segunda-feira, 20 de abril de 2009

Aviso aos Navegantes



Pessoal,

Estarei ausente do blog por duas semanas (mais ou menos) para tratamento de saúde .

Aproveitem este período para ler posts antigos e se possível emitir comentários.

Até a volta.

Abraços a todos,

Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Stone, Pinter e Criminosos de Guerra à Solta










“W.” (EUA/2008) de Oliver Stone é uma grata surpresa. Quando pensamos que tudo já foi escrito e dito sobre George W. Bush, nos vem este polêmico diretor, que injustamente angaria muita má vontade por parte da crítica, tendo obras admiráveis no currículo irregular e quase sempre provocador, no melhor sentido (sendo “JFK- A Pergunta Que Não Quer Calar”(1991), sua obra máxima dentre as que vi e “Nixon”(1995), uma obra bastante instigante, pouco vista ) completar sua trilogia sobre presidentes americanos num tom que não esperávamos do seu cinema, com humor delicioso, uma ironia feroz e doce ao mesmo tempo, mas de uma jeito que de forma alguma banaliza os fatos narrados.

“W.” encontra em Josh Brolin um ator à altura da façanha de dar vida a este personagem histórico abominável. Josh extrai certa simpatia pela sua criatura, mas de forma alguma, no conjunto, este é um filme que absolve Bush de suas responsabilidades. Há uma coalizão entre leviandades/interesses escusos de membros falcões do Partido Republicano e o jeito Bush de ser irresponsável, que acaba resultando na nitroglicerina pura que acabou assolando os EUA e o planeta, com as mais torpes barbaridades e aguçando a crise econômica que já se insinuava claramente para quem nunca acreditou na obviedade de que o Estado jamais poderia deixar de regularizar setores do mercado, principalmente o financeiro.

Com uma delicada tessitura de conflitos freudianos de superação do pai, o idiotizado Bush Júnior acaba acreditando que Deus tem uma missão para ele que é ser presidente da República, apesar de admitir que goste mesmo é de cavalos e esportes. Em “W.” temos uma cômica radiografia das circunstâncias psicológicas, sociais e políticas que fazem alguém tão despreparado para o poder, não só querer atingir a presidência, como conseguí-la.

Nos trotes pesados na Universidade, pela boçalidade de veteranos, já se sente o caldo de cultura aonde vai se formando uma mentalidade conservadora, obtusa, que apesar da insegurança, da falta de firmeza de propósitos em qualquer área profissional ( para desgosto do pai que ele tanto ama /odeia), acaba sendo marqueteiro de Bush- pai em suas candidaturas e depois ousa o impensável, o inconcebível pela sua patetice perigosa: ser presidente da nação, digamos assim, mais influente no mundo, para nos valermos de um eufemismo.

Josh Brolin está brilhante como W. em várias fases de sua vida. A composição dos planos é muito bem cuidada, com montagem que não é tão brilhante quanto a de “JFK”, mas tem sua força, mostrando que quando quer, Oliver Stone tem bastante a dizer tanto em termos conteudísticos como formais e suas imbricações. Ao final saímos “desta história em quadrinhos realista de quinta” que estamos assistindo e nos deparamos com imagens as mais cruéis possíveis com caráter documental, sobre os estragos no Iraque, quando já se sabe que não havia as armas de destruição em massa que lá “acreditava-se” convenientemente que houvesse. O horror...o horror.....de uma forma que nos lembra o desfecho de “Valsa para Bashir”( Israel/2008) de Ari Folman” onde também parte-se de um estilo para outro mais realista, num breve mas intenso e impactante momento.

“Agora podemos dizer ao povo americano que estamos lutando mesmo é pela democracia no Iraque”- diz algo deste teor Bush W. quando se dá conta que não terá mais as desculpas das armas ocultas, para invasão do Iraque e derrubada de Saddan Hussein.

Claro que “W.” é um filme limitado para dar conta de várias facetas de Bush filho, suas (ir)responsabilidades e seus elos. Mas o que nos é mostrado com elegante pulsação cinematográfica e trabalho precioso de Brolin não têm nada de leviano, mesmo com certas simplificações. O filme acrescenta elementos freudianos deliciosamente plausíveis ao que já sabíamos ser uma catástofre em vários planos.

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Quem quiser algo muito mais contundente sobre o que foi a era Bush W. e de seus comparsas internos e do mundo afora, bem como o histórico deste contexto todo, não deixe de ler adiante o discurso que o grande dramaturgo, poeta e roteirista Harold Pinter preparou e foi exibido num vídeo na Academia Sueca, pois o escritor estava por problemas de saúde impedido de ir pessoalmente receber o prêmio Nobel de Literatura de 2005.

Pinter tanto comenta o papel do artista, suas possibilidades, como também é minucioso sobre o papel como cidadão que o artista também pode/deve ter, explicando as aproximações e diferenças. Ou seja, não temos nada de discurso politicamente correto vulgar. Muito pelo contrário.

Assim do roteirista de tantas obras primas (como “O Criado”-1963 e “O Mensageiro”-1970 de Joseph Losey ) e peças extraordinárias (como “Volta ao Lar”-1964, “Traição”-1978), temos este texto depoimento, digno de qualquer antologia dos melhores que já se escreveu, algo comparável à carta aberta “J’accuse!” de 1898 que Emile Zola escreveu a propósito do caso do capitão Dreyfus, judeu preso injustamente por suposta traição.

É curioso constatar que de certa forma, assim como o aristocrata de “O Criado” vai aos poucos sendo minado e comandado pelo criado, o fraco Bush foi se deixando dominar facilmente (claro que com interesses pessoais também, como no caso de homoerotismo velado do filme de Losey) por poderes belicistas e corporativos que foram maiores que ele e estão ainda aí intactos, à espera de uma oportunidade para dar uma rasteira em Barack Obama, se este não promover um desmonte realmente forte, complexo e detalhado de todas estas arapucas, o que historicamente nunca aconteceu. Não se mexe
nos alicerces podres de um edifício condenado quando se acredita que ele tem apenas fortes rachaduras.

&

08/12/2005 - 06h01
Prêmio Nobel Harold Pinter faz críticas a Bush e Blair em vídeo

Folha Online

O dramaturgo britânico Harold Pinter, 75, prêmio Nobel de Literatura 2005, disse que o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o primeiro ministro britânico, Tony Blair, deveriam ser processados pela invasão do Iraque, a qual ele chamou "de um ato bárbaro de terrorismo".

Em uma gravação apresentada nesta quarta-feira na Academia Sueca, em Estocolmo, onde o Nobel é entregue tradicionalmente, Pinter disse que Bush e Blair deveriam ser denunciados a uma Corte Internacional de Justiça.

Leia abaixo a íntegra do discurso em vídeo de Pinter durante a cerimônia:

"Em 1958, escrevi o seguinte:

"Não existem distinções concretas entre o que é real e o que é irreal, nem entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa não é necessariamente ou verdadeira ou falsa; pode ser verdadeira e falsa a um só tempo".

Acredito que essa alegação continue a fazer sentido e continue a se aplicar à exploração da realidade por intermédio da arte. Portanto, como escritor eu reafirmo o que disse. Mas não posso fazê-lo como cidadão. Em minha condição de cidadão, me cabe perguntar: O que é verdadeiro? O que é falso?

A verdade na dramaturgia é sempre fugaz. Não é possível encontrá-la por inteiro, mas a busca por ela é compulsiva. É a busca que claramente propele a jornada. A busca é a sua tarefa. O mais freqüente é que você tropece na verdade em meio à escuridão, colida com ela ou capte simplesmente um vislumbre de uma imagem ou forma que parecem corresponder à verdade, muitas vezes sem compreender que o tenha feito. Mas a verdade real é que jamais existe algo como uma verdade a ser encontrada na arte dramática. As verdades são muitas. Essas verdades se contestam umas às outras, evadem umas às outras, refletem umas às outras, ignoram umas às outras, provocam umas às outras, não percebem umas às outras. Às vezes, você sente ter em mãos a verdade de um momento, e ela logo escapa por entre seus dedos e se perde.

Muitas vezes me foi perguntado de que maneira surgem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sou capaz de resumi-las, sumarizá-las, exceto dizendo que foi aquilo que aconteceu. É aquilo que elas dizem. Foi aquilo que elas fizeram.

A maior parte das peças é engendrada por uma linha, uma palavra ou uma imagem. A palavra em questão é muitas vezes seguida, pouco depois, pela imagem. Vou lhes oferecer dois exemplos de linhas que me vieram à cabeça sem motivo aparente, seguidas de imagens, e mais tarde perseguidas por mim. As peças são "The Homecoming" [a volta para casa] e "Old Times" [velhos tempos]. A primeira linha de "The Homecoming' diz "o que é que você fez com a tesoura?" A primeira linha de "Old Times" é "Escuro".

Em ambos os casos, eu não dispunha de quaisquer outras informações.

No primeiro caso, era evidente que alguém estava procurando uma tesoura, e indagava sobre seu paradeiro a outra pessoa de quem suspeitava pelo possível roubo do objeto. Mas eu de alguma forma sabia que a pessoa a quem a pergunta era dirigida não se importava nem um pouco com a tesoura, ou, aliás, com o sujeito que estava à procura dela.

"Escuro" eu decidi considerar como sendo a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e como resposta a uma pergunta. Em cada um dos casos, me vi compelido a investigar a questão mais a fundo. Isso aconteceu lentamente, por meio de uma dissolução muito lenta, da sombra para a luz.

Sempre começo uma peça dando aos personagens os nomes A, B e C.

Na peça que veio a se tornar "The Homecoming", vi um homem entrar em uma sala decorada com parcimônia, e fazer a pergunta a um homem mais jovem, sentado em um sofá horroroso e lendo um jornal de turfe. Eu de alguma maneira suspeitava que A fosse um pai e B fosse seu filho, mas não tinha certeza. No entanto, a suspeita se confirmou pouco mais tarde quando B (que viria mais tarde a ganhar o nome Lenny) diz para A (que viria a se chamar Max): "Pai, você se incomodaria em mudar de assunto? Quero lhe perguntar uma coisa. O jantar, logo agora, o que era aquilo que comemos? Qual é o nome daquilo? Por que você não compra um cachorro? Sua comida só serve para cachorros. Sério. Dá pra imaginar que o senhor está cozinhando para um monte de cachorros". Assim, já que B chama A de "pai", me pareceu razoável presumir que fossem pai e filho. "A" era também, claramente, o responsável pela cozinha, e sua culinária não parecia ser levada em alta conta. Será que isso significava que não existia mãe na casa? Eu não sabia. Mas, como disse a mim mesmo então, os nossos inícios jamais conhecem os nossos finais.

"Escuro". Uma grande janela. Céu noturno. Um homem, A (mais tarde batizado como Deeley), e uma mulher, B (que se tornaria Kate), sentados, com drinques nas mãos. "Gorda ou magra?", pergunta o homem. Sobre quem eles estão falando? Mas a seguir vejo, de pé diante da janela, uma mulher, C (mais tarde, Anna), iluminada de maneira diferente, de costas para os dois, revelando seus cabelos escuros.

É um momento estranho, o momento de criar personagens que até aquele momento não existiam. O que vem a seguir é um procedimento espasmódico, incerto, até mesmo alucinatório, embora ocasionalmente ocorra como uma avalanche incontrolável. A posição do autor é incômoda. Em certo sentido, os personagens não o acolhem com agrado. Os personagens resistem a ele, a convivência nunca é fácil, defini-los é impossível. Mas você enfim descobre que tem em suas mãos pessoas de carne e osso, pessoas dotadas de vontade e de uma sensibilidade pessoal própria, feitas de componentes que é impossível alterar, manipular ou distorcer.

Assim, a linguagem, na arte, continua a ser uma transação altamente ambiciosa, uma areia movediça, um trampolim, uma piscina congelada que pode ceder sob seus pés, os pés do autor, a qualquer instante.

Mas, como eu disse, a busca pela verdade não pode parar. Não se pode postergá-la. Ela precisa ser encarada, naquele exato lugar, naquele exato momento.

O teatro político acarreta um conjunto completamente diferente de problemas. É preciso evitar a qualquer custo um tom de pregação. Objetividade é essencial. É preciso permitir que os personagens respirem um ar que lhes seja próprio. O autor não pode confiná-los e restringi-los a fim de satisfazer seu gosto, disposição ou preconceito. Deve estar preparado para abordá-los de diferentes ângulos, com um conjunto amplo e desinibido de perspectivas, tomá-los de surpresa, talvez, ocasionalmente, mas ainda assim dar-lhes a liberdade de seguir o caminho que preferirem. Isso nem sempre funciona. E a sátira política, evidentemente, não adere a qualquer desses preceitos, e na verdade age de maneira completamente oposta, o que está implícito em sua função.

Em minha peça "The Birthday Party" [a festa de aniversário], creio que permiti que uma ampla gama de opções operasse em meio a uma densa floresta de possibilidades, antes de finalmente me concentrar no ato de subjugação.

"Mountain Language" [idioma da montanha] não pretendia atingir uma gama de operação tão ampla. É brutal, curta e feia. Mas os soldados da peça se divertem um pouco com ela. Às vezes é fácil esquecer que os torturadores se entediam com facilidade. Precisam de uma dose de riso para manter seu ânimo. Isso, evidentemente, foi confirmado pelos acontecimentos em Abu Ghraib e Bagdá. "Mountain Language" dura apenas 20 minutos, mas poderia se estender por hora após hora, interminavelmente, com o mesmo padrão repetido vezes sem conta, interminavelmente, hora após hora.

"Ashes to ashes" [da pó ao pó], por outro lado, me parece transcorrer sob a água. Uma mulher que está se afogando, a mão que se ergue por sobre as ondas e volta a desaparecer, tentando encontrar outras pessoas mas sem achar ninguém ali, quer acima, quer abaixo da água. Existem apenas sombras, reflexos, flutuando. A mulher é uma figura perdida em uma paisagem afogada, uma mulher incapaz de escapar ao destino trágico que parecia caber apenas a outros.

Mas, da mesma forma como eles morreram, ela deve morrer.

A linguagem política, tal qual usada pelos políticos, não se aventura por qualquer parte desse território, já que a maioria dos políticos, pelos indícios de que dispomos, não estão interessados na verdade, e sim no poder, e na manutenção desse poder. Para manter o poder é essencial que as pessoas sejam mantidas na ignorância, que vivam ignorando a verdade, até mesmo a verdade de suas vidas. O que nos cerca, portanto, é uma vasta tapeçaria de mentiras, das quais nos alimentamos.

Como sabem todas as pessoas aqui presentes, a justificativa para a invasão do Iraque era o fato de que Saddam Hussein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos, e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma ameaça para a segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade.

A verdade é algo de inteiramente diferente. A verdade se relaciona à maneira pela qual os Estados Unidos compreendem seu papel no mundo, e escolhem personificá-lo.

Mas antes que eu retorne ao presente, gostaria de mencionar o passado recente, e com isso quero dizer a política externa dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Acredito que seja obrigatório, para nós, sujeitar esse período a pelo menos alguma forma de escrutínio limitado, que é tudo que o tempo disponível nos permitirá, aqui.

Todos sabem o que aconteceu na União Soviética em toda a Europa Oriental no período do pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão impiedosa do pensamento independente. Tudo isso foi amplamente documentado e comprovado.

Mas o que pretende defender aqui é que os crimes dos Estados Unidos no mesmo período só foram registrados de maneira superficial, quanto menos documentados, e ainda menos reconhecidos como crimes de qualquer ordem. Acredito que isso precise ser encarado, e que a verdade a esse respeito tenha considerável importância para a situação em que o mundo agora se encontra. Ainda que restringidas, em certa medida, pela existência da União Soviética, as ações dos Estados Unidos em todo o mundo deixavam claro que o país concluíra dispor de carta branca para fazer o que desejasse.

A invasão direta de um Estado soberano jamais foi o método predileto dos Estados Unidos, na realidade. No geral, os norte-americanos preferem o que costuma ser descrito como "conflitos de baixa intensidade". Um conflito de baixa intensidade significa que milhares de pessoas morrem, mas de maneira mais lenta do que se você lançasse uma bomba contra elas em uma ação rápida. Significa que você infecta o coração do país, estabelece um tumor maligno e assiste enquanto a gangrena se espalha. Quando a população foi subjugada ou espancada até a morte, e seus amigos --os militares e as grandes empresas-- ocupam o poder confortavelmente, você convoca as câmeras e anuncia que a democracia prevaleceu. Essa era uma situação comum na política externa norte-americana, durante os anos aos quais me refiro.

A tragédia da Nicarágua é um caso altamente significativo. Eu decidi mencioná-la aqui como poderoso exemplo da visão norte-americana quanto ao papel de seu país no mundo, tanto então quanto agora.

Participei de uma reunião na embaixada norte-americana em Londres, no final dos anos 80.

O Congresso dos Estados Unidos estava se preparando para decidir se concederia mais dinheiro aos Contras em sua campanha contra o Estado da Nicarágua. Eu era membro de uma delegação que deporia em favor da Nicarágua, mas o mais importante integrante dessa delegação era o padre John Metcalf. O líder da equipe norte-americana era Raymond Seitz, então primeiro secretário da embaixada e mais tarde embaixador dos Estados Unidos em Londres. O padre Metcalf disse: "Senhor, cuido de uma paróquia no norte da Nicarágua. Os fiéis locais construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Vivíamos em paz. Alguns meses atrás, uma força de Contras atacou a paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro médico. Estupraram enfermeiras e professoras, massacraram médicos, da maneira mais brutal. Comportaram-se como selvagens. Por favor, exijam que o governo dos Estados Unidos retire seu apoio a essas chocantes atividades terroristas".

Raymond Seitz tinha ótima reputação como homem racional, responsável e altamente sofisticado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ele ouviu, fez uma pausa e a seguir disse, de forma solene: "Padre, permita-me dizer-lhe uma coisa. Na guerra, pessoas inocentes sofrem". Surgiu um silêncio gélido. Nós o encaramos. Ele não mostrou qualquer hesitação.

As pessoas inocentes, de fato, sempre sofrem.

Por fim, alguém disse: "Mas nesse caso as 'pessoas inocentes' foram vítimas de uma atrocidade cruel subsidiada por seu governo, uma dentre muitas. Se o Congresso conceder mais verbas aos Contras, novas atrocidades como essas acontecerão. Não é verdade? O seu governo, portanto, não deveria ser considerado culpado por apoiar atos de assassinato e destruição praticados contra os cidadãos de um país soberano?"

Seitz se manteve imperturbável. "Não concordo que os fatos, tais como apresentados, sustentem essas asserções", afirmou.

Quando estávamos saindo da Embaixada, um dos assessores da delegação norte-americana disse que apreciava minhas peças. Eu não respondi.

Devo lembrá-los de que, naquele período, o presidente Reagan afirmou que "os Contras são o equivalente moral de nossos Pais Fundadores".

Os Estados Unidos apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo nicaragüense, liderado pelos sandinistas, derrubou esse regime em 1979, em uma inspiradora revolução popular.

Os sandinistas não eram perfeitos. Eram dotados de dose considerável de arrogância, e sua filosofia política continha dose considerável de elementos contraditórios. Mas eram pessoas inteligentes, racionais e civilizadas. Decidiram estabelecer uma sociedade estável, decente e pluralista. A pena de morte foi abolida. Centenas de milhares de camponeses vítimas da pobreza foram resgatados, à beira da morte. Mais de 100 mil famílias receberam terras. Duas mil escolas foram construídas. Uma notável campanha de alfabetização reduziu o analfabetismo no país a menos de 15%. A educação gratuita foi estabelecida, bem como um serviço gratuito de saúde. A mortalidade infantil foi reduzida em um terço. A poliomielite foi erradicada.

Os Estados Unidos denunciaram essas realizações como subversão marxista/leninista. Na opinião do governo norte-americano, um exemplo perigoso estava sendo estabelecido. Se fosse permitido que a Nicarágua estabelecesse normas básicas de justiça social e econômica, se o país conseguisse elevar seus padrões de saúde e educação e obter unidade social e auto-respeito nacional, os países vizinhos talvez começassem a fazer as mesmas perguntas e a agir da mesma maneira. Existia, na época, uma feroz resistência ao status quo em El Salvador.

Falei anteriormente sobre uma "tapeçaria de mentiras" que nos cerca. O presidente Reagan usualmente se referia à Nicarágua como "calabouço totalitário". A mídia, e com certeza o governo, britânicos consideravam que a declaração representasse um resumo acurado e justo. Mas não existem, na verdade, registros de que esquadrões da morte estivessem em operação sob o governo sandinista. Não há histórico de tortura. Não há registro de brutalidade militar sistemática ou oficial. Nenhum religioso foi assassinado na Nicarágua. Na verdade, o governo contava com três religiosos em suas fileiras, dois padres jesuítas e uma missionária de Maryknoll. Os calabouços totalitários na verdade existiam nos países vizinhos, em El Salvador e na Guatemala. Os Estados Unidos derrubaram o governo guatemalteco democraticamente eleito, em 1954, e estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham caído vítimas das ditaduras militares que se sucederam.

Seis dos mais distintos religiosos jesuítas do mundo foram assassinados cruelmente na Universidade Centro-Americana de El Salvador, em 1989, por um batalhão do regimento Alcatl, treinado em Fort Benning, Geórgia, EUA. O arcebispo Romero, homem de extraordinária coragem, foi assassinado enquanto celebrava a missa. Estima-se que 75 mil pessoas tenham morrido. Por que foram mortas? Foram mortas porque acreditavam que uma vida melhor era possível e devia ser conquistada. Essa crença as qualificava imediatamente como comunistas. Morreram porque ousaram se opor ao status quo, ao infinito platô de pobreza, doença, degradação e opressão que lhes cabia desde o nascimento.

Os Estados Unidos por fim conseguiram derrubar o governo sandinista. Demoraram alguns anos, mas perseguição econômica incansável e 30 mil mortes acabaram por solapar o espírito do povo nicaragüense. Eles estavam exaustos, e a pobreza voltou a atacar. Os cassinos se reinstalaram no país. A saúde e educação gratuitas não mais existiam. As grandes empresas voltaram a todo vapor. A "democracia" havia triunfado.

Mas essa "política" de forma alguma estava restrita à América Central. Foi aplicada em todo o mundo. Era incessante. E todos a tratam como se nunca tivesse acontecido.

Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos engendraram todas as ditaduras de direita surgidas no mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Basta citar Indonésia, Grécia, Uruguai, Brasil, Paraguai, Haiti, Turquia, Filipinas, Guatemala, El Salvador e, evidentemente, o Chile. Os horrores infligidos pelos Estados Unidos ao Chile em 1973 jamais poderão ser purgados, e não serão perdoados nunca.

Centenas de milhares de mortes aconteceram nesses países. Elas realmente aconteceram? E podem ser atribuídas, em todos os casos, à política externa norte-americana? A resposta é que sim, elas aconteceram, e podem ser atribuídas à política externa norte-americana. Mas é como se não tivessem ocorrido.

Jamais aconteceram. Nada aconteceu, em tempo algum. Mesmo quando estavam acontecendo, essas coisas não estavam acontecendo. Não importavam. Não mereciam interesse. Os crimes dos Estados Unidos foram sistemáticos, constantes, cruéis, impiedosos, mas pouca gente fala sobre eles. Temos de reconhecer o talento norte-americano. O país exerceu uma manipulação clínica do poder em todo o mundo, enquanto posava o tempo todo como força que deseja o bem universal. Foi um ato brilhante, e até mesmo sutil, de hipnotismo, que obteve imenso sucesso.

Eu gostaria de afirmar diante de vocês que os Estados Unidos são sem a menor dúvida o maior espetáculo do planeta. Ainda que sejam brutais, impiedosos, desdenhosos e indiferentes, são também muito espertos. Como vendedores, eles não têm rivais, e o produto que eles mais vendem é o amor pelos Estados Unidos, por eles mesmos. É uma idéia vencedora. Ouçam as palavras de qualquer presidente norte-americano, na televisão, quando afirma que "digo ao povo norte-americano que é hora de orar e de defender os direitos do povo norte-americano, e peço ao povo norte-americano que confie em seu presidente quanto à ação que ele está por executar em nome do povo dos Estados Unidos".

É um estratagema cintilante. A linguagem é empregada de maneira a impedir que o pensamento atue. As palavras "o povo norte-americano" oferecem uma almofada verdadeiramente voluptuosa de segurança, de confiança. Não é preciso pensar. Simplesmente recoste-se na almofada. A almofada talvez sufoque a sua inteligência e suas faculdades críticas, mas é muito confortável. Isso não se aplica, claro, aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, ou aos dois milhões de homens e mulheres detidos no vasto gulag de penitenciárias que se estende ao longo do território norte-americano.

Os Estados Unidos agora nem se incomodam mais em usar a desculpa dos conflitos de baixa intensidade. Não vêem mais utilidade em usar a reticência ou a astúcia. Colocam as cartas na mesa sem medo e sem favor. Simplesmente não ligam a mínima para as Nações Unidas, a lei internacional ou os dissidentes e críticos, que consideram impotentes e irrelevantes. Além disso, dispõem de um cordeirinho na coleira, que os segue balindo alegremente, o patético, submisso Reino Unido.

O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que um dia ela existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nossos atos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos atos alheios? Será que isso tudo morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura totalmente ilegítima é mantida em flagrante desafio à Convenção de Genebra. É não apenas tolerada mas raramente comentada pelo que costumamos designar como "comunidade internacional". Esse ultraje criminoso está sendo cometido por um país que se declara "líder do mundo livre". Será que nós pensamos sobre os habitantes da baía de Guantánamo? O que a imprensa tem a dizer sobre eles? Surgem ocasionalmente em alguma pequena reportagem na página seis. Foram consignados a uma terra de ninguém da qual é de fato possível que nunca retornem. No momento, pode ser que estejam em greve de fome, e sendo alimentados à força. Há cidadãos britânicos entre eles. Não existe nada de sutil no procedimento usado para forçar um detento a se alimentar. Nenhum sedativo ou analgésico. Um tubo é inserido pelo nariz do prisioneiro, até sua garganta. A pessoa vomita sangue. Isso constitui tortura. O que o secretário do Exterior britânico tem a dizer sobre isso? Nada. O que o primeiro-ministro britânico tem a dizer sobre isso? Nada. Por que nada? Porque os Estados Unidos determinaram que criticar sua conduta na baía de Guantánamo constitui violação de aliança. Quem não está com eles, está contra eles. Por isso, Blair mantém a boca fechada.

A invasão do Iraque foi um ato de banditismo, um ato de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação da mídia, e portanto do público; um ato cujo objetivo é consolidar o controle econômico e militar norte-americano sobre o Oriente Médio, disfarçado de ação de último recurso, já que todas as demais justificativas não conseguiram defender a idéia de que se trataria de um ato de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes.

Nós levamos tortura, munição fragmentável, projéteis de urânio, inumeráveis atos de homicídio aleatório, miséria, degradação e morte ao povo iraquiano, e a isso chamamos "levar liberdade e democracia ao Oriente Médio".

Quantas pessoas será preciso matar antes que o líder possa ser qualificado como assassino em massa ou criminoso de guerra? Cem mil? Mais que o suficiente, é o que eu imaginaria. Portanto, é justo que Bush e Blair sejam indiciados diante do Tribunal Internacional de Justiça. Mas Bush foi esperto. Não ratificou o tratado que constitui o Tribunal Internacional de Justiça. Assim, se qualquer soldado, ou, aliás, político norte-americano for levado a julgamento, Bush já alertou que recorrerá à força para libertá-lo. Mas Tony Blair ratificou a constituição do tribunal, e portanto poderia ser processado. Podemos fornecer o endereço dele ao tribunal, caso exista interesse. É Downing Street, número 10, Londres.

A morte nesse contexto é irrelevante. Tanto Bush quanto Blair dão importância muito pequena à morte. Pelo menos 100 mil iraquianos foram mortos por bombas e mísseis norte-americanos antes que a insurgência do Iraque começasse. Essas pessoas não importam. As mortes delas não existem. São um vazio. Não estão sequer sendo registradas como vítimas fatais. "Não contamos cadáveres", disse o general norte-americano Tommy Franks.

Nos primeiros dias da invasão, os jornais britânicos publicaram em suas primeiras páginas fotos de Tony Blair beijando um menininho iraquiano. "Uma criança agradecida", afirmavam as legendas. Poucos dias mais tarde, uma reportagem e foto publicadas em página interna mostravam um menino de quatro anos com os braços amputados. A casa de sua família foi destruída por um míssil. Todos morreram. "Quando vou ter meus braços de volta?", ele perguntava. Bem, Tony Blair não o estava abraçando, ou a qualquer outra criança mutilada, ou a qualquer cadáver ensangüentado. O sangue é sujo. Mancha a camisa e a gravata quando você está fazendo um discurso sincero na televisão.

Os dois mil norte-americanos mortos são motivo de embaraço. São transportados para seus túmulos no escuro. Os funerais são discretos, realizados em locais distantes. Os mutilados apodrecem em suas camas, alguns pelo resto de suas vidas. Assim, mortos e mutilados apodrecem, em tipos diferentes de leito.

Eis um extrato de "Estou explicando algumas coisas", poema de Pablo Neruda:

E certa manhã tudo estava queimando

uma manhã as fogueiras

saltaram da terra

devorando seres humanos

e depois disso o fogo,

a pólvora depois disso,

e depois disso o sangue.

Bandidos com aviões e mouros,

bandidos com anéis nos dedos e duquesas,

bandidos com monges encapuzados abençoando feridas

vieram pelo céu para matar crianças

e o sangue das crianças corria pelas ruas

sem ruído, como sangue de crianças.

Chacais que os chacais desprezariam

pedras que o musgo seco morderia e cuspiria longe

víboras que as víboras abominariam.

Face a face com você eu vi o sangue

da Espanha subindo qual maré

para afogá-lo em uma onda

de orgulho e facas.

Generais

traiçoeiros:

procurem minha casa morta,

olhem a Espanha morta:

de cada casa metal em chamas flui

em lugar de flores

de cada órbita ocular da Espanha

a Espanha emerge

e de cada criança morta um rifle com olhos

e de cada crime nascem balas

que um dia encontrarão

o alvo de seus corações.

E vocês perguntarão: por que a poesia dele

não fala de sonhos e folhas

e dos grandes vulcões de sua terra natal.

Venham e vejam o sangue nas ruas.

Venham e vejam

o sangue nas ruas.

Venham e vejam

o sangue nas ruas! *

Permitam-me deixar bem claro que ao citar um poema de Neruda não estou de maneira alguma comparando a Espanha republicana de Neruda ao Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em nenhum outro trabalho de poesia moderna li descrição tão poderosa e visceral do bombardeio a civis.

Eu afirmei anteriormente que os Estados Unidos são agora completamente francos quanto a colocar suas cartas na mesa. É esse o caso. É uma política oficialmente declarada, definida agora como "domínio completo do espectro". Não é um termo que eu tenha cunhado: eles o fizeram. "Domínio completo do espectro" quer dizer controle da terra, mar, ar e espaço, e todos os recursos subjacentes.

Os Estados Unidos ocupam hoje 702 instalações militares em todo o mundo, em 132 países, com a honrosa exceção da Suécia, evidentemente. Não sabemos exatamente como eles chegaram lá, mas lá estão, sem dúvida.

Os Estados Unidos possuem oito mil ogivas nucleares ativas e operacionais. Duas mil delas estão em alerta imediato, prontas para lançamento em 15 minutos. O país está desenvolvendo novos sistemas de força nuclear, conhecidos como "arrasa-bunkers". Os britânicos, sempre cooperativos, planejam substituir o míssil nuclear que empregam, o Trident. Contra quem, imagino, eles estão apontados? Osama bin Laden? Você? Eu? Joe Dokes? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que essa infantil insanidade, a posse e ameaça do uso de armas nucleares, é o cerne da filosofia política atual dos Estados Unidos. Precisamos nos lembrar de que os Estados Unidos estão sempre em pé de guerra, e não mostram sinais de relaxar sua postura.

Muitos milhares, se não milhões, de pessoas nos Estados Unidos mesmos estão comprovadamente enojadas, envergonhadas e enraivecidas diante das ações de seu governo, mas sob a situação atual ainda não são uma força política coerente. Mas a ansiedade, incerteza e medo que podemos ver crescendo a cada dia nos Estados Unidos não devem diminuir.

Sei que o presidente Bush dispõe de muitos redatores de discursos extremamente competentes, mas eu gostaria de me oferecer como voluntário para o posto. Proponho o seguinte discurso, curto, a ser feito ao país em rede de televisão. Eu o vejo sério, com o cabelo cuidadosamente penteado, convincente, sincero, quase sedutor, ocasionalmente empregando um sorriso sardônico, estranhamente atraente, um homem másculo.

"Deus é bom. Deus é grande. Deus é bom. Meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é ruim. O Deus dele é ruim. O Deus de Saddam era ruim, mas ele não tinha Deus. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não arrancamos a cabeça das pessoas. Acreditamos na liberdade. Deus também. Não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Nós usamos eletrocuções compassivas e injeções letais compassivas. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou bárbaro. Ele é. E ele é. Todos eles são. Eu tenho autoridade moral. Está vendo esse punho? Ele é minha autoridade moral. E não se esqueça disso".

A vida de um escritor é altamente vulnerável, uma atividade quase nua. Não precisamos lamentar esse fato. O escritor faz sua escolha e tem de viver com ela. Mas é lícito dizer que você fica aberto a todos os ventos, alguns dos quais de fato gélidos. Você está por sua conta, isolado. Não encontra abrigo ou proteção a menos que minta, o que permite que você construa sua própria proteção e, poder-se-ia alegar, se torne político.

Eu me referi à morte algumas vezes, esta noite. Citarei agora um de meus poemas, chamado "Morte".

Onde o corpo foi encontrado?

Quem encontrou o corpo?

O corpo estava morto quando encontrado?

Como o corpo foi encontrado?

Quem era o corpo?

Quem era o pai ou filha ou irmão

Ou tio ou irmã ou mãe ou filho

Do corpo morto e abandonado?

O corpo estava morto quando abandonado?

O corpo foi abandonado?

Por quem ele foi abandonado?

O corpo estava nu ou vestido para uma viagem?

O que faz com que o corpo seja declarado morto?

O corpo morto foi declarado morto?

Como você sabia que o corpo estava morto?

Você lavou o corpo

Fechou-lhe ambos os olhos

Enterrou o corpo

Deixou-o ao abandono

Você beijou o corpo

Quando nos olhamos no espelho acreditamos que a imagem que vemos seja acurada. Mas basta um movimento de um milímetro e a imagem muda. Na verdade, estamos olhando uma gama infinita de reflexos. Mas às vezes o escritor precisa quebrar o espelho porque é do outro lado do espelho que a verdade nos encara.

Acredito que a despeito das enormes dificuldades que existem, cabe-nos como cidadãos, com ferrenha, inamovível e feroz determinação intelectual, definir a verdade real de nossas vidas e nossas sociedades. Trata-se de uma obrigação crucial para todos nós. É de fato compulsória.

Se essa determinação não for incorporada por nossa visão política, não teremos esperança de restaurar aquilo que está quase perdido para nós: a dignidade do homem."

* Excerto de "I'm Explaining a Few Things", de Pablo Neruda, traduzido por Nathaniel Tarn para o inglês, em "Pablo Neruda: Selected Poems", Jonathan Cape, Londres, 1970. Uso licenciado pelo Random House Group.

tradução:Paulo Migliacci

Nelson Rodrigues de Souza

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Quando o Excesso de Radicalismos Arrefece o Impacto de Filmes











Antes de tudo vou assumir uma posição bem clara: “Tony Manero” de Pablo Larráin (Chile/2008) e “Anabazys” (Brasil/2008) de Joel Pizzini e Paloma Rocha são belos e bons filmes que merecem ser prestigiados. Mas o material com que contavam estes diretores era tal que poderiam ter construído obras de grande impacto, filmes extraordinários, o que está longe de acontecer porque os diretores têm idéias conceituais obsessivas que seguiram à risca e neste terreno um tanto escorregadio acabam obtendo efeitos em alguns momentos contraproducentes. Vejamos os dois casos isoladamente. Mas não é difícil perceber os pontos de contato.

Em “Tony Manero”, Raúl Peralta (com um fantástico Alfredo Castro), na faixa dos 50 anos, vive na ditadura de Pinochet, trabalha em shows de periferia, tem adoração por Tony Manero( personagem de John Travolta em “Os Embalos de Sábado à Noite”, um rei das pistas de dança na era de ouro das discotecas). Enquanto a repressão política dá as cartas com toda crueldade (um militante que distribui panfletos contra o regime é assassinado dentre outras situações de desespero e horror), Raúl mergulha na mimetização de seu ídolo, ensaiando com um grupo de amigos, chegando ao requinte de comprar tijolos de vidro com o qual monta um pequeno palco com luz vinda de baixo para dançar e constrói um globo com cacos de vidro colados para emular o glamour do seu filme cult, o qual assiste várias vezes para melhor assimilar os gestos de seu fetiche. Um concurso de danças onde se escolherá quem melhor imita Tony Manero será para ele uma grande oportunidade de se exibir pela televisão para o país inteiro.

Como Larráin de certa forma quer tornar Raúl um símbolo da alienação diante da cultura americana imposta e ao mesmo tempo fazer de sua vida uma alegoria da violência política vigente, o personagem além do lado patético tem um viés bastante sombrio: como um serial killer ele mata até mesmo um projecionista com muita raiva porque no cinema onde revia sempre “Os Embalos....”, passam a exibir “Grease-Nos Tempos da Brilhantina” com o mesmo Travolta.

Para comungar com um personagem “sujo” numa época suja, a fotografia é na maior parte cinzenta e em alguns momentos propositadamente tosca e amadora. Esta é uma idéia conceitual aplicada que é bastante interessante. Mas o abuso dela acaba cansando depois de certo tempo de exposição a esta postura estética.

Como há uma necessidade de tornar este personagem alegórico um mistério, as relações humanas que ele vivencia são mostradas de uma forma um tanto confusas, elípticas demais. Conforme entrevista a Luiz Carlos Merten no O Estado de São Paulo, Larráin rechaça as críticas de que seu protagonista teria de ser melhor definido em sua psicologia. Luís Buñuel já afirmou que quando um personagem seu cai nas malhas da psicologia ele os mata....Falta de melhor aprofundamento psicológico não é bem o caso, mas que falta mais conhecimento das circunstâncias que perpassa a vida de Raúl é algo de que o filme se ressente. Há ainda uma cena bastante escatológica que julgo dispensável, pois se pode acrescentar mais elementos para a psicopatia do protagonista em termos de ganhos alegóricos políticos, pouco acrescenta, além de um incômodo longe das necessidades dramáticas de um “Saló” de Pasolini. O final do filme nos apresenta um golpe de mestre e se escora numa sutileza que ganha maior impacto depois de muitas explicitações de crueldades. Neste caso ponto para o filme.

Larráin tinha uma obra-prima em mãos, mas deixou escapar esta graça por ter radicalizado demais e não querer fazer nenhuma concessão ao público. Na sessão em que vi o filme a platéia do Espaço de Cinema 2 do Rio de Janeiro, mais ao fundo da sala, caiu numa sonora gargalhada quando surgiram os letreiros finais. Platéia fútil? Efeito involuntário do filme? Efeito previsível por Larráin? Seja qual for a resposta creio que se Larráin tivesse sido mais comedido e sutil na morbidez das situações, como na essencial obra-prima do terror existencial e horror psicológico “O Inquilino” (1976) de Roman Polanski teríamos um filme ainda mais interessante. “Tony Manero” carrega na morbidez em muitas situações que soam pertinentes, outras nem tanto. Este excesso corre o risco de anestesiar, por defensiva, o humor do espectador. Talvez isto explique o riso da platéia. Mas repito: Talvez.... “Tony Manero” é um filme que se escora em muitos mistérios alegóricos e numa revisita (o que ainda não fiz) pode crescer.

&

Anabazys (Brasil /2008) de Joel Pizzini e Paloma Rocha em princípio iria fazer parte dos extras do DVD de “A Idade da Terra”, mas o material com que os dois cineastas se depararam com por volta de 60 horas de gravação era tão instigante que acabou se transformando num projeto para Cinema. Temos aqui outra possibilidade de um filme grandioso que não se concretiza. Com “narração” de Glauber Rocha, sempre inteligentíssimo, de delicada agressividade, provocativo e incisivo em suas “profecias”, idéias fortes e teorizações que leva à prática, ainda que eivadas de idiossincrasias que explicam melhor o seu Cinema (não o dos outros...), “Anabazys” evolui em vários planos, sobressaindo-se ótimos insights sobre o processo criativo de um inegável gênio do Cinema. Outros cineastas tentaram mimetizar Glauber com efeitos desastrosos ou irregulares.( “Prata Palomares”-1971 de André Faria Jr e ”Os Herdeiros”(1969) de Cacá Diegues, por exemplo, respectivamente). Claro que também muitas boas influências glauberianas aconteceram e este legado é inalienável.

Em ”Anabazys” temos imagens com Glauber em off ou presente, sempre irrequieto, seja provocando seus atores que atingem interpretações não naturalistas ou até discutindo com um policial à paisana (e claro, lançando a todo momento idéias sempre ousadas), cenas inéditas de “A Idade da Terra”, cenas deste filme propriamente dito, entrevistas com pessoas ligadas à feitura do filme, críticos, ensaístas, até mesmo o psicanalista Eduardo Mascarenhas ( o qual declarou anos atrás que quando Glauber o procurou já havia um processo de auto-destruição avançado e pouco pode fazer.) Não é à toa, que “querendo abraçar o Cosmos com as mãos e câmeras”, conforme já comentou Eduardo Escorel, Glauber tenha feito do muito bom e irregular (mas sempre fascinante, com seqüências de arrebatadora beleza mescladas a outras tediosas, mas tudo sempre impressionante) “A Idade da Terra”, seu eloqüente premonitório testamento. Glauber havia enviado uma carta a Zuenir Ventura que saiu na revista Visão, onde acreditava que Ernesto Geisel por ser protestante e representar uma ala de centro dentro da ditadura militar, junto com o “gênio da raça” (segundo Glauber) Golbery promoveriam uma abertura política. Mas afinal a ditadura caiu de podre ou Glauber tinha mesmo razão?

Na época Glauber foi imensamente malhado pela esquerda tradicional. A exibição de seu filme no festival de Veneza de 1980 foi tumultuada, pois discutiram mais o fato do filme ter sido produzido supostamente pela ditadura, através da Embrafilme ( o que é um grande equívoco pois o filme de chapa branca não tem nada) do que a estética e suas ressonâncias propriamente ditas, num filme que rompia com tudo que já havíamos visto antes no Brasil, até mesmo nos seminais “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, clássicos inequívocos da História do Cinema Mundial, status que “A Idade da Terra” pra mim não atinge, mesmo com sua formidável loucura criativa inspirada na morte de Pasolini e na necessidade de se contar a história não convencional de um Cristo do terceiro mundo, mesmo que fragmentado em vários personagens, um deles até andrógino ( Geraldo Del Rey), dado que o mestre polivalente italiano nos legou “O Evangelho Segundo São Mateus”.

Uma declaração de Pizzini sobre este episódio em Veneza explica melhor as limitações que vejo em seu filme:

“Foi uma experiência muito traumática para ele ter feito um filme visionário numa época de crise, quando o cinema industrial americano cooptava autores como John Cassavetes e Louis Malle", diz Pizzini, citando dois dos cineastas em competição no festival de Veneza daquele ano. ( UOL-Cinema).

Os estupendos “Glória”(1980) de Cassavetes e “Atlantic City”(1980) de Louis Malle que dividiram o Leão de Ouro, deixando Glauber a ver navios e irado, seriam segundo Pizzini, filmes de artistas cooptados, o que é uma visão equivocada e simplista. Malle então, mesmo dentro da indústria americana fez filmes grandiosos como “Pretty Baby-Menina Bonita”(1978) ou no mínimo muito bons como “A Baía do Ódio”(1985), sem contar o excepcional último filme, feito nos EUA, que é “Tio Vânia em Nova York”(1994), uma obra mais independente, com capital investido pequeno. John Cassavetes dentro de um esquema não doméstico, independente, já tinha nos brindado com o excepcional drama subestimado “Minha Esperança é Você”( A Child is Waiting-1963) com Judy Garland e Burt Lancaster magníficos, numa visão intensa da questão delicada dos distúrbios mentais e suas encruzilhadas, algo que retomaria no extraordinário “Uma Mulher Sob a Influência (1974). E saindo destes dois autores podemos dizer que Milos Forman nos maravilhosos “Procura Insaciável”, “Um Estranho no Ninho”, “Amadeus” tenha sido cooptado? E o que dizer da carreira de Fritz Lang, Douglas Sirk e Billy Wilder na América, dentre outros? Em suma, trabalhar com investimentos americanos de uma grande companhia cinematográfica não representa necessariamente nenhum sinal de capitulação de grandes ideais estéticos.

A questão maior em “Anabazys” é que mais do que uma relação afetiva forte com a obra de Glauber, que surge em belíssimas montagens de cenas de filmes do diretor, realizadas com perícia e talento por Ricardo Miranda (montador também de “A Idade da Terra”) temos um diretor até certo ponto colonizado pelas idéias fortes de Glauber, uma grande ironia pois o que Glauber mais detestava era colonização.

Assim “Anabazys” tenta exageradamente ser um filme glauberiano e como “Tony Manero” cansa em alguns momentos. Há um excesso de imagens inéditas de “A Idade da Terra”, com prolongada duração, que têm maior interesse é para os estudiosos de Glauber mesmo e neste sentido estariam melhores como extras de um DVD. Na sessão em que vi o filme numa segunda-feira havia só mais quatro pessoas. “Anabazys” dá a impressão às vezes de ser uma festa entre amigos para a qual não fomos convidados. Chega a ser irritante a pureza conceitual que não permite que se coloque nem legendas rápidas nos explicando quem está dando depoimento. Vemos apenas uma lista fria e enorme nos letreiros finais. Por que sonegar isto ao espectador? Um documentário sobre Glauber tem que ser necessariamente tão glauberiano assim? Em “A Idade da Terra” não há letreiros iniciais nem finais. Mas esta é uma singularidade deste filme.Pelo menos Pizzini e Paloma Rocha não chegaram a este ponto...

Em “500Almas”(2004), Joel Pizzini ao mostrar raros sobreviventes de uma tribo indígena, os Guatós, dispersos na região pantaneira, compõe um poema visual arrebatador, com falas dos índios e inserções de trechos da peça “A Controvérsia” de Jean Claude Carrière com Paulo José e Matheus Nachtergaale onde se “discute” se os índios tem alma ou não .... Se há certo didatismo necessário por um lado nesta parte, por outro, escorando-se também numa montagem magnífica, com captação de formações pictóricas sublimes, Pizzini sonega algo fundamental aos espectadores: não há legendas e não se entende muitos aspectos do que os sobreviventes da tribo dizimada estão dizendo. Pizzini prefere navegar na pureza de seu conceito de um filme sinfonia de imagens e sons, o que muitas vezes toca o sublime, mas este excesso, deixando lacunas de entendimentos importantes, fez com que não se tivesse a obra-prima que se poderia atingir.

“Foi uma época terrível para a autoria, um retrocesso, um tipo de cinema estava morrendo. E foi neste cenário que Glauber apresentou um filme de ruptura total: questionando o que é o cinema, o que é o espetáculo, qual o sentido das coisas, para que fazer um filme correto, alinhado com a lógica do espetáculo e da catarse", analisa Pizzini. "Esse cinema mais artístico sobrevive até hoje, mas está restrito a pequenos circuitos de arte"*

No discurso de Pizzini por um ideal estético “mais artístico”, tem-se algo que se mostra muito atraente e bonito, mas no fundo incorre em certo preconceito: vamos desprezar, para ficarmos só num exemplo, a obra de figurino clássico de um mestre como Clint Eastwood porque ele não é dado a grandes questionamentos formais?

Joel não quer ultrapassar Glauber, mas quer ser tão glauberiano quanto. Um filme subestimado, mas que de certa forma faz uma bela homenagem ao Glauber operístico ( principalmente o de “Terra em Transe” que para mim é o apogeu de sua obra, não o seu testamento “A Idade da Terra”) é “Redentor”(2004) de Cláudio Torres. O preconceito contra filmes com algum viés bem cômico não permitiu que se visse o pequeno grande filme que ali se tem, onde uma interessantíssima alegoria do Brasil é construída com vozes exaltadas, muita ganância e o estrangulamento da inocência.

É forçoso reconhecer que assim como “Tony Manero”, “Anabazys” é um filme que pode crescer em revisões. Quando vi “Terra em Transe” pela primeira vez ele ficou longe do impacto que hoje exerce em mim nas minhas compulsões em assisti-lo várias vezes, onde se encontra um “Brasil (e a América Latina) e suas mazelas captados de forma eterna”. Estou ouvindo “Zii e Zie” de Caetano Veloso, recém lançado e o prazer, depois de certo estranhamento, cresce a cada nova audição. Se isto acontece com a música freqüentemente, por que não com o Cinema? O problema é que a vida é curta e temos que fazer escolhas (e textos!).

Não comentei praticamente nada do trabalho de Paloma Rocha (e desde já peço desculpas) porque de fato não sei onde começa o trabalho dela ou como ela interage com Joel Pizzini, o que vai ser mais bem entendido num DVD e seus extras.

Para quebrar um pouco a gravidade do post, vamos imaginar, numa ”provocação antropofágica” um recado de Paulinho da Viola, para estes cineastas de um “cinema mais artístico” que Pizzini representa e encontra ecos hoje, entre os cineastas brasileiros vivos, em Paloma Rocha, Eryck Rocha, Julio Bressane, Cao Guimarães e poucos outros:

Argumento Cinético

Tá legal,
Ta legal, eu aceito o argumento,
Mas não me altere o cinema tanto assim,
Olha que a rapaziada está sentindo a falta,
De um cinema com começo, meio e fim...

Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar

Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar

* http://cinema.cineclick.uol.com.br/noticias/index.php?id_noticia=22697

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Lavagem Cerebral na Era Neurótica dos Celulares

Na última sexta-feira na penúltima sessão de "Tony Manero", no Espaço 2 de Cinema, os espectadores foram vítimas de um dos marketings mais odiosos que já vi. Este pessoal no afã de nos venderem supostas vantagens desta neurose competitiva dos celulares não tem limites.

Uma rápida propaganda de preços menores numa certa condição da TIM aconteceu. De repente faixas da lateral direita e abaixo da tela se tomam de textos e preços de propaganda e de uma mocinha imbecilizada, sorridente, fixa na diagonal direita, abaixo, sai um balão, como se fosse uma história em quadrinhos. Dentro deste balão restrito passa o trailer completo de "Che-O Argentino" de Steven Soderbergh numa irritante janela diminuta. Se fosse apenas uma amostra do trailer seria tolerável. Eu, pelo menos, gosto de assistir a um trailer por inteiro (na tela toda!) para sentir um pouco do clima dramático, cômico ou tragicômico de um filme, sua textura fotográfica, saber dos atores e suas expressões, dentre outros aspectos, mesmo sabendo que um trailer pode ser enganoso. O que foi prejudicado pela exibição autoritária da propaganda fixa da TIM como se fôssemos todos imbecis e ratinhos de laboratório a serem condicionados pavloviana e levianamente. Só não me irritei mais porque já tinha visto o filme, mas penso também nos que não o viram ainda. O pessoal do Espaço de Cinema do Rio de Janeiro não deveria se prestar a este desrespeito ao público por dinheiro algum. Soube que no Arteplex de Botafogo em "Valsa para Bashir" aconteceu a mesma coisa. Espero que isto não vire moda.

Claro que depois ainda houve outra propaganda da TIM. Essa guerra dos celulares quer nos dar a impressão que vai resolver todos os males do mundo! Uma idéia que tenho para um curta-metragem é o Carlitos de Charles Chaplin de "Em Busca do Ouro" não mais comendo uma bota cheia de pregos, mas uma "macarronada" de celulares....Tempos mais modernos..... 

 Já é muito chato e prejudicial ver trailers com luz acesa (o que virou uma praga). Agora nos vem mais essa! 

Nos primórdios da introdução de celulares no Brasil vi uma cena emblemática dos novos tempos: perto de casa na calçada do ex-Teatro Delfim uma moça estava caída no chão, chorando, ligando por celular para a família, pedindo ajuda, pois tinha apanhado do namorado. Este continuava enchendo-a de impropérios.

Tudo isto confirma Ernesto Sábato: “O homem do século XX é um gigante técnico e um infante ético”.  O que eu estendo para o século XXI, num nível mais radical.

http://idgnow.uol.com.br/idgimages/200704/GodFather.jpg

Nelson Rodrigues de Souza








sábado, 11 de abril de 2009

Réquiem Por Uma Humanidade Demasiadamente Humana e Bandida




Não conheço crítica negativa feita ao filme “Carandiru” (Brasil-2003) de Hector Babenco que se sustente. Pelo que saiba só Hugo Sukman em O Globo, elevou o filme ao grande patamar que merece. Senão vejamos:

1) ”Luis Carlos Vasconcelos não corresponde à verdadeira dimensão humana de Drauzio Varella....”.

O ator passa com palavras, gestos e olhares todo calor humano de quem não quer julgar ninguém, quer antes de tudo compreender, quer ser solidário, numa interpretação muito rica em nuances. É alguém que vibra com as pequenas e grandes conquistas dos presos.

2) “Carandiru” faz o elogio da “bandidagem”.

O filme como seu personagem médico, quer antes compreender do que julgar. É um filme generoso com seus personagens desvalidos. Estamos aqui longe da implacabilidade de “Dezesseis Zero Sessenta” de Vinícius Mainard com roteiro do irmão “enfant terrible” Diogo Mainard. Esse olhar de Babenco, poeta da marginalidade sim (por mais que este grande autor não goste do epíteto...) está presente em todos os seus filmes: uma solidariedade singular e comovente.

Em “Carandiru”, por mais que se evidencie o massacre de 2 de outubro de 1992, promovido pelos policiais com o beneplácito de seus comandantes nos choques brutais ( 111 presos indefesos executados ( segundo certas conversas que tive, muito mais do que isto), sendo que este fato serviu de pretexto para a criação do PCC- Primeiro Comando da Capital com o slogan “ Paz, Justiça e Liberdade”, ” roubado” do Comando Vermelho Carioca, para os detentos se protegerem de futuros morticínios), assim como várias cenas anteriores ( um rato que sai da pia que morde dedo do preso Majestade; o irmão Zico, que, doidão, joga água quente em outro irmão, Deusdete; Zico sendo esfaqueado e morto por vários outros presos ,numa situação que nos remete a “Assassinato no Expresso do Oriente”, policial de Agatha Christie filmado com eficácia por Sidney Lumet; briga de facções, talvez tendo por estopim o fato de um presidiário colocar ou não uma cueca num varal; um enforcamento de um estuprador numa noção canhestra de ética carcerária; assaltos a carros forte promovidos por Antonio Carlos e Claudiomiro; comparsas que se traem mutuamente; mulheres que disputam o mesmo homem com violência verbal; Peixeira como “o dono do pedaço”,cobrando estadia de outros presos; o mesmo Peixeira, culpando-se e tendo pesadelos com mortos que voltam “do além”, considerando-se enlouquecido e questionando o médico sobre sua própria sanidade; os aidéticos mostrados com verdade acachapante; o preso gordo que encalha num túnel cavado para fuga e é assassinado para dar passagem aos outros...etc...), por mais que ocorra todas essas “encruzilhadas das bestas humanas”, estamos longe do sabor completamente amargo que filmes respeitáveis e muito bons nos trazem, por não atingirem uma maior transcendência humana. É o caso de obras tais como “Contra Todos” de Roberto Moreira, “Nina” de Heitor Dhalia, “O Invasor” de Beto Brandt, “Amarelo Manga” de Cláudio de Assis, “Um Céu de Estrelas” de Tatá Amaral, “Cronicamente Inviável” de Sérgio Bianchi e e o recente “Tony Manero”, filme chileno de Pablo Larráin, etc...

Não é uma questão de sermos Polyanna, “tapando o sol com a peneira”, mas sim de termos fé no ser humano, com suas qualidades e defeitos, por mais que haja violências várias e corrupções para todos os gostos e desgostos, por mais que a realidade grite não...Se perdermos esta fé e acreditarmos que o homem é e sempre será o lobo do homem, não nos sobrará mais nada, a não ser clamar aos céus por uma boa morte.

No também extraordinário “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles, esta fé nos vem através do personagem do jovem fotógrafo, que assim como Paulo Lins, um dos roteiristas do filme e autor do romance que deu origem a esta obra, “deu a volta por cima”. O autor Paulo, hoje trabalha sua experiência para compreendermos, antes de tudo, o que se passa, sem moralismos e falsas piedades, numa situação que aponta para a responsabilidade de todos nós, uma resposta à questão proposta por José Joffily em seu pouco visto e urgente “Quem Matou Pixote?”. A força e contundência do rapper MV Bill e suas atitudes é outro sinal desta transcendência. Sabermos que trabalham de modo tão vigoroso meninos e jovens de favelas em “Cidade de Deus” é uma dádiva, sem nenhum paternalismo.

A velha senhora que é a única a acompanhar o enterro do rapaz “justiçado” de forma torpe e criminosa pela polícia em “Ônibus 174” de José Padilha, um dos melhores documentários do Cinema Brasileiro, é também um momento de grandeza em meio ao caos da “cidade partida” que é o Rio de Janeiro hoje. Num grau menor de qualidade “O Diabo a Quatro” de Alice de Andrade mesmo com o espírito “cada um por si e Deus contra todos”, num roteiro em que nunca sabemos ao certo para onde vai, ao final também consegue ser não niilista.

Em “Carandiru” a humanidade dos presos e do médico nos restitui o dom de acreditarmos que um mundo diferente é possível, por mais que vejamos, com mais um extraordinário trabalho de fotografia de Walter Carvalho, um cipoal de iniqüidades, crueldades, malandragens, assassinatos e roubos.

A rigor não tenho nada contra obras artísticas que se constituem em autênticos “Cul- de- Sac” ou seja “Becos Sem Saída”, como “Dogville” de Lars Von Trier”, “Armadilha do Destino”, “O Inquilino”,”Lua de Fel”, “Chinatown e “O Bebê de Rosemary de Roman Polanski, “Cerimônia Secreta” de Joseh Losey, “O Processo” de Orson Welles,”Quanto Vale ou é Por Quilo” de Sérgio Bianchi,“ O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante” de Peter Greenaway , “A Professora de Piano” de Michael Haneke, “Assunto de Mulheres” de Claude Chabrol”, ”Saló” de Pasolini, ”O Crepúsculo dos Deuses” de Billy Wilder, ”O Passageiro: Profissão Repórter” de Antonioni, “A Mulher do Lado” de François Truffaut ( “Nem com você, nem sem você”), as tragédias gregas e de Shakespeare, obras de Kafka, Becket, Arrabal, Jean Genet, Ionesco, muito de Fassbinder, etc...etc...

É função também da obra de arte incomodar, inquietar o leitor/espectador, deixá-lo quase que sem ar, boquiaberto, mas que seja obra poderosa o suficiente para fazê-lo refletir e assim ao seu modo reverter o que se apreende na obra de arte, seja numa exposição, numa tela de cinema, num palco ou numa leitura. Não podemos trazer os fantasmas vistos nas obras de arte para as nossas vidas simplesmente e sim através de uma catarse, ganhar elementos para (por que não?) mudarmos a própria vida e a dos nossos semelhantes indiretamente, num trabalho minimalista, de formiguinha, mas que pode ter suas repercussões benignas de maior alcance. A grande arte muda a vida sim e indiretamente o mundo!Quem diz/escreve o contrário está equivocado.

Tenho, entretanto “uma queda especial” para obras que sem nenhuma babaquice, sem pieguice, sem “forçação de barra”, abrem frestas para esse “Beco sem Saída” e nos apontam para uma pequenina que seja, “luz no fim do túnel”. Claro que estas qualidades são muito subjetivas. Elas podem estar presentes ou não dependendo do espírito crítico de quem julga. Considero, por exemplo, o final de “Minority Report: A Nova Lei” de Spielberg perfeito. Já há quem considere essa obra (premonitória dos horrores das paranóias atuais dos americanos e de gente de outros quadrantes (baseada no mesmo Philip Dick de “Blade Runner”), onde todos são suspeitos de serem criminosos até prova em contrário), um filme restaurador de uma reles ordem familiar, crítica ao meu ver, não pertinente, que estendem a outros filmes essenciais de Spielberg, um dos gênios do cinema contemporâneo com um dos olhares cinematográficos mais instigantes, uma imagética das mais fortes e belas, o que se pode observar até mesmo em filmes realmente menores como “O Terminal”.

Os filmes a que me refiro, não niilistas, são obras que transcendem e vigorosamente entram e saem do “teatro da crueldade humana”. “Carandiru” de Babenco, ao seu modo bastante enviesado, apesar do massacre monumental e perversidades expostas comunga com um amor extremo às pessoas como, dentre várias possibilidades, “Noites de Cabíria” ,“8 e Meio” e “Amarcord” de Federico Fellini, “A Trilogia da Vida “ de Pasolini, “O Pianista” de Roman Polanski, “Uma Canção para Martim” de Billie August (só exibido num festival BR-RJ no Brasil), “Tudo Sobre Minha Mãe” e “Carne Trêmula” de Almodóvar, “Estação Doçura” e “Bagdá Café” de Percy Adlon, “As Lagrimas Amargas de Petra Von Kant” peça e filme de Rainer Werner Fassbinder, “A Lista de Schindler” de Spielberg, “Exílios” de Tony Gatlif, “Gritos e Sussurros” e “Face a Face” de Ingmar Bergman, “Solaris” de Andrei Tarkovsky, “2001, Uma Odisséia no Espaço” de Kubrick, “Pai Patrão” dos Irmãos Tavianni, “Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues, “Asas do Desejo” de Wim Wenders, etc, etc...

Nem só de gosto amargo na boca vive o amante da sétima arte e outras. Há o agridoce e o transcendente também. ”O Beijo da Mulher Aranha”, romance de Manuel Puig, tornado peça de teatro, filme de Hector Babenco e musical da Broadway, tem em Molina uma dignidade, uma sabedoria e alegria de viver, que nos contagia e nos faz sentirmos mais fortes, ainda que seu final seja trágico.

3) “Rodrigo Santoro faz um travesti, para obviamente, Babenco nos mostrar um ator da Rede Globo num difícil papel”.

Rodrigo é hoje mais do que “um ator da Globo”: seu excelente trabalho em “Bicho de Sete Cabeças” de Laís Bodansky , “Abril Despedaçado” de Walter Salles, “Leonera” de Pablo Trapero e num tom menor em “A Dona da História” de Daniel Filho, dentre outros, o colocam como um do melhores atores de sua geração. Sua composição do travesti Lady Di é primorosa, gesto por gesto, olhar por olhar. O casamento dele com “Sem Chance” vivido pelo também soberbo Gero Camilo, é uma das cenas mais tocantes do Cinema Brasileiro. A alegria genuína dos amantes, o jeito feliz e cúmplice do médico, fazem da cerimônia celebrada por um homossexual, um oásis em meio a tantas agruras. Antes temos a fala excelente da mãe de Lady com o pai, que não quer o casamento: ”Nós estamos velhos demais pra sabermos o que é certo, o que é errado.”

4)” O filme foi recebido friamente pela platéia e pelo júri em Cannes”.

Desde quando a platéia de Cannes, em alguns aspectos fashion, os júris, são termômetros certos de qualidade superior e justiça? Absurdos acontecem por lá. “Dogville” de Lars Von Trier perder a Palma de Ouro para “Elefante” de Gus Van Sant, um filme muito bom, mas que é um pigmeu perto do primeiro, é pra mim um grande equívoco. “Roseta” dos irmãos Dardenne (só exibido em festivais no Brasil) que ganhou a Palma de Ouro principal, é excelente, mas não é mais significativo que o aliciante e fantástico “Tudo Sobre Minha Mãe” de Pedro Almodóvar. A não inclusão de “Casa de Areia” de Andrucha Waddington na competição oficial de 2005, um filme também transcendental, é uma gritante injustiça, etc...

”Dogville” nos mostra um mundo muito cruel, em que a violência é combatida com violência, mas sua dramaturgia é tão poderosa que o amargor vem acompanhado de uma sólida reflexão sobre os desatinos desse país (os EUA) que se considera um exemplar de civilização a ser seguido por todos os povos, o que toca as cordas do absurdo. Pode-se extrapolar o filme para outros rincões, mas a referência particular aos americanos é notória. A maldade do ser humano neste filme assusta mais do que a que é praticada por presos de “Carandiru”. Lars Von Trier tem um olhar perverso, numa chave altamente crítica que aponta para soluções que o espectador é quem tem que buscar, uma forma também legítima de se fazer cinema.

5) “Carandiru” é mal-ajambrado enquanto filme”

O filme de Babenco tem roteiro magnífico (de Fernando Bonassi, Victor Navas, o próprio Hector) com cuidadosos e elucidativos flashbacks que compõem um mosaico dos antecedentes criminais e esperanças de vários presos chaves da narrativa.Uma eficácia que os maneiristas flashbacks de Monique Gardenberg em “Benjamin” não atingem. Os trabalhos de Wagner Moura, Lázaro Ramos, Ailton Graça, Millen Cortaz, Caio Blat, Ricardo Blat, Milton Gonçalves, a sempre sublime e camaleônica Maria Luiza Mendonça ( tão esplêndida aqui como em “ Coração Iluminado”, outro trabalho subestimado de Babenco, assim como o oportuno e inquietante “Brincando nos Campos do Senhor”, onde o olhar generoso é direcionado aos índios, mas sem idealizá-los), etc... são de rara qualidade.

Estes desempenhos nos reafirmam o quanto Babenco é um meticuloso diretor de atores, assim como tem apurado senso de ritmo na realização de planos e seqüências que retemos na nossa memória afetiva tais como Pixote mamando num peito da prostituta de Marília. Pêra; a missionária fanática de Kathy Bates espantando os índios que se amam na rede em “Brincando nos ...”; Meryl Streep como uma sem-teto que se abriga numa biblioteca fingindo que lê livros em “Ironweed”, um fracasso de público nos EUA porque seu pobre povo não pode ter olhos para sua própria miséria, principalmente através de um filme lançado no dezembro natalino, por um olhar estrangeiro.

Dentre algumas seqüências de “Carandiru” primorosas, com sabor de antologia destacam-se: o sangue que se mistura à água escadaria abaixo, lembrando-nos uma pintura de grandes mestres; o hino nacional cantado com fervor pelos jogadores, pouco antes do massacre, onde eles estão em comunhão com essa nação que nos traz tantas decepções, mas o que importa é que por alguns momentos de epifania, eles acreditam no país em que vivem; o desalento dos presos todos nus no pátio, enfileirados, numa massa de sobreviventes atordoada; o preso interpretado por Dionísio Neto, que é salvo do extermínio por ter a cara parecida com o filho de um policial que por um triz não lhe tira a vida; a entrada triunfal de Rita Cadillac ensinando a uma platéia gigantesca, atulhada de presidiários o uso correto de camisinha através de uma fálica garrafa e a alegria e euforia das pessoas com aquele grandioso show da diva possível, etc..Algo análogo em menor escala, em relação à Rita, Babenco faz com um show de um cover mambembe de Roberto Carlos em “Pixote” no deletério ambiente da FEBEM que o filme nos mostra.

Babenco está aqui no auge de sua maturidade enquanto cineasta. O extraordinário “Pixote” tem a sombra de “Os Esquecidos” uma das obras-primas de Luis Buñuel, pairando sobre ele. Quanto a “Carandiru” não há um filme sequer sobre encarceramento de seres humanos, ao que eu saiba, que o suplante, nem mesmo os excelentes “O Sistema” de Tom Gries,. “Um Sonho de Liberdade” de Frank Darabont e até mesmo o vigoroso “Memórias do Cárcere, que é parcimonioso no retrato dos presos comuns (o seu forte é mostrar como resistem os intelectuais como Graciliano Ramos, uma médica como Nise da Silveira, etc criando seus mundos à parte numa atitude análoga, mas bem diferente das criações dos encarcerados de “Carandiru”). Só o subestimado e excepcional “O Expresso da Meia Noite” de Alan Parker lhe é comparável.Tanto Parker como Babenco trazem com vigor raro, o horror que é ser privado de liberdade numa prisão.Num país (ou mundo?) em que se fizermos uma enquête, a maioria das pessoas deve comungar com um ódio atroz pelos presos, por supostamente estarem com “casa, comida, roupa lavada, energia elétrica, etc..”, tudo de graça, estes filmes essenciais não realizam pequena façanha...

6) ”A implosão do complexo de prédios do Carandiru, um documentário inserido no filme traz a falsa impressão de que os problemas de presos estão resolvidos no Brasil.”

O filme não autoriza essa interpretação. Ele mostra o que aconteceu realmente. Aquele inferno particular foi destruído, sepultando muitas histórias, algumas colhidas pelo olhar generoso de Drauzio Varella. Outros infernos existem em outros recantos. Babenco não é ingênuo, ele sabe disso. Pode-se agora fazer um filme, por exemplo, sobre os horrores de uma prisão de São Gonçalo, com presos engaiolados e amontoados, se revezando para poderem dormir.

7) “ O Prisioneiro da Grade de Ferro” de Paulo Sacramento é o filme que vai ficar para a História como um autêntico retrato do que era o complexo “Carandiru”, um documentário que tem o olhar dos próprios presos para a realidade que os circunda, com câmeras de vídeo em mãos.”

Carandiru já ficou na memória de milhões que foram prestigiá-lo no Cinema, o estão assistindo em DVD e por serem atingidas profundamente pelas emoções vivenciadas pelo filme, passaram essas emoções para outras pessoas e uma corrente eterna será feita.

&

Defeitos? O filme tem um “gravíssimo”: poderia ter apresentado uma metragem muito maior, pois mais histórias boas para contar não faltavam. Não é à toa que surgiu a série de televisão com o mesmo tema.

“Carandiru” é um filme humanista na melhor tradição do termo como “Ladrões de Bicicleta ” e “Umberto D” de Vittorio De Sica , “Três Irmãos” de Francesco Rossi, “Os Últimos Passos de um Homem”de Tim Robbins, “Não Matarás” de Krzysztof Kielowski. “As Portas da Justiça” de Gianni Amélio, ”Dançando no Escuro” de Lars Von Triers, etc.....sendo esses quatro últimos filmes, dentre outros temas, excepcionais libelos contra a pena de morte, sem perder a dimensão de grandes obras de arte, representando um não rotundo aos que almejam essa punição extrema, uma obviedade que deveria ser seguida por toda sociedade que se quer julgar civilizada, mas que não encontra eco num contingente enorme de pessoas e países. Para muita gente, inclusive pessoas que se acreditam bem-pensantes, a palavra humanismo hoje virou palavrão. A propósito de seu filme citado anteriormente, com atuações embasbacantes de Sean Penn e Susan Sarandon, Tim Robbins afirmou que sua função como cineasta era abrir janelas para onde as pessoas não querem mais olhar, uma operação que se encontra em todos os filmes de Hector Babenco e em “Carandiru” em particular..

Segundo os letreiros finais há três versões para a história que “Carandiru” nos conta: a de Deus, a dos policiais e a dos presos. Foi mostrada a dos presos....Mas com intervenção divina acrescento.

Para quem ainda não entende (ou finge que não entende) por que aconteceram/acontecem as Revoluções Francesa, Mexicana, Cubana, Bolchevique, as rebeliões nas Febens e nos presídios como houve em “Carandiru”(um complexo projetado para abrigar 3000 presos mas que já chegou a ter em seus domínios por volta de 9000 ), os homens-bomba, a revolta de Canudos, a violência nas favelas e nas ruas dos grandes centros,etc...medite sobre este trecho de “O Grito do Povo- Os Canhões do Dezoito de Março”, história em quadrinhos sobre a insurreição popular de 1870, com a França mergulhada numa guerra civil, conhecida como a “Comuna de Paris”, HQ esta, desenhada e escrita por Tardi ( famoso por ter feito o cartaz de E La Nave Va de Fellini) e Vautrin ( escritor e cineasta, membro da academia francesa de letras):

“Por acaso somos cegos? É preciso que os pobres cheguem a tal ponto de miséria que não lhes reste alternativa a não ser se rebelar? Um dia as cordas que os prendem irão se transformar no estandarte do ódio.”

http://www.aids.org.br/mostra2006/images/filmes/Carandiru.jpg

http://www.cdcc.usp.br/ciencia/artigos/art_23/sampafilmesimagem/carandiru.jpg

http://globofilmes.globo.com/GF/foto/0,,5124472,00.jpg

Nelson Rodrigues de Souza

sexta-feira, 10 de abril de 2009

"No Limiar da Corrupção" – Um Conto



No Limiar da Corrupção 

Tão logo o diretor da Autarquia entrou na sala de reuniões, os chefes de departamento silenciaram imediatamente e acompanharam-no com seus olhares receosos. Tinham já conjecturado sobre a razão desta reunião extraordinária, mas nenhum deles possuía um indício sequer realmente palpável. “Quando falta informação, a imaginação coloca-se a trabalhar” – já filosofou antes várias vezes o inefável e imprevisível diretor. E era justamente desse mal que padeciam os intrigados funcionários. 

Dr. Mendonça sentou-se na cabeceira da mesa, tomou pausadamente o seu cafezinho enquanto calculava as palavras a ser proferidas, o que deixou alguns dos chefes mais impacientes, irritados, ainda que não permitissem que essa irritação transparecesse, penalizando então os pobres lábios que se viam furtivamente mordidos. 

“Senhores, o momento que nossa Autarquia atravessa é muito grave!” – enfatizou Dr. Mendonça, como um dentista que depois de uma longa “mise-en-cene” toca uma cárie exposta. “Nós todos aqui sabemos da excelência dos trabalhos realizados, temos consciência de que temos sempre procurado fazer o melhor para o desenvolvimento de nosso setor, mas o nosso Ministro não anda sendo bem informado a respeito da  necessidade vital de permanência da nossa Autarquia. Senhores, eu sei que ficarão estarrecidos como eu fiquei, mas cumpro o doloroso dever de lhes informar que se cogita em Brasília de acabar com o nosso órgão, depois de tantos anos de bons serviços prestados! E isto nem é um segredo. Outros órgãos também tem problemas neste sentido.Vocês vão ler isto nos jornais. Uma lástima!” 

Os chefes que até então ouviram tudo com calculada calma puseram-se a falar compulsivamente, formando uma sinfonia perturbadora e dissonante com insólitos elementos tais como “Isso não é possível!”, “É uma injustiça!”, “Essa nova presidência da República!”, “Era só o que faltava!”, “Esse Ministro!” e outras ladainhas análogas. O diretor-maestro deixou-a inacabada, interrompendo, incisivo, o estrépito dos instrumentos e retomando a palavra: “Senhores, eu sei que o momento é difícil, compreendo as suas apreensões, mas nenhuma decisão concreta ainda foi tomada. Estamos apenas no terreno das especulações. O ministro irá refletir melhor, tenho certeza. Temos as mais fortes razões para nos preocuparmos, mas não podemos permitir que uma fração sequer de desespero nos esmoreça. Temos muitos trabalhos já engatilhados e o que de melhor temos a fazer é redobrar esforços. Muito! Multiplicar o afinco com o qual devemos nos debruçar diante das tarefas. As atenções deles diante dos nossos trabalhos serão intensificadas. Nós agigantaremos a qualidade e presteza dos nossas obras com maior garra ainda. Para isso, eu tenho umas reformas para lhes comunicar. Os senhores devem  abandonar os seus postos de chefia hoje mesmo!” 

A audiência que tinha adquirido uma coloração de maior tranqüilidade voltou a apresentar o estupor, a insegurança do choque inicial. A voz reverberante do diretor novamente veio em socorro dos fiéis: “Senhores, está sendo criada hoje uma Assessoria Técnica e Administrativa da Presidência e eu conto com a colaboração de todos vocês. Os Chefes de Departamento serão de agora em diante Assessores. A nossa máquina política e administrativa estará assim muito mais azeitada. Eu poderia tomar-lhes ainda mais o tempo  para explicar-lhes o porquê de tal decisão, mas acredito que o melhor que temos a fazer é dar início  ao processo. Mãos à obra! Precisamos decidir agora sem titubeios quem serão os novos chefes mais adequados para os departamentos. Eu quero que cada chefe aqui indique o seu sucessor e o submeta à aprovação dos demais!” 

Cada chefe escolheu então o substituto, com o referendum dos demais, de acordo com um critério quando não de antiguidade, baseado no currículo e nos trabalhos desenvolvidos. Jair ao escolher Luiz Carlos, entretanto, quebrou a harmonia da seleção que reinou até então. Homero levantou as mais fortes objeções, desafiando o coro dos contentes: “Luiz Carlos me parece ter habilidade, mas nem se compara a Renato que você tem subaproveitado. Renato é mais antigo na Autarquia, tem maior experiência e um currículo muito melhor, com cursos de grande prestígio. Por que não escolhê-lo?” Jair irritou-se com a intervenção: “O senhor se mostra bem informado demais a respeito dos meus funcionários, senhor Homero. Parece até que tem relações particulares com eles. Consegue até comparar as competências. Só que o senhor deve saber muito bem também como todos nós aqui, pois já comentamos isso e muito em reuniões, que este funcionário é um homossexual e creio que não ficaria bem para uma Autarquia que necessita provar as suas melhores qualidades ter um chefe com tal predicado.” A solidariedade para com Jair foi imediata. Homero sentiu-se em incontrolável inferioridade e tentou ainda argumentar: “Eu não creio que num momento como esse em que temos de concentrar o melhor dos nossos esforços, a vida particular e afetiva de um funcionário tenha maior peso do que a sua comprovada competência. É transparente a diferença qualitativa entre os dois. Eu acho que isso vai “pegar muito mal” tanto dentro do departamento de vocês como fora. Isto pode ser fator de desestímulo, principalmente, diante de nossas funcionárias mulheres que vão se projetar no funcionário preterido. E olha que a contribuição delas tem sido decisiva!” 

 O diretor encarou Homero e Jair com energia e deu o seu parecer, após uma minuciosa e requintada baforada em seu cachimbo: “Dr. Homero tem razão! Não podemos nos descartar do funcionário Renato dessa maneira. Se ele é visivelmente o mais adequado, ele deve ser escolhido! Vamos dar-lhe um voto de confiança!”. Até mesmo Homero surpreendeu-se com a decisão do Dr. Mendonça. Mas como, segundo um slogan predominante na audiência, “chefe é chefe e decisão de chefe não se discute”, aquietaram-se todos. 

De fato, todos os presentes não mais ignoravam que Renato era homossexual. Naquela mesma sala o assunto já tinha sido alvo dos mais desabonadores e jocosos comentários. Se na época, Homero esforçou-se por ficar quieto, desta vez lembrou-se da auto-admoestação que impingiu a si com muita força e não mais se conteve, defendendo o funcionário com argumentos que resultaram um tanto ambíguos e certamente lhe provocariam algum desgaste perante os demais assessores, levantando até suspeitas pela razão de sua solidariedade, o que poderia desmontar álibis bem criados com casamento, mulher e filhos. Mas correr este risco lhe assomou como algo totalmente imperioso. 

Poucos anos atrás, quando tinham passado mais uma vez o telefone a Renato em sua sala com um sarcástico “É aquela voz”, ele atendeu como de hábito, constrangido, à chamada. Ao ver seus comentários lacônicos serem arremedados por alguns colegas num nível de deboche já agudo, interrompeu a fala alegando que depois a retomava e explodiu: “Vocês estão doidos para saber de quem é essa voz masculina que tanto liga pra cá? Não é? Pois é meu amante entenderam, é isso mesmo! Agora que vocês já estão saciados eu quero que vocês acabem com esse chá diário de mediocridade e cuidem das suas vidas e do trabalho!...” 

Renato sentiu vontade de mandá-los todos a certo lugar comum, mas lembrou-se do chefe Jair ao lado, próximo à mesinha do telefone e calou-se. Quando Renato saiu da sala, os colegas entreolharam-se em transe num coro de frases feitas, destacando-se: “Ele nunca me enganou!”, “Ele está com problemas com o macho dele e a gente é que paga o pato!” Jair  limitou-se a sacudir a cabeça e emitir  um “É...”. Na próxima reunião com os chefes de então, o assunto veio à tona. Houve até quem perguntasse a Jair se o seu funcionário era pelo menos ativo. “Essa coisa de ativo e passivo da Autarquia é com o departamento do Homero!”- disse Jair rindo. Até mesmo Dr. Mendonça abandonou a fleugma habitual e aderiu às sonoras gargalhadas. Homero cuidou-se de início, mas logo se juntou aos demais. Mais tarde envergonhou-se da concessão feita ao clima dominante. 

Informado pelo Dr. Mendonça numa reunião com os prováveis novos chefes, de que seria o chefe de seu departamento, Renato pediu um dia para dar a resposta. A indecisão do momento dado que os demais aceitaram prontamente os cargos, incomodou o diretor. Sentiu vontade de aturdir o funcionário para fazê-lo ver a grande oportunidade que lhe concedia, mas logo cedeu à idéia do tempo para assimilação da novidade, com a ressalva de que no dia seguinte, pela manhã, impreterivelmente, queria uma resposta. 

À noite Paulo e Renato levantaram todos os prós e contras da oferta da tarde e se sentiram num emaranhado novelo. “Eu sei que o aumento de salário vai ser interessante para nós dois – argumentou Paulo preocupado –, mas eu me pergunto se a gente vai ganhar tranqüilidade com o enorme aumento das suas responsabilidades. A impressão que me passa pelo mau-humor com que você tem voltado do trabalho é que as picuinhas do ambiente lhe violenta bastante. A idéia que eu faço da Autarquia é que é um buraco negro da economia, um intrincado cabide de empregos. Eu sei que este é o emprego “que se lhe ofereceram”, mas tenho meus receios. Eu sei que sou um privilegiado, pois tenho os aluguéis que recebi de herança e posso me dar ao luxo de me acomodar nos nossos trinta e tantos anos, estudando e fazendo o que bem entendo, com meus quadros que pouco vendo, sem me preocupar com esses lugares públicos e privados sórdidos. Do jeito que estão as coisas eu não sei qual deles é pior, se o marasmo do funcionalismo parasita mesclado com os vários momentos de grande sufoco( alguns tem de carregar os departamentos nas costas) ou a neurose compulsiva de lucros da iniciativa privada, sem freios.O que eu pergunto a você é se acredita mesmo que a Autarquia seja imprescindível para o país. Caso contrário não seria melhor você continuar na sua, sem se envolver demais com aquelas jararacas deste serpentário, com poucas exceções? 

Renato desconcertou-se com a objetividade do amigo. Respirou de modo ofegante, encarou-o, denunciando um ar de cansaço e enfado nos olhos e posicionou-se: “Eu cotidianamente vejo uma porção de expedientes mesquinhos ao meu redor. Pouco pude fazer até agora para mudar esse estado de coisas. Aliás, fiquei um tempo na geladeira sem me darem trabalho. Agora tenho a oportunidade de trabalhar para ver, pelo menos no meu departamento, as coisas mudarem. Olha, eu acredito que se a  Autarquia for encarada realmente com seriedade por todos, ela pode vir a ocupar seu espaço que é legitimo, necessário, da melhor maneira possível. Eu vou aceitar! Lavar as mãos será pior!”. 

Na primeira reunião que Renato realizou com seus agora subordinados ficou patente o visível mal-estar que acometeu Luiz Carlos principalmente. Se alguns olhares mostravam-se solidários, outros desconfiados, indecisos, o rosto de Luiz não disfarçava nada o desgosto por estar ali recebendo aquelas instruções todas como um funcionário como os outros, algo que o abominava. Durante a chefia de Jair fora privilegiado com os trabalhos mais interessantes, comungou com as maiores inquietações profissionais do chefe e agora sentia uma barreira nítida diante de si. Viu-se apenas como mais uma pecinha da engrenagem como tantas. 

Conforme esperava, num rápido seminário sobre os trabalhos em evolução, correspondentes a cada funcionário, que realizou entre seus subordinados, Renato deparou-se com um problema inquietante: realmente, de todos eles, dado a intimidade com o chefe anterior, Luiz Carlos era quem tinha uma visão mais abrangente dos trabalhos realizados nos últimos anos. Durante o início de sua chefia teria de contar com uma maior boa vontade desse funcionário, pelo menos até que pudesse difundir mais suas novas diretrizes perante os demais. Algo que lhe exigiria um bom tempo de ensino e muita paciência. 

Ao interessar-se por um trabalho recente que sabia ter sido feito por Jair e Luiz Carlos, o novo chefe sentiu as primeiras dificuldades. Tinha necessidade de inteirar-se do balanço feito das atividades do ano anterior em sua área. Solicitando as cópias a Luiz Carlos este alegou desconhecer o paradeiro: ”Quem sabe os originais estejam com o diretor e umas cópias com o Jair. Eu não tenho certeza” – argumentou Luiz Carlos com nítida má-vontade. Ciente da necessidade do chefe, a sempre solícita Sílvia lembrou-se da região do arquivo onde uma vaga lembrança a fazia supor que Jair tivesse guardado os documentos. Investigando o conteúdo das pastas achou o pequeno dossiê esperado. Como Renato aquela tarde extrapolou o seu horário habitual com todos, Luiz Carlos mordicou-se, mas não viu abertura para criticar a parceria. Encarou-a apenas com ferocidade lançando-lhe telepáticos palavrões. 

Na manhã seguinte Luiz Carlos enquanto o chefe não chegava recriminou Sílvia: “Qual a razão de você se adiantar e entregar os documentos para ele? Está querendo fazer boa imagem? Não adianta essa badalação para cima dele porque você sabe que ele é uma bichona! Não vai ceder aos seus apelos!... Era só o que nos faltava acontecer: a gente ficar sob o comando desse veado!”. O funcionário inflamou-se tanto que não percebeu a entrada de Renato. Silvia permaneceu impassível, não lhe fez nenhum sinal. As lamentações continuaram: “Sabe, é uma humilhação para todos nós ficarmos dependentes da vontade desse bicha! Apesar de gostar do trabalho daqui, eu vou arrumar uma transferência para a sala do Jurandir mesmo que seja uma área que me desagrada.” Pensou ainda em dizer: “Além do mais eu não estou a fim de me contagiar com Aids. Trabalhar aqui também está ficando é perigoso!” Mas imaginou Sílvia o enfrentando, esmerando-se em sarcasmo: “Está com medo de ter vontade de transar com o chefe é, pois só assim pode haver algum risco. ...E afinal quem disse que ele é soropositivo?” Luiz calou-se então neste quesito.Respirou fundo e preparou-se para mais investidas contundentes, mas percebeu finalmente a presença de Renato que os encarava, trêmulo de raiva. Por alguns instantes prevaleceu um silêncio pesado, o chefe se recompôs afinal e abrandou a intervenção desejada: “Luiz Carlos, o senhor pode ir para onde quiser. O que eu não vou permitir é que continue levantando intrigas sobre questões pessoais. Faça-me o favor de limitar-se às suas tarefas.” Luiz acomodou-se em sua mesa, furibundo, contorcendo-se com a raiva reprimida. 

Na reunião na diretoria à tarde, Renato procurou mostrar ao Dr. Mendonça as conclusões que tirou da leitura do dossiê. “Sr. Diretor há vários valores aqui superestimados. As reformas feitas não foram necessárias.Eu lamento ter de lhe comunicar isso mas o Sr. Jair exorbitou de suas funções, favorecendo sem o embasamento suficiente determinados índices. Veja... “ 

O Diretor o interrompeu: “Eu sei muito bem o que o senhor quer me mostrar. Afinal eu li também este dossiê. A questão é que o senhor ainda não sabe como é o mecanismo de dotação de recursos para a Autarquia. Nós fomos contemplados com certo orçamento para o ano passado, fizemos projetos a menos do que esperávamos. Sobrou-nos uma parcela. Nós entendemos então que essa verba teria de ser aplicada em melhorias para o nosso trabalho, como um banheiro mais moderno e outros investimentos...” “Mas diretor – interrompeu Renato estupefato –, há pouco tempo já haviam sido feitas obras no banheiro e aconteceram também compras desnecessárias, máquinas supérfluas!” Dr. Mendonça impacientou-se: “Sr. Renato, o senhor está se mostrando sem visão adequada. O Sr. pode garantir que não mais expandiremos o nosso quadro funcional? Há a lei agora que nos amarra! Mas e depois? Tudo isso que foi comprado será utilizado! Além do mais nós não poderíamos de modo algum ter devolvido a verba porque se assim tivéssemos procedido nossos orçamentos futuros estariam comprometidos. Eles não encarariam como deveriam, as nossas necessidades. Receberíamos bem menos do que nós tivéssemos pedido, pois estariam crentes que trabalharíamos com menos...Mas não vamos mais falar dessa história Sr. Renato! Isto é coisa do ano que passou! O importante é nos concentrarmos no trabalho do atual exercício. Existe um seminário urgente no qual o senhor irá nos representar, por estar melhor preparado no tema principal, em Recife, daqui a três dias.Agora tenho de ir discuti-lo junto à Assessoria, antes de lhe passar as coordenadas.” 

As novas preocupações incutidas na cabeça de Renato foram tão fortes que em alguns momentos pensou até em desistir do cargo. Sua cabeça estava tão confusa que não sabia ao certo o que mais o incomodava: se a postura do diretor diante do dossiê ou as novas tarefas recebidas de supetão. Ao aceitar o cargo já imaginava certa resistência de Luiz, mas não esperava que ela fosse tão ostensiva, o que aumentava ainda mais suas preocupações. Acalmando-se, sentou-se na escrivaninha de casa para esboçar os tópicos a serem abordados na palestra. Vendo-o tão preocupado, Paulo fez questão de acompanhá-lo até Recife. 

Após uma breve exposição dos trabalhos realizados pela Autarquia, um dos convidados perguntou a Renato sobre um problema de Olinda que não foi abordado em nenhum trabalho. O expositor simplesmente admitiu que não tinha nenhuma notícia desse trabalho. O convidado insistiu que Jair no seminário anterior havia prometido uma solução e que um ofício a respeito do tema havia sido enviado à Autarquia. A Renato só restou acrescentar que iria averiguar o que realmente aconteceu. Outro representante ousou perguntar como a Autarquia reagia à idéia ventilada de extinção. “Nós temos nos esforçado no nosso órgão no que diz respeito ao nosso desempenho em todas as áreas para que em Brasília se conscientizem da real necessidade de nosso trabalho” – respondeu Renato com mal dissimulada vergonha das próprias palavras proferidas. A lembrança da palavra “nós” pronunciada provocou-lhe um rubor na face que se tornava visível para alguns espectadores mais à frente. Outro representante ainda mais audacioso atreveu-se a perguntar se a  Autarquia não estaria com excesso de funcionários. Renato titubeou, mas acabou admitindo que acreditava mesmo que ela tinha esse problema. Perguntado sobre que medidas seriam tomadas ele alegou desconhecer os planos da diretoria nesse sentido. Terminada a fase de debates, antes da próxima exposição, seguiu-se o cafezinho no salão nobre. Rodeado por curiosos, Renato teve ainda de responder com mais detalhes a alguns que tocavam na mesma tecla do fechamento. Um pouco mais descontraído na conversa informal ele pode expor melhor o que realmente pensava a respeito. “Por que não veio com a sua mulher?” – perguntaram ao chefe debutante que ficou com o rosto enérgico, crispado. “Ela não estava passando bem e ficou no Hotel” – respondeu Renato, mais uma vez vexado de si mesmo. 

Ao chegar ao hotel encontrou Paulo bastante aborrecido: “Puxa vida, você saiu de manhã e nem me acordou. Eu tinha a maior curiosidade em vê-lo palestrar, mas pelo jeito você ficou com vergonha de mim”. Renato justificou-se: “Eu não quis que você me acompanhasse porque eu não queria deixar nenhuma margem para especulações.” “Isso é paranóia de sua cabeça. – irritou-se Paulo – Deveria ter tanta gente lá... Quem é que iria saber que você é meu namorado? Bastava que não entrássemos juntos.” 

O novo chefe com os nervos à flor da pele perdeu a paciência com o parceiro: “Com tantas questões fervilhando na minha cabeça você vem me aporrinhar com essas frescuras!” Isto bastou para que fossem dormir cedo, amuados, sem se falarem. Como demorassem a pegar no sono, Paulo pulou sobre o amante no escuro, sussurrou-lhe ao ouvido que esquecesse as colocações que fizera e logo entrelaçavam os corpos com gestos precisos de proteção mútua. 

Os dois assistiram às exposições da manhã seguinte como dois estranhos e à tarde dirigiram-se ao aeroporto para a volta a São Paulo. No avião Paulo suspirou junto ao amigo: “Ufa! Ainda bem que nenhum daqueles chatos quis lhe acompanhar até o aeroporto, como em “Um Só Pecado” do Truffaut! Por pouco eu quase vejo esse filme de novo!” 

Apresentado um relatório de viagem, Renato concentrou-se num trabalho sobre S. Leopoldo que era urgente. Como Luiz era o único da sala que já tinha viajado para a localidade com o ex-chefe, foi solicitado a ele as informações recolhidas e os nomes e referências dos principais contactos. Luiz alegou não se lembrar muito bem desse caso em particular porque depois daquela viagem inúmeras outras foram feitas e sua memória não era tão bem dotada assim. O chefe percebeu pelo tom cínico da argumentação, pelo prazer quase sádico tenuamente estampado no rosto, que se em parte era verdade o que o subordinado dizia (não se lembrava de tudo com detalhes), muita coisa sabia e não estava nem levemente inclinado a fornecer essas informações. Sílvia e Aloísio foram chamados à sua mesa, o problema foi explicado e os dois passaram toda manhã e boa parte da tarde ligando para diversos órgãos de S. Leopoldo à cata de informações. Reunida a base de dados necessária os dois enfronharam-se no computador para variados cálculos e comparações com outras localidades já disponíveis em arquivo. 

Renato que até aquele ponto havia se mostrado sereno, apesar das provocações de Luiz, transtornou-se completamente quando o desafeto recusou-se a desvendar alguns contratempos computacionais que paralisavam o trabalho dos dois colegas. Foi só ouvir Luiz asseverar que já cansou de explicar aqueles macetes e que eles já não deveriam ter mais dúvidas, Renato exasperou-se: “Pois eu já estou farto de seu corpo mole. Ou você se toca de que com a mudança de hierarquia a necessidade de colaboração mútua é imperiosa, imprescindível, ou vou ser obrigado a me valer da minha posição. Essa é a ultima vez que eu suportarei sua displicência.” Os dois acomodaram-se quietos em suas mesas em meia hora de respirações ofegantes e manejo tenso das canetas, lapiseiras, calculadoras e teclados. Como Luiz continuou ignorando as dúvidas dos colegas, Renato viu-se compelido a ir ele próprio ajudá-los, interrompendo a escrita do texto do relatório que ia adiantando. Naquele dia não só o chefe como os dois subordinados saíram bem mais tarde do que o usual. Em casa Renato viu-se ainda na contingência de extrapolar a noite até alta madrugada para término do relatório final que precisava entregar pela manhã, dormindo pouco, o que lhe causava incontornável mau-humor. 

O primeiro assunto tratado com o Dr. Mendonça, após a entrega do trabalho, pela manhã,  foi a indolência de Luiz. Renato ponderou que se não contasse com a imediata colaboração do funcionário seria obrigado a pedir a sua dispensa e substituí-lo por alguém disposto realmente a trabalhar. Garantiu que só daria a ele uma oportunidade a mais. O diretor mostrou-se decepcionado e preocupado com o que considerou uma disputa: “Sr. Renato, é lamentável que em tão pouco tempo essa inimizade já tenha sido criada. O Luiz Carlos é um funcionário competentíssimo. Na gestão do Jair ele mostrou-se bastante produtivo. O senhor precisa aprender a ganhá-lo: tem de ser habilidoso. Aposto que o está tratando como se ele fosse igual a todos os outros ali e sabemos que ele não é. O senhor sabe que ele é filho do Dr. Noronha não sabe?” Renato respondeu que já ouvira falar e mostrou um semblante insubmisso o suficiente para que nele fosse dito um silencioso e patente “E daí?”. O diretor procurou uma máscara mais intimidadora: “Sr. Renato, o Dr. Noronha é um aliado nosso em Brasília, decisivo! Ele é intimo de vários assessores do Ministro. Numa época de tantos cortes e apreensões não podemos nos dar ao luxo de criar problemas com o nosso ilustre e essencial simpatizante. Eu gostaria que o senhor lidasse com o filho dele de modo bastante diplomático, entendeu? Fui suficientemente claro?” Renato sentiu os olhos turvarem, sentou-se e tomou um cafezinho demoradamente. 

O diretor continuou: “Outra coisa Sr. Renato, fiquei sabendo que o senhor em Recife teve a audácia de declarar que nós estamos com excesso de funcionários! Com base em que o senhor se atreveu a esse disparate? Nós temos tantas áreas a serem atacadas que em breve nos faltarão funcionários. Essa lei que nos restringe as contratações logo nos trará problemas!” Renato com voz ligeiramente trêmula conseguiu contra-argumentar: “Tudo bem. Se forem feitas mudanças estruturais fortes e nas linhas de ações, no futuro poderemos vir até a precisar de novos funcionários. Mas atualmente é patente a ociosidade. Basta passear pelos corredores, entrar nas salas!” Dr. Mendonça reagiu com pronta  rispidez: “ Vamos admitir que isso seja verdade, Sr. Renato. Mas  isso é coisa que se diga num seminário aberto ao público? O senhor teve sorte porque esse era um seminário regional de menor importância. Nem a imprensa local noticiou nada, o que foi uma sorte. Mas e se fosse aqui em São Paulo como vai ter em setembro? Teria sido um desastre! O senhor precisa ter mais faro político Sr. Renato!... Mais um detalhe que eu estava me esquecendo: o nome do seu... (como dizer?...) amigo constou na lista de presença. Eu acho que não preciso lhe explicar que foi uma perniciosa “bandeira” da sua parte!... Medite bem em tudo isso! Eu agora tenho um compromisso, com licença! Aguardo-o na reunião à tarde sobre as conclusões com relação a S. Leopoldo com os assessores.” 

Por mais que Renato se esforçasse, o almoço não lhe descia ao estômago, os talheres balançavam trêmulos sobre os pratos. Abandonou então a mesa e restringiu-se a um suco da lanchonete. À tarde expôs a situação de S. Leopoldo com tropeços, sem a fluência com que enfrentou o público no seminário. Chegou ao fim de sua explanação esclarecendo todos os pontos que pretendia, muitas vezes mostrando-se chato até, reiterando diversos pontos. A falta de tranqüilidade, o nervosismo, entretanto, eram indisfarçáveis. As mãos gesticulavam de forma abusiva. Após tirar algumas dúvidas dos assessores com correção e presteza, mas com a voz titubeante, lembrou-se de perguntar a Jair sobre o trabalho de Olinda. O ex-chefe serenamente afirmou que não sabia de pedido algum nesse sentido. Renato perturbou-se com a postura inabalável do interlocutor e o pressionou, com crescente indignação: “Mas como não se lembra se o representante de lá mandou até um ofício?!” Jair olhou para o diretor, denunciando com o olhar a suposta deselegância de que era alvo e respondeu decidido, sem hesitação: ”Ah! Sim! Agora me lembro! Foi um chato sem a menor importância da Secretaria de Obras de Olinda que me abordou após minha palestra, para me pedir um parecer para resolver um problema dele... Ele mandou mesmo o ofício é? Eu pensei que ele quisesse apenas aparecer. O trabalho me pareceu tão banal...” 

 Homero que em todo esse tempo folheava relatórios antigos pediu um esclarecimento: “Comparando aqui os investimentos previstos na área num trabalho do ano retrasado, com o que você nos apresenta hoje, houve uma redução drástica. Você poderia nos explicar o porquê?” 

Renato fez uma pausa para meditação e respondeu, ora com firmeza, ora com calma aparente, ora com uma fúria que lhe escapava por entre os lábios: “Esse trabalho foi realizado durante a chefia anterior sem a minha participação. Eu não lhe posso responder de imediato sobre o que foi feito anteriormente. Eu não sei se foram tomados os cuidados que tive agora. Se quiser poderemos depois fazer uma análise mais detalhada!” Jair olhou novamente para o diretor e este lhe fez um sinal com os olhos e cabeça para que se contivesse. “A sua colaboração foi preciosa Sr. Renato. – interveio Dr. Mendonça – O senhor está dispensado! Depois da reunião particular com os assessores o senhor no fim da tarde me procura sim?” 

Renato molhou os pulsos na água gelada do bebedouro, entrou na sua sala, chamou Luiz e pediu-lhe o relatório antigo de S. Leopoldo. Luiz alegou ignorar o paradeiro do trabalho, observou que talvez a biblioteca tivesse uma cópia. O chefe ficou fora de si: “A cópia da biblioteca está com o Sr. Homero! Você sempre foi unha e carne do Jair! Eu tenho certeza que você sabe em que lugar desses armários está o relatório! Eu o quero imediatamente entendeu?” A voz gritada de Renato ecoou nas outras salas, chegando um tanto abafada até mesmo à sala de reunião dos Assessores. Luiz assustou-se e após uma demorada procura localizou o relatório. O chefe sentou-se para lê-lo, mas os olhos não se concentravam nas linhas. 

Na conversa com Dr. Mendonça no fim da tarde, Renato estava atento, mas simultaneamente totalmente indiferente, abúlico, sem mostrar sofrimento nem se exaltar. O Diretor pediu-lhe que se sentasse e iniciou sua preleção: “Quando os assessores quiseram vetar o seu nome com o pretexto de que o senhor era um homossexual, eu me opus. Resolvi dar o meu crédito. Vejo agora que me enganei. Vocês homossexuais são muito perturbados, instáveis, sujeitos por qualquer motivo a extravasarem as emoções. Este tipo de passsionalismo da personalidade é incompatível com quem almeja uma liderança. Na reunião de hoje o senhor mostrou-se extremamente inseguro. Em Recife teve seus maus momentos. Em reuniões importantes que muitas vezes temos em Brasília, eles em sua maioria não entendem patavina do que falamos. O que muitas vezes é bom.... Mas eles são muito sensíveis quanto ao fato de lhe passarmos credibilidade ou não. A postura é muito importante! Muito mais do que o conteúdo. Não adianta entrar em minúcias importantes e titubear... O senhor ainda é jovem e poderá aprender bastante ainda. Eu tenho a acrescentar agora que somos obrigados a destituí-lo da chefia, para fortificação da nossa Autarquia, principalmente numa fase que nos é tão crítica nestes tempos de grande crise econômica. O senhor está em regime de CLT, mas eu não vou despedi-lo da Autarquia. O senhor poderá, se desejar, continuar trabalhando na mesma sala, mas com a chefia do Luiz Carlos. Eu, apenas, se estivesse no seu lugar me sentiria muito mal trabalhando como subalterno num espaço aonde eu já fui chefe... O senhor está dispensado. Tem alguma coisa a dizer?” Renato como que acordou de um transe e disse que queria dizer algo sim: “O senhor só tem razão num ponto... Quando disse que eu sou perturbado. Só que perturbado pelos outros! Pelo sistema! Eu não sou tímido. Sou intimidado!” 

A indignação de Paulo com os acontecimentos era bem maior do que a do amante. Renato sentia-se quase que leve, ainda que não relevasse a amargura. Perguntado sobre o que iria fazer, disse que não sabia ainda. A questão era que Renato não conseguia sentir ódio de ninguém lá da Autarquia. Já os conhecia há um bom tempo. Sua ira voltava-se inteiramente contra si: ”Eu me deixei encantar pelo fascínio de ser chefe daquela arapuca deixando de ver várias coisas que eram gritantes. Se ao menos eu tivesse tido a coragem  de enfrentá-los logo no primeiro atrito! Eu deveria ter pego os documentos em que os gastos inúteis eram nítidos e tê-los endereçado à imprensa. Era o que eles mereciam, merecem! Agora se eu fizer isso, essa imprensa canibalesca é bem capaz de dizer que eu sou um mafioso traído pelo bando, que agora se vinga!...” Renato comentou a pena que sentia em saber que Sílvia  estava também naquele ambiente. 

“Você ainda pode estar de mãos atadas, pode ser chato para você, um bumerangue que pode feri-lo! Mas a mim não! Minha vida tem sido um tédio ultimamente apesar das facilidades que tenho. Eu sei como não comprometê-lo! Eu estou precisando de novas emoções!” – arrematou Paulo com um ódio amaciado, calculado, misterioso e uma lucidez que se avizinhava da loucura.

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Nelson Rodrigues de Souza