Lucinha, dentre outras, “Loki-Arnaldo Baptista” nos conta sem nenhum pieguismo uma maravilhosa história de amor especial e redenção e de volta por cima existencial.

Arnaldo vive hoje num mundo à parte com grande consciência disto e neste ponto todos os nossos conceitos do que é ou não normalidade, sanidade ou loucura vão para o espaço. Conforme evidencia o irmão Sérgio Dias que humildemente pede desculpas pelas próprias incompreensões que teve, “quem é louco, Van Gogh ou nós?” Seu irmão estava vinte anos a frente de seu tempo. “Mais louco é quem me diz que não é feliz”. E no estágio atual de sua vida, depois de tantas agruras e sofrimentos, com uma fenomenal recuperação depois de um estado lamentável, sentindo agora que lhe dão grande valor, conforme salienta Zélia Duncan num depoimento, Arnaldo se mostra bem integrado à sua vida mais calma em seu retiro em Minas Gerais onde privilegia mais o gozo cotidiano da vida do que ambições por ter uma carreira artística, compondo devagar, sem pressa, como Caymmi. A arte dele deitou raízes, mas ele ao fim e ao cabo não se deixou consumir por ela. Hoje com seus quadros, com os quais não mostra ter interesse comercial, faz um trabalho que pode soar um pouco psicodelicamente naif, mas que para ele tem grande valor terapêutico, revelando construções do seu inconsciente que o filme não desenvolve. Isto é o que importa. O guerreiro fez mais do que merecer por seu repouso. Este filme emocionante e precioso, com suas duas horas mágicas nos faz compreender bem todas estas contradições de vida e entender melhor este estágio atual onde o grande artista está feliz na sua terceira margem do rio conquistada. Por que de realmente louco ele não tem mais nada. Loucos são os que estão numa vida competitiva desenfreada sem tempo nem para ouvir suas vozes interiores.

@@@@@@@@@@@@@@@@@

“Hamlet” na direção de Aderbal Freire Filho com Wagner Moura é um equívoco total. Tem piadas excessivas para cativar platéias desvirtuando o sentido de tragédia; um surrado esquema em que atores ficam na lateral do palco entrando e saindo de cena, desnudando o jogo teatral como se isto representasse em 2008 depois de tantas montagens assim alguma grande novidade; figurinos e cenários franciscanos e empobrecedores; um jogo em que cenas filmadas por vídeo são expostas num telão de uma forma inexpressiva; Gillray Coutinho como Polônio parecendo que ainda não saiu de “O Púcaro Búlgaro”( onde estava excelente) com cacoetes e trejeitos insuportáveis; Tonico Pereira over como rei usurpador e ainda o que é pior: Wagner Moura bastante histérico não encontrando o tom para compor um personagem que ciente de que a mãe e o tio são cúmplices na morte do pai de certa forma passa a delirar e/ou fingir que delira para melhor extrair verdades dos fatos, com a ajuda de uma trupe teatral que encena um crime análogo para denunciar nas atitudes dos assassinos os seus atos.

Um pena que no afã de não exercer nenhuma concessão mais canônica o espetáculo tenha resultado tão pouco envolvente e sutil. Pouco compreendemos Hamlet, um personagem que constrói sua terceira margem do rio para melhor sobreviver a um meio corrompido até a medula e não surge com grande força no palco, o que é imperdoável em se tratando de uma das mais instigantes figuras da dramaturgia universal. Mas é esta é mais uma visão negativa como outras que surgiram, pois a rigor o espetáculo está se comunicando com o grande público e fazendo grande sucesso tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. Enquanto economizava nas palmas protocolares sem me levantar da cadeira, o enorme Teatro da UERJ cheio explodiu em efusivos aplausos. Espero que não tenham sido apenas para o Capitão Nascimento...Um personagem muitíssimo mais bem construído por Wagner Moura do que este Hamlet mal acabado e imaturo cenicamente.

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@

Um grande desafio que é trazer um clássico da Literatura difícil para os palcos foi vencido com grandes méritos pelos diretores Vera Holtz e Guilherme Leme com “O Estrangeiro” de Albert Camus, onde Guilherme só em cena, num grande desempenho, dá vida a vários personagens e principalmente a Meursault, um argelino que interna a mãe num asilo e quando ela morre não manifesta maiores sentimentos como se espera. Num dia de calor intenso mata gratuitamente um árabe com vários tiros. Preso ele não tem nenhuma reação catalogada. A princípio não quer nenhum advogado, não se mostra arrependido, despreza os consolos cristãos de um padre e tem desconfianças sobre si aguçadas quando tomam conhecimento de que não chorou no enterro da mãe e logo depois foi capaz de se divertir com uma mulher.

O fascinante em “O Estrangeiro” é que o personagem apresenta uma singular altivez na situação absurda que vivencia. Se seu ato gratuito evidencia o absurdo do mundo, as reações do meio circundante que se seguem não deixam de ser menos absurdas. Assim não chega a ser nenhuma heresia o autor Albert Camus afirmar que seu personagem no caminho para uma crucificação particular e especial, onde espera encontrar uma grande platéia, seja o único cristo que mereceríamos ter no nosso mundo.

Meursault também criou uma singular terceira margem do rio para si. Só que não terá nenhum bastão a passar a ninguém que o siga como no conto de Guimarães Rosa. O que o espera é o aniquilamento, mas também a dignidade que pode brotar da indignidade e da ignomínia.

http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/loki/loki-poster01.jpg

http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/files/2008/11/loki.jpg

http://finissimo.com.br/mariatanamoda/wp-content/uploads/2009/04/hamlet4.jpg

http://www.questaodecritica.com.br/news/301_cover.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

Um comentário:

  1. Nelson
    Terminei o domingo,depois de uns momentos particularmente difíceis,
    no Artplex Botafogo quase lotado.
    Desde o início fiquei emocionada,porque estive a uns poucos metros dos "Mutantes" há décadas na gravação de entrevista gravada (Tv Globo), quando levava as então "crianças",para brincar no Tívoli Parque.Vi a Rita Lee de noiva grávida e foi engraçado,ali fiz minha preleção meio transgressora sobre a não necessidade de casamento em caso de gravidez.Eles,os filhos,não entenderam bem,mas passei o recado.Muito complicado ter uma cabeça diferente.
    Lógico que não chego nem aos pés da genialidade do Arnaldo,mas entendi perfeitamente a inocência expressa naquele momento tão singelo,
    O fime acabou e o público, de tão emocionado, levou um instante de perplexidade para que começassem as palmas.
    Você deve ter percebido a transferência psicanalítica no caso da segunda mulher (articulada,inteligente,com que sinceridade falou ben da figura do ex.)É,tambén, uma segunda Rita,né? Aqueles desenhos da moça loura,,,representam a segunda ou a ex?
    Senti a ausência do depoimento do filho.
    À segunda, oo anjo da guarda, Arnaldo deve tudo que aconteceu deopis do drama.Inclusive aquele show apoteótico em Londres e o que veio e vier depois> é obra dela.Os cabelos de Lucinha,agora ruivos,também me remeteram à Rita? Será que estou delirando?
    É muito árduo não seguir a manada,
    O filme ,no domingo,fez com que meu dique interior não desse conta da emoção,Nelson.
    Sua matéria belíssima nesta terça pela manhã,idem.
    Lindo comentário sobre a obra cinematográfica propriamente dita e sobre como "louco é quem me diz e não é feliz"
    E viva a Dra Nise da Silveira!
    Beijos, parabéns pela sensibilidade,que essa a gente nasce com ela ou adquire na marra.Você se enquadra no primeiro quesito.
    Thereza Pires

    ResponderExcluir